sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Crónicas de Bruxelas - 84: Sobre a covid-19 na China


Família Brennan na China.
Foto: Simon Brennan


Por uma questão de proximidade, por vezes, somos tentados a pensar que somos o centro do mundo. Na realidade, não é de todo assim. A União Europeia tem menos de 500 milhões de habitantes, o que representa menos de metade de outros países, como a China ou a Índia. Nestes países, a complexidade de um problema com abrangência global aumenta, potencialmente, para mais do dobro quando comparado com a União Europeia. Sendo assim pergunto-me como é gerida a covid-19 nesses países? O que podemos aprender? Da Índia, nada sei. No entanto, da China, sei e muito! Isso graças a um primo meu que emigrou e constituiu família há uma dezena de anos no país da Grande Muralha, o professor Simon Brennan. Com a sua autorização, traduzo e partilho parte de uma mensagem que enviou recentemente à família:

A vida aqui está totalmente de volta ao normal, exceto que a maioria de nós ainda usa máscaras. Na cidade onde moro não há nenhum caso endógeno há mais de 3 meses e os novos casos são de pessoas que chegam de avião. Existem grandes diferenças entre a China e a maioria dos outros países.

Ouvi dizer que, agora, algumas pessoas estão a usar uma aplicação de rastreamento em Portugal. Uma dessas aplicações é aqui usada há mais de 6 meses e ninguém reclamou. Na verdade, ninguém reclamou de qualquer medida preventiva em qualquer momento nos últimos 9 meses. Assim que os primeiros relatórios foram divulgados na China sobre o surto em Wuhan, eu e todos os outros em todo o país estávamos a usar uma máscara. Não foi preciso dizerem-nos. Era tão óbvio como usar um guarda-chuva à chuva ou tirar a roupa antes de tomar banho. Não há aqui pessoas a inventar teorias da conspiração ridículas ou mesmo seguindo qualquer uma das loucuras que vêm do oeste. Há definitivamente um lado positivo em ter o Facebook, o YouTube e o Twitter bloqueados.

As pessoas na China são muito eficientes a economizar dinheiro. A maioria das famílias tem dinheiro economizado para emergências. Apesar da pandemia e de não poder trabalhar, tivemos sempre o necessário para viver, comer e sobreviver durante esta emergência. A todos no país foi dito para ficar em casa. Qualquer coisa que se queira comprar pode ser entregue por motociclistas em qualquer lugar da China e é cobrada uma sobretaxa muito pequena por isso, cerca de 1 euro por entrega. Assim, praticamente todos puderam ficar em casa, viver das suas economias e ter tudo entregue, fosse comida, mantimentos, papel higiénico, livros, roupas, o que fosse.

Além disso, além da aplicação de rastreamento, todos estivemos a ser rastreados desde o primeiro dia. Sempre que se entrava num prédio público de qualquer tipo: loja, correio, hospital, qualquer coisa, era necessário registar o nome, telefone, número do BI e a hora de chegada e a hora de partida. Então, no caso de haver um teste positivo, as autoridades identificavam qualquer pessoa que estivesse estado na vizinhança durante as 24 horas anteriores, usando essas informações de rastreamento. Acrescentavam-se as pessoas que moravam no mesmo bloco de apartamentos e qualquer pessoa com quem esse positivo dissesse ter tido contato nas últimas duas semanas. Todas essas pessoas eram imediatamente testadas e colocadas em quarentena até que os testes tivessem resultados. Se algum desses testes fosse positivo, o processo repetia-se.

Tivemos mini-segundas vagas. Hoje, sempre que é encontrado um caso de transmissão local, as precauções mencionadas acima entram em ação e, em poucas horas, todos que os possam estar infetados são confinados. Ninguém reclama, pois todos percebem que é do interesse comum. Funcionou às mil maravilhas e estamos todos melhor com isso.

A China teve a vantagem de ter tido a experiência da SARS em 2002. Esta doença preparou-os para este novo surto. MERS, SARS e ébola eram problemas de outros para a maioria das pessoas fora da Ásia e da África. Mas a China teve sua aula prática e estava totalmente preparada para a sequela: a covid-19. A minha esposa comprou uma abundância de máscaras, luvas, lenços anti-sépticos, sabonete e álcool medicinal assim que Wuhan se tornou notícia nacional. Ela mostrou-me a mim e à nossa filha como lavar as mãos corretamente. Mostrou-nos o procedimento de descontaminação completo que eu tinha que seguir cada vez que chegava a casa. O processo demorava 15 minutos e envolvia borrifar todas as minhas roupas com álcool medicinal, removê-las e pendurá-las no varão por, pelo menos, 24 horas, lavar as minhas mãos cuidadosamente, limpar o meu telefone, chaves, maço de cigarros e isqueiro com toalhetes com álcool, em seguida, lavar as minhas mãos novamente e, finalmente, vestir-me com um conjunto de roupas limpas. Tudo o que chega de fora foi (e ainda é) limpo. Isso inclui cada saco de plástico, cada embalagem de cada alimento que é comprado. Nunca estive tão limpo em qualquer outra época da minha vida.


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

A Sustentabilidade do Mar dos Açores em celebração do Dia Nacional do Mar 2020

 


Fêmea de Bodianus scrofa ou peixe-cão.
Foto: Frederico Cardigos, nas Formigas, Mar dos Açores, Mar de Portugal

O Dia Nacional do Mar relembra e celebra a entrada em vigor da "Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar". Foi em 16 de novembro de 1994 que esta Convenção deu corpo a conceitos que, hoje, dada a sua vulgaridade, parecem ter sempre existido. Na realidade, “Zona Económica Exclusiva” e “Plataforma Continental (senso jurídico)”, entre outras, são expressões que apenas ganharam contornos legais nesse ano e, em Portugal, ainda mais tarde, quando ratificou a convenção em 1997.

Deixando para outros, mais habilitados, a tarefa de partilhar detalhes sobre esta que é uma das principais convenções estabelecidas pela Organização das Nações Unidas, pela minha parte é o momento adequado para refletir sobre o Mar dos Açores. O que está feito, o que pode ser feito e quais os conflitos previsíveis.

Em termos metodológicos, há diversas formas de analisar um determinado tema. No que ao uso do mar diz respeito, considero que se aplica facilmente a sequência de implementação de processos sustentáveis: conhecimento, planeamento, ação, monitorização, balanço e recomeço da sequência. Dando vários exemplos concretos para cada uma das etapas, será esta a minha forma de exposição e análise.

 

Conhecimento

Muito por responsabilidade dos departamentos de oceanografia e pescas e de biologia da Universidade dos Açores, há, em termos comparativos com outras regiões, um elevado conhecimento sobre o meio marinho que nos rodeia. Longe de mim considerar que se conhece tudo. Nada mais longe da verdade! O mar dos Açores é profundo, inóspito e com acesso muito difícil pelo que se torna praticamente impossível tudo saber. Há muito e bom trabalho pