sexta-feira, 19 de abril de 2013

Sobre o regresso dos cagarros e garajaus


A caravela-portuguesa é uma das visitantes anuais do Arquipélago dos Açores
Não será propriamente a visita mais desejada...

A Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves celebrou a chegada dos cagarros e garajaus aos Açores. Reuniram os interessados na Lagoa, São Miguel, e observaram os voos costeiros rasantes dos cagarros. Como não estive lá, não posso garantir o que viram, mas posso imaginar…
Os cagarros são aves com centenas de milhares de anos de adaptação ao meio marinho. Ao voarem sobre as ondas, aproveitam a impulsão das vagas para poupar energia. Isso obriga-os a manterem-se a uma distância centimétrica da água, fazendo um autêntico bailado sincronizado com o andamento das ondas. Como conseguem não tocar com as asas no mar é uma ciência que me ultrapassa. Neste caso, não me detenho a procurar explicações. Limito-me a apreciar.
Tenho alguma dificuldade em contabilizar as horas que já passei na proa de um barco a seguir o floreado dançante dos cagarros. Ao final da tarde, junto das colónias mais populosas dos Açores, como a Ponta dos Rosais ou a Vila do Corvo, os cagarros reúnem-se aos milhares, esperando pela noite que os levará em maior segurança até terra.
Os cagarros possuem uma resistência admirável. São capazes de fazer voos de milhares de quilómetros, não estou a exagerar, para encontrar os mananciais de pescado adequados à sua dieta e à dos seus descendentes.
No entanto, neste rigorosíssimo inverno de 2012/13, algumasdas aves que chegaram aos Açores no final do período de invernia, acabaram pornão resistir. Seja por falta de alimento, pelas baixas temperaturas, pelo vento fortíssimo ou pelo mar tempestuoso, dezenas de cagarros acabaram por cair no mar, muitos deles morrendo e arrojando na orla costeira. Infelizmente, o número de mortos registados na Praia de Porto Pim, no Faial, é apreciável. Na ilha de São Miguel, os registos apontam apenas para aves caídas em terra e, de imediato, postas a salvo pela colaboração entre os populares que as encontraram e os Vigilantes da Natureza que as recuperaram e libertaram no final de mais uma tempestade.
À noite, ao andar pelas ruas do Faial, oiço os cagarros e sinto uma sensação muito agradável. A primavera, embora não pareça, está a chegar. Agarro-me aos grasnares destas aves e penso em noites de verão.
Ainda não ouvi os garajaus. Não sei onde andam, embora a SPEA já os tenha registado na Lagoa. No Faial também já devem ter chegado, mas, num transecto feito há duas semanas, não os registei no Monte da Guia.
Os Açores esperam as duas espécies mais habituais de garajaus, os comuns e os rosados, para que também o ciclo destas frágeis aves marinhas se complete no regaço das rochas pretas do basalto açoriano. Especialmente, os ilhéus da Alagoinha (Flores), o ilhéu da Mina (Terceira) e o ilhéu da Vila (Santa Maria) não atingem a harmonia sem as respetivas colónias de garajaus.
O ciclo repete-se com a chegada destas aves marinhas migradoras. Todos os anos, a ecologia dos Açores completa-se com a chegada e partida de baleias, cachalotes, golfinhos, tartarugas, aves marinhas, peixes, águas-vivas e tantos outros animais deste magnífico oceano. Observar esta cadência é como ler uma poesia escrita pela mão de Deus.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Carta a um amigo que já partiu


Grande Concerto Sinfónico de Páscoa de 2013.
Foto: F Cardigos.

Caro Yuri Pavtchinsky,
não sei se me consegues ler, mas mesmo assim, tenho que te contar o que aconteceu no último final de semana.
Como deves saber, o teu filho Vítor Daniel tocou no grande concerto de Páscoa! Para além do teu filho, estiveram em palco o solista Alexander Kuklin (ao piano) e elementos dos Conservatórios de Lisboa, do Porto, de Leiria, professores e antigos alunos do Conservatório Regional da Horta e das filarmónicas do Faial, muito bem dirigidos por Kurt Spanier. A orquestra Horta Camerata tocou obras de Mozart, Handel, Strauss, Verdi e Haydn, com encores (sim, plural) de Strauss, Verdi e da peça de Handel. É sobre essa peça de Handel que te quero falar em especial.
Lembras-te quando um outro teu filho, o Vladimir, tocou, também no Teatro Faialense, o Concerto para clarinete em Lá de Mozart? Lembras-te do início do segundo andamento? Foi um momento perfeito, não foi?! Aliás, houve outro momento perfeito que me vem agora à memória. Foi em 2007 na Igreja Matriz, naquela “Sinfonia al Santo Sepulcro” de Vivaldi. Não tenho a certeza que tenhas assistido a esse concerto.
Mas estava a falar desses momentos perfeitos porque ontem o teu filho Vítor Daniel foi um dos protagonistas de mais um momento perfeito. Foi de tal forma bonito e harmonioso que o maestro desatou a aplaudir a sua própria orquestra! E fez muito bem porque, de facto… não há muitas palavras que possam descrever aquele minueto da ópera “Berenice” de Handel. Sim, eu sei que esta peça suave e delicada, com aquele envolvimento quase hipnótico do período Barroco, puxa por nós, mas… não explica tudo. Houve ali algo mais.
É certo, também que na ilha do Faial temos saudades de música erudita, o que nos coloca num estado de espírito particular. De certa forma, é como se já quiséssemos gostar, mesmo antes de ouvir. Seja como for, aquele foi um momento acima disso.
Como eu estava a dizer e em resumo, o teu filho tocou tão bem! Continua “tapado” pelas suas duas professoras, mas esteve à altura delas! Aliás, em termos musicais, é bom que ele esteja lá atrás. Repara que, como ele é tímido, o facto de estar atrás permite-lhe libertar-se mais, sem a pressão correspondente à primeira fila. Quando estiver mais calejado, certamente, atuará no centro do Teatro Faialense. Quem sabe não o ouviremos numa qualquer sala de concertos europeia a tocar as suites para violoncelo de J.S Bach. Eu não me admirava um segundo que assim fosse!
Penso que nunca te disse, meu caro amigo Yuri, mas temos saudades tuas. Temos saudades do teu sorriso, do teu jeito impetuoso, da tua habilidade para tocar trompete, do teu entusiasmo contagiante e da tua vontade de fazer. Vendo bem, de certa maneira, dada a frescura da tua memória, é quase como se não tivesses partido. Estás connosco. O teu legado está certamente connosco e isso sabe muito bem!
Com respeito e admiração,
Frederico

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Sinergias Oceânicas

"A nível global, vejo com muita curiosidade um planeta a querer passar de um verde que nunca chegou a ser, para um azul que se impõe até pela urgência. Talvez esteja, finalmente, o mundo a encontrar-se consigo próprio. Fico orgulhoso por pertencer a um país e a uma região que estão a contribuir ativamente para essa extraordinária aventura."


Nos Açores, a brisa marítima traz-nos mais do que notícias do presente. Cada vaga que se esmaga contra as rochas basálticas relembra-nos que o futuro passa por ali e que esse futuro é tão urgente como respirar.

Portugal nunca deveria ter abandonado o mar. Desde o final dos anos 90 que se entendeu o erro e se encetaram verdadeiros esforços na sua correção. No início, curiosamente, ninguém conseguiu antever qual seria o percurso que nos levaria de volta aos oceanos. Apenas sabíamos que tínhamos de ir e isso já não era nada mau.

Apareceram então diversas iniciativas razoavelmente felizes e que, muitas vezes sem apontar verdadeiros caminhos, tiveram o enorme mérito de levar as pessoas a pensar, a debater e a galvanizar-se sobre o que se considerava essencial. Antes disso, entre o advento da democracia e este período, apenas contabilizei ações individuais, esforçadas, mas isoladas. Na minha estante está, cronologicamente só, o “Fauna Submarina Atlântica” do saudoso Professor Luiz Saldanha.

Grande parte dos resultados apontava já, mesmo se implicitamente, para dois importantes vetores de atuação: planeamento e trabalho. E foi isso que foi feito. Surgiram alguns documentos estratégicos, acompanhados de diversas iniciativas individuais ou coletivas, com particular destaque para o Livro Branco para a Política Marítimo-Portuária e a Expo’98. O mar passou a ser uma prioridade inquestionável e todos estavam de acordo que tinham de arregaçar as mangas e, coordenadamente, fazer.

É importante relembrar os pontos essenciais do que foi feito até aqui. Não foram na altura evidentes como tal, mas, em retrospetiva, lembro-me bem daqueles que, agora, me parecem ter sido os fatores descriminantes.

