quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Caminhos da Memória

A convite da Ecoteca de São Jorge, participei num dos últimos Caminhos da Memória de 2006. Mas o que é isto de “Caminhos da Memória”? São percursos pelas paisagens ambientais e culturais organizados durante os fins-de-semana de Verão por diversas entidades, mobilizadas pelas Juntas de Freguesia. Nestes percursos, delimitados geograficamente na área alvo, os cicerones apresentam as características do mundo natural, incluindo curiosidades de algumas espécies ou características dos habitats, da história, da sociologia, das artes e dos costumes. Estes cicerones, tipicamente de idade avançada, são escolhidos pelos conhecimentos gravados na sua memória pelo tempo. O programa dos “Caminhos da Memória” é coordenado pela Ecoteca de São Jorge.

Nesta ocasião, em particular, participei no percurso delineado na Freguesia da Urzelina. Esta freguesia de São Jorge está localizada a meio da costa Sul da Ilha. Iniciámos o percurso. O cicerone José Guilherme Machado levou-nos até à antiga Igreja da Urzelina, da qual apenas resta uma torre, porque, tal como nos descreveu “no dia 1 de Maio de 1808, dia do Bom Pastor, eclodiu um vulcão cuja lava tudo levou, excepto esta torre, onde se encontrava uma vaca prometida ao Espírito Santo. Um autentico milagre por entre a calamidade que se manteve por mais de duas dezenas de dias. Formavam-se nuvens ardentes, gases tóxicos movimentando-se junto ao chão, numa panóplia de desgraças que foram detalhadamente descritas por, entre outros, Júlio Verne no seu livro “A Agência Thompson”. Os relatos mais fidedignos são do Padre Barcelos, páraco da Urzelina e herói que, contra a intempérie das quinze crateras, lutou ao lado e à frente dos Jorgenses.”

O nosso passeio continuou e aprendemos quais as tradições agrícolas, as preocupações sociais e as histórias de pilhagens perpetradas por Picarotos (“o que é normal porque os Jorgenses faziam-lhes o mesmo!”, dizia alguém). Inspirados pelos originais moinhos da Urzelina de “palhetas” de madeira, falámos de energias alternativas. Falámos também da Urzela, um singelo líquen, pai do nome desta freguesia, que servia para sintetizar a tinta “a cor violeta ou o castanho-avermelhado, tipo cor de vinho”. Esta tinta, e o sangue de dragoeiro, utilizado para fazer a tinta vermelha que cobre os violinos e violoncelos, foram das primeiras exportações da freguesia. Mais tarde, os campos férteis da Urzelina exportaram também o vinho verdelho e a laranja.

O almoço foi oferecido no Salão da Casa do Povo da Urzelina. Foram umas saborosas sopas de Espírito Santo que, felizmente, não nos retiraram energia para continuar a subir e a descer os montes desta parte de São Jorge. A certo passo vimos uma ribeira com um amontoado de lixo. Eu nem queria acreditar que alguém tinha sido capaz de, por pura maldade, preguiça e/ou desleixo, manchar aquele magnífico vale. O Presidente da Junta de Freguesia, Raul Brasil, que também participou activamente no passeio, confessou que nos dias anteriores os seus homens tinham limpo grande parte do percurso, mas que ali, ele tinha dado ordens para deixarem como estava “para que os participantes percebessem quão irresponsáveis eram certas acções”.

No final do dia, depois de 18 quilómetros andados, os quarenta participantes ainda tiveram energia para assistir a um jogo de críquete. Este jogo, usualmente associado a uma certa aristocracia tradicional e certamente fora de moda para a maioria, continua vivo para o povo da Urzelina. Este foi um jogo de demonstração, mas, nos finais da tarde de Verão “as coisas fiam mais fino”, dizia-me um dos jovens jogadores locais.

Eduardo Guimarães, o director da Ecoteca de São Jorge, referia, quando me convidou a ir a São Jorge, “são caminhos e não trilhos, porque não podem ser percorridos sem os guardiães da memória, os tais de cicerones, que não devem ser confundidos com guias porque a ligação às memórias é muito mais próxima e profunda.” Estes caminhos da memória são passos largos para um futuro que não esquece o passado. Pelo contrário, sabe utilizá-lo valorizando e colorindo o presente num produto de elevada qualidade, maduro pelo tempo e saboroso pelo conhecimento e inteligência de quem os dinamiza. “A tendência” – reforçava o Eduardo – “é tornar o conjunto de Caminhos e de pólos de interpretação ambiental e cultural de São Jorge num Ecomuseu. Uma estrutura que estará onde estiverem Jorgenses interessados no seu património no sentido mais amplo da palavra”. Em São Jorge, o passado insiste em trocar mensagens com o futuro, aconselhando-o a não o esquecer e… sabe tão bem!

domingo, 12 de novembro de 2006

Açores em Ambiente de Mergulho

A raridade, a fragilidade, a sensibilidade e a importância ecológica, económica ou cultural são algumas das razões que conduzem à classificação do património natural. Esta classificação é o reconhecimento social da relevância e serve de alicerce à gestão específica dos valores em causa.
Há duas formas de classificação básicas: a legislativa, alicerçada em documentos aprovados pelos órgãos de soberania adequados e fiscalizável pelas forças da autoridade, e a voluntária, em que os utilizadores estabelecem espontaneamente as regras de utilização do património. Nos Açores, a zona classificada mais conhecida, também pelo elevado nível de restrições impostas, talvez sejam as “Caldeirinhas do Inferno”, no Monte da Guia (Ilha do Faial). Esta zona, classificada em 1980 como Reserva Integral pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, é fiscalizada pelos vigilantes da natureza, polícia marítima, brigada fiscal e outros cidadãos interessados. A reserva voluntária mais conhecida dos Açores, e provavelmente de Portugal, é o “Caneiro dos Meros” na Ilha do Corvo. Este local, cuja fama o aproxima do mito, está declarado, desde 1999, como condicionado à pesca de fundo.
O que têm estes dois locais em comum? Ambos se encontram na componente marinha dos Açores e nos dois casos os benefícios para a economia são reconhecidos por todos os que se aventuram a pensar com liberdade e isenção. A “Entrada das Caldeirinhas” é um dos locais mais utilizados para o mergulho com escafandro autónomo na Ilha do Faial e nos seus limites pescam quotidianamente diversos pescadores, ambos bafejados pelo corrupio de biomassa que entra e sai das antigas crateras. O “Caneiro dos Meros”, por seu lado, fez com que dois peixes, com um valor se fossem pescados de duzentos euros, tenham rendido isso por cada dia de Verão dos últimos anos. É que, definitivamente, as Áreas Marinhas Protegidas são um excelente negócio.
Acima de tudo, a conservação do ambiente marinho é muito mais do que apenas uma questão de números. É a inteligência da preservação do mundo natural, numa perspectiva de desenvolvimento sustentável, em oposição à desenfreada exploração para que nos impele um certo conceito de modernismo, mais próximo do vandalismo. As áreas e as espécies com exploração condicionada são a salvaguarda para a insegurança do amanhã, são a almofada para as intempéries e são uma questão moral. Hoje em dia ninguém pode propositadamente, no seu perfeito juízo, privar o mundo de alguma das suas espécies (apenas devem ser adicionadas ou removidas espécies pela própria dinâmica biológica e isso acontece naturalmente todos os dias). O planeta Terra apenas faz sentido com o seu património natural em equilíbrio e florescente. A herança geológica, biológica e ecológica do nosso mundo está a degradar-se, mas, nos Açores temos uma tripla e preciosa oportunidade: ao património natural marinho ainda valioso alia-se uma perfeita noção da sua fragilidade e das regras para a sua manutenção. Como de costume, com as oportunidades nascem também as responsabilidades… Nós somos os guardiães responsáveis pela manutenção deste pecúlio e uma coisa é certa, no final, quando nos pedirem contas, não poderemos alegar desconhecimento.
É neste contexto que nasceram as Áreas Marinhas Protegidas dos Açores. E temos estado na linha da frente em termos de pensar e implementar a conservação da natureza. Temos a maior área da Europa com pesca condicionada, fomos o primeiro país da União a declarar Natura 2000 uma zona fora do mar territorial e estamos preparados para começar a classificar o nosso mar profundo. Na plataforma dos Açores, dentro em breve, haverá uma área classificada a mais de 2000 metros de profundidade e a 230 milhas náuticas de distância. Nós conhecemos o património, reconhecemos a sua importância e classificamo-lo para poder gerir as sensibilidades ambientais.
Se essas áreas do mar profundo e misterioso, onde se desenrolam as “brincadeiras de Deus”, são apenas acessíveis através de submarino – e para aqueles privilegiados que puderem, vale bem o esforço – há outras áreas fascinantes do nosso arquipélago que são acessíveis ao ser humano que, simplesmente, ousar colocar a cabeça por debaixo de água. Apesar disso, e dado que são áreas classificadas, há regras que devem ser voluntariamente respeitadas. Se no caso extremo das “Caldeirinhas do Inferno”, tudo é proibido, incluindo a entrada na área, há outras áreas em que a maioria das actividades humanas é permitida e até estimulada. Por exemplo, na Baía de Angra (Ilha Terceira), zona classificada por causa do seu valioso património arqueológico, há um conjunto de bóias que sinalizam os melhores locais para entrada e realização de mergulho com escafandro autónomo. Antes de iniciar a submersão vale a pena informar-se sobre os conteúdos patrimoniais da área; é mais instrutivo e o mergulho ficará valorizado ou, posto de outra forma, se não aprender previamente algumas coisas sobre os naufrágios e artefactos em causa, o mais natural é não perceber o valor do que lhe é dado a ver. O mesmo se aplica a qualquer local com valor geológico, biológico ou outro. Não se dá o mesmo valor se não partirmos para a fase do conhecimento, que fica para lá da mera apreciação estética. Não é o mesmo olhar simplesmente para um cardume em movimento do que compreender a importância do tamanho da mancha e do movimento sincronizado utilizado para confundir os predadores, da comunicação através dos reflexos e da importância em manter os mais aptos no centro do cardume, para sacrificar os menos dotados que ficam nos extremos. Por muito bonito que seja, apenas olhar aproxima-se do desperdício de tempo. Portanto, iniciativas como este manual revestem-se de particular importância. Dotam o mergulhador ou o amante da natureza dos instrumentos de base para uma melhor apreciação do ambiente, o que lhe permite, logo à partida, três coisas: compreender parte do mundo natural, encetar novas descobertas e, muito importante, despertá-los para a identificação de qualquer anomalia. Estes cidadãos mais informados são preciosos como extensão da monitorização ambiental que é impossível de institucionalmente acontecer em todo lado e a todo o tempo.
Para utilizar as zonas classificadas é necessário conhecer as regras e as sensibilidades locais por forma a não causar danos ambientais. No entanto, em relação às zonas da rede europeia de áreas protegidas, locais Natura 2000, vale a pena ir um pouco mais longe. Há que estar consciente que aqueles sítios têm características únicas no contexto europeu e o desportista náutico em particular (incluindo os mergulhadores) deverá abdicar de extrair qualquer porção do património geológico, biológico ou cultural. Não deverá sequer manipular o fundo mar. Tocar sim, mas com o cuidado de não causar danos. Aquilo que está a ver e a sentir deverá continuar acessível a quem vier a seguir. Por exemplo, no mergulho “Sudoeste das Formigas”, é possível submergir a grande profundidade (cuidado!), ver grandes pelágicos, até jamantas no momento certo do ano, analisar as pequenas anémonas amarelas que se acotovelam naquilo que em tempos foi a popa do navio “Olympia”, e regressar à superfície já no lado leste de uma das estruturas geológicas mais antigas dos Açores. Raros serão os mergulhos que, no mundo, nos poderão dar tanto prazer.
Logo ali ao lado, a cerca de 3 milhas para ESE está o “Recife Dollabarat”. Ao contrário do que muitas vezes se repete, este não é o nome de um navio afundado na área. Pelo contrário, é o nome do comandante, de origem basca, que colocou o Recife no mapa, impedindo assim que as rochas que se situam a uns traiçoeiros três metros de profundidade pudessem tornar-se as pedras tumulares de algum desafortunado navio. Pierre Dollabarat deve ter visto as barbatanas de tubarões que por ali andam perto da superfície, mas nunca soube que naquele local há vales profundos, que rasgam a rocha até aos 40 metros de profundidade e, que, lá bem no fundo, é possível falar com os meros!
Há 17 sítios marinhos classificados como pertencentes à Rede Natura 2000 submetidos sob proposta do Governo Regional dos Açores. Preparam-se, neste momento, as candidaturas de duas ilhas à rede Biosfera e mais cinco áreas estão propostas pelo Estado Português para fazerem parte da rede de áreas classificadas da Convenção OSPAR. São estes alguns dos títulos que têm reconhecido a importância, sensibilidade e riqueza do património geológico, biológico e cultural do mar dos Açores. A nós, mergulhadores responsáveis resta-nos usufruir com prazer e preservar com responsabilidade o legado que outros, tão simpaticamente, nos deixaram.