sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Crónicas de Bruxelas - 89: Produtos biológicos alvo do jornalismo de investigação belga

 


Logotipo do programa belga #Investigation

Como já referi anteriormente, é muito raro seguir emissões televisivas. Para além do Telejornal, do Jardin Extraordinaire e do Benfica, raramente me apanharão embevecido no pequeno ecrã. No entanto, ontem, e por acaso, esquecemo-nos de desligar o aparelho depois das notícias da noite do canal belga francófono RTBF.

Sorrateiramente, começou a emissão seguinte, o “#Investigation”. Detive-me um pouco e, depois, não pude perder pitada. Tratava-se do resultado de meses de investigação jornalística sobre produtos biológicos na Bélgica. Aconselho que assistam a este programa que está agora disponível online.

Ao longo de cerca de uma hora e 20 minutos foram apresentados indícios muitíssimo fortes de anomalias no respeito pela legislação relacionada com a classificação de produtos biológicos. Lembro que, de acordo com os normativos da União Europeia, para um produto poder ostentar este título tem de respeitar um conjunto de regras, entre as quais a repartição equitativa dos rendimentos, respeito pelos direitos dos trabalhadores, respeito pelo bem-estar animal e não utilização de organismos geneticamente modificados. Menciono estas regras especificamente porque, de acordo com os resultados obtidos pelos jornalistas de investigação implicados, estão todas a ser desrespeitadas por produtores e com o passivo beneplácito das grandes superfícies comerciais belgas.

Alguns produtores belgas e outros estrangeiros, com particular ênfase para os oriundos de Almeria em Espanha, estão a contribuir ativamente para colocar dúvidas sobre a veracidade da certificação dos produtos biológicos. Confrontadas com as provas inequívocas dadas na reportagem, duas das grandes superfícies comprometeram-se a rever os seus métodos e fornecedores e, posteriormente, deram nota aos jornalistas dos resultados das suas ações. Dado parecer-me ser a forma adequada de reagir e agir menciono os seus nomes: Carrefour e Delhaize.

Na reportagem são também sumariamente investigadas as propriedades organoléticas e químicas de alguns destes produtos. Fica o registo: os produtos biológicos com circuito curto (que são produzidos localmente) são os mais saborosos, com menos poluentes e mais nutritivos e, os piores, são os produtos alimentares não-biológicos com circuito longo (produzidos noutro país).

Uma das pessoas entrevistadas referia estarmos perante um período de dores de crescimento dos produtos biológicos. Ou seja, a colossal procura dos consumidores por produtos verdes obrigou as grandes superfícies a dispor de enormes quantidades e isso reduziu o seu nível de exigência quanto à confirmação das premissas que os classificam. Com o tempo, tudo irá melhorar, até porque o consumidor assim o exigirá, referia a mesma pessoa com um bom senso que me convenceu.

Para isso acontecer, para garantir que os produtos chamados biológicos passem mesmo a sê-lo, será necessário aumentar a transparência por parte dos produtores e dos vendedores. Ou seja, o consumidor tem de poder ver para além das figuras bonitas da publicidade dos alegados produtos biológicos. Com as novas tecnologias isso é, na realidade, facílimo. Por exemplo, os grandes produtores de galináceos, que tantas tecnologias utilizam para garantir a salubridade e produtividade, teriam de disponibilizar o streaming de vídeo dos aviários via internet. Com este passo, qualquer um poderia verificar o respeito pelo bem-estar animal. Obviamente, teriam de ser respeitadas questões relacionadas com a proteção de dados industriais, patentes e, acima de tudo, a privacidade de quem ali trabalhasse, mas, com alguma imaginação e engenho, tudo é possível. Da mesma forma que podemos, a qualquer momento, verificar como são tratados os animais nas pastagens dos Açores, também deveria ser possível escortinar o que se passa dentro dos mega-aviários ditos de produção biológica.

De facto, como é salientado na reportagem, custa muito a acreditar que unidades de produção com 20 mil galinhas poedeiras num único espaço estejam a respeitar o mínimo bem-estar. Há que aumentar a transparência.

Esta reportagem partilha muitos outros detalhes, alguns deles reveladores de uma atitude desumana e hipócrita por parte de alguns produtores, distribuidores e vendedores absolutamente intolerável nos dias de hoje. Por outro lado, mostram também alguns belíssimos exemplos que convém divulgar e tentar reproduzir.