Começou-se a agir e não houve hesitações, novas invenções ou ideias originais. Fez-se. Todas as ações, e houve muitos improvisos típicos da reconhecida “engenharia” lusitana, foram no sentido de consubstanciar o percurso. Até aqui, cumpriu-se o programa. Estabeleceu-se uma Estratégia Nacional para o Mar e propôs-se a delimitação da plataforma continental contígua a Portugal, entre muitos outros resultados que contribuíram para o sucesso da rota.

Nos Açores, em paralelo, agimos em áreas que, apesar de estarem longe das prioridades continentais, se encaixavam bem no percurso a fazer. Orientámo-nos para a proteção de espécies e habitats, tendo criado o primeiro conjunto coerente de áreas marinhas protegidas e lançado novas utilizações para, por exemplo, baleias, golfinhos e cachalotes. Em 2007, os Açores, corajosamente, aprovaram legislação que abria o caminho para a proteção de espaços para lá das águas sob jurisdição nacional. Visto à distância, temos que reconhecer a visão, a oportunidade e mesmo a necessidade desse compromisso para com o espaço que se transformaria na “extensão da plataforma continental”. Se hoje podemos já falar em zonas classificadas fora da Zona Económica Exclusiva de Portugal, estas magníficas nove ilhas da Macaronésia foram peças essenciais para a estruturação deste complexo puzzle.

O esforço feito para recuperar a população de focas-monge na Madeira foi inspirador e bem-sucedido. De poucos animais, hoje estamos perante uma população robusta destes animais emblemáticos.

Independentemente de alguns ajustes necessários, que o tempo se encarregará de fazer, a revisão da Estratégia Nacional para o Mar e a reorientação do planeamento espacial marítimo são iniciativas na generalidade positivas. Há que afinar os instrumentos para que se tornem verdadeiras respostas aos desafios atuais e aos que nos esperam. Abraçamos quase todas as alterações, mesmo se com algumas dúvidas. No entanto, é perigoso e contraproducente ferir as autonomias e as conquistas regionais. Ao mesmo tempo que há um crescendo de relacionamento com o mar a nível nacional, não podemos impor passos atrás aos atores regionais, retirando-lhes, injustificadamente, responsabilidades e oportunidades.

Em particular, a Lei de Bases da Política de Ordenamento e Gestão necessita de ser expurgada de conflitos com a Constituição e com os estatutos político-administrativos das regiões autónomas. É essencial que as plataformas continentais contíguas às regiões sejam por elas geridas e isso inclui, como não poderia deixar de ser, o seu planeamento. No momento em que escrevo estas linhas, ainda estamos a tempo de fazer um bom trabalho.

Hoje em dia, o planeamento nacional passa claramente pelo estudo, caracterização, divulgação e implementação de estratégias e ações consequentes no uso e proteção do mar Português. Fez-se um bom trabalho. Nada disto nos deve, no entanto, deixar adormecer sobre os louros. É necessário agir.

O caminho, em Portugal, passa neste momento por garantir que são filtrados regulamentos e legislações que, inutilmente, atrasam ou inibem os investimentos. Esse é o passo que se segue. Temos que atrair os empreendedores e utilizadores dos mares para que sejam eles agora a pegar no leme. Isso implica que a Administração se torne, essencialmente, invisível. A Administração terá que garantir a segurança ambiental, a silenciosa dinamização dos diferentes setores, a acessibilidade aos recursos e que os resultados sejam distribuídos de forma equitativa. Mais do que isso, poderá ser excessivo e contraproducente.

A Administração central terá que encontrar os aliados certos para que isso aconteça. As regiões autónomas são, sem sombra de dúvida, dois desses parceiros. São elas que, graças às suas enormes subáreas da Zona Económica Exclusiva do nosso país, legitimam e puxam geograficamente Portugal para o mar.

Fruto de uma energia e de um entusiamo crescente, Portugal encontra-se cada vez mais comprometido com o seu próprio futuro. Este não é o momento de perder oportunidades, mas sim de agitar a bandeira de partida e fazer.

A nível global, vejo com muita curiosidade um planeta a querer passar de um verde que nunca chegou a ser, para um azul que se impõe até pela urgência. Talvez esteja, finalmente, o mundo a encontrar-se consigo próprio. Fico orgulhoso por pertencer a um país e a uma região que estão a contribuir ativamente para essa extraordinária aventura.

Publicado no número 6 da revista "Clusters do Mar" de Abril/Maio de 2013.