Talvez mais importante do que a própria reportagem seja relembrarmos o quão importante é o jornalismo de investigação. Apesar de, segundo a ONG “Repórteres sem Fronteiras”, Portugal ser um dos países com maior liberdade de expressão jornalística, há que promover ainda mais a sua ação, garantir-lhes o acesso aos temas que investigam, garantir-lhes as condições de trabalho previstas na lei e dar-lhes alento. O jornalismo de investigação é essencial à sobrevivência da democracia.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Crónicas de Bruxelas - 88: Finalmente em Couto Misto

 


Estátua do penúltimo Juiz de Couto Misto.
Foto: F Cardigos

Couto Misto é um território encravado entre Portugal e Espanha, entre Trás-os-Montes e a Galiza. O que distingue este território de qualquer outro é o facto de ter sido um país independente pelo menos desde a fundação de Portugal até meio do século XIX. Durante centenas de anos, Couto Misto observou a sucessão de reis em Portugal e dos monarcas dos diferentes reinos que hoje constituem a Espanha sem lhes ser vassalo. Um dos países mais antigos do mundo com eleições por democracia direta, o Couto Misto tinha, no século XIX, 800 habitantes espalhados por terras que hoje são espanholas e portuguesas.

Esta república secular recebeu o primeiro grande golpe aquando das invasões francesas. Um general de Napoleão cujo nome não merece ser repetido resolveu queimar todos os documentos que confirmavam a singularidade e os direitos de Couto Misto. Um crime contra a humanidade, tal como tantos outros cometidos pelos exércitos de Napoleão, e que, ainda hoje, carece de um pedido de desculpa por parte de França. Em vez disso, o nome deste general consta entre os gravados no Arco do Triunfo em Paris. Sei que a História tem de ser vista à luz do seu tempo e que a guerra não é justa, mas a atuação dos generais franceses que lideraram as três invasões de Napoleão foi arrepiante mesmo sob a luz negra do seu tempo. Um bom amigo arqueólogo, não advogando o pedido de desculpa, porque “guerra é guerra”, disse-me “devolverem o que roubaram era interessante”. Sim, concordo, era o mínimo!

O segundo e último golpe deu-se quando Portugal e Espanha resolveram incluir Couto Misto na resolução de um conjunto de disputas fronteiriças em 1864. Qual Salomão, dividiram o Couto Misto em dois ficando uma parte para Espanha e outra para Portugal. Em 1868, o Couto Misto, enquanto país, acabou formalmente.

Há vários anos que conhecia a história de Couto Misto e aguardava apenas a oportunidade certa para o visitar. Estando em Soutelo de Vila Real de Trás-os-Montes, terra da minha cara-metade, e de regresso a Bruxelas de carro, tive finalmente a possibilidade de fazer um pequeno desvio e vislumbrar Couto Misto. Munidos de máscaras e gel para as mãos, com a aplicação de rastreio instalada nos telemóveis e conscientes da necessidade de manter o distanciamento social, entrámos em Couto Misto por terras de Espanha.

Apenas em filmes de terror de má qualidade, vi alguém chegar a uma aldeia e ser severamente avisado para partir de imediato. No entanto, foi exatamente isso que nos aconteceu assim que colocámos um pé em Couto Misto.

Ao nos cruzarmos com o único habitante que vislumbrámos em Santiago de Rubiás, uma das aldeias que constituem o Couto Misto, a resposta ao “buenos días!” no melhor castelhano que consegui improvisar veio num Português de raízes profundamente nortenhas, “Que belo dia encontraram para nos visitar…”.

Estonteados entre o belo e inesperado português das terras setentrionais da Lusitânia e a lisura bruta digna de um Miguel Torga, ainda respondemos, “Sim, de facto está frio” aludindo aos flocos de neve que caiam aqui e ali. A contrarresposta foi tão simples como clara. “Aqui há nove casos. Tenham cuidado e não toquem em nada. Não falem com ninguém e vão-se embora pela vossa saúde.”.

Todos sabemos quão secos, honestos e escorreitos podem ser os transmontanos, com tudo o que isso tem de bom e de mau. Ali, em pouquíssimas palavras, fomos confrontados com uma amostra de Portugal do Norte profundo.

De longe, acompanhei alguns passos daquela boa alma escondida num corpo pesado com mais de um metro e oitenta de altura. Com as asas que não lhe vi, deslocava-se de casa em casa perguntando se estava tudo bem e se podia ajudar. Não vi mais nenhum dos 40 habitantes de Santiago, mas ouvi as respostas, todas em Português com um sibilar de Viseu e uma correia castelhana. Lamentavam a sorte, agradeciam a atenção e terminavam com um “Vai com Deus”.

Com um índice de casos de covid-19 de 22500 por 100 mil, este deverá ser um dos territórios mais contaminados do mundo. Lembro que na União Europeia, numa abordagem simplista, se passa para o nível “vermelho” com apenas 150…

Respeitando as indicações, não falámos com mais ninguém e partimos depois de uma brevíssima passagem pelo adro da igreja para fotografar a estátua do penúltimo juiz de Couto Misto, o líder tradicionalmente eleito, e de darmos uma vista de olhos ao caminho “Privilegiado” que, ao abrigo da independência deste antigo microestado, ligou livremente durante anos e anos os reinos de Leão, da Galiza, de Castela e de Espanha a Portugal. Em poucas palavras, estivemos em terras de contrabandistas legalizados por uma qualquer razão que se perdeu na lonjura dos tempos e por entre as labaredas napoleónicas…

Gostaria de fazer longas dissertações sobre a pertinência, ou não, da revitalização dos privilégios que fizeram de Couto Misto uma história de sucesso, de tenacidade e de sobrevivência ao longo dos séculos. Desejava dissertar sobre o que restou da cultura e sobre a justificação para a origem do termo “Misto” (mistura, partilha ou místico?). No entanto, a pandemia impediu-me de conhecer os habitantes de Couto Misto. Conheci apenas o seu anjo da guarda, que por todos velava, mas foi muito pouco para o que ali nos trazia.

Voltaremos? Penso que sim. Há coisas que me escapam em Couto Misto e que gostaria de entender. Passada a pandemia, iremos a este território vizinho do berço da nacionalidade e cujas raízes antecedem Portugal. Estará ali visível a alma fundadora do nosso país? É demasiado tentador.


sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Crónicas de Bruxelas - 87: Habemus orçamento!

 

Vista do Parlamento Europeu em Bruxelas.
Foto: F Cardigos

Temos orçamento plurianual para a União Europeia e não foi fácil. Depois de mais de dois anos de negociação, com uma pandemia pelo meio, tentando lidar com o Brexit e fazendo face a outros desafios enormes, como o crescimento da extrema direita populista que graça agora pela Hungria e Polónia, foi possível chegar ao fim. Conseguiu-se ligar a disponibilidade de grande parte do orçamento ao cumprimento das regras do Estado de Direito e acordar em injetar 750 mil milhões de euros na economia para amenizar os efeitos da covid-19.

O parágrafo anterior é a prova que a União continua viva e com razoável saúde. E não foi fácil, repito. Para se aprovarem decisões relacionadas com orçamentos (geral e recursos próprios) é necessário que o Conselho decida por unanimidade. Fazê-lo, quando mais de metade dos Estados membros queriam uma vinculação entre o financiamento e o Estado de Direito e dois não o admitiam foi difícil. Demorou tempo até encontrar as formulações que respeitassem a maioria e não fossem inadmissíveis para a dupla de leste.

A fórmula encontrada remete para o Tribunal de Justiça Europeu qualquer decisão final sobre limitações orçamentais ligadas ao beliscar do Estado de Direito. Na realidade já seria assim, mas plasmar esta inevitabilidade nas decisões orçamentais permitiu salvar a face da Hungria e da Polónia.

Ajudou também, parece-me, que um dos eurodeputados, um conservador húngaro cujo nome não merece ser repetido, tenha sido encontrado numa festa de cariz homossexual em Bruxelas em pleno período de confinamento. Ao cair a máscara deste indivíduo, um dos responsáveis pelas limitações constitucionais da Hungria aos direitos dos homossexuais, deixou a claro fortes indícios de gigantes contradições e oportunismos naquele país. Não é apenas uma história de alguém que, em privado, contradizia, pelas suas ações, grande parte do que defendia em público. É a imagem de um regime que movimenta os medos das pessoas em geral para controlar a justiça e a comunicação social. Para quem esteja menos informado, lembro que homossexuais já foram apedrejados na Polónia e se este foi, até ao momento, um caso isolado, as chamadas “zonas livres de LGBT” não o são. Uma vergonha a que acresce, na Hungria, a férrea e intolerante na definição de casal na Constituição. A União Europeia está atenta e fez o que tinha de ser feito, limitando o financiamento ao respeito do Estado de Direito. Era muito importante e ficou feito!

Ao escrever estas linhas, recebo mais uma informação. O Parlamento Europeu e o Conselho acabam também de chegar a acordo quanto ao Programa LIFE+. São mais 5,4 mil milhões de euros, neste caso dedicados a conservar a natureza. Para aceder ao LIFE+ é necessário apresentar candidaturas e a competição com outras oriundas de toda a União Europeia é rude! Tal como acontece com os fundos para a Ciência, o programa Horizonte Europa, também é muitíssimo difícil obter financiamento através do LIFE+. Apenas 20% das candidaturas apresentadas acabam por ser financiadas. Nos Açores, nos últimos anos, temos tido a capacidade de cativar uma parcela muito interessante do LIFE+, tendo em execução projectos em diversas componentes da biodiversidade insular. Caso se mantenha este nível de excelência e sucesso, uma parte dos 5,4 mil milhões de euros terão como destino certo a Região Autónoma dos Açores.

Temos orçamento, mãos à obra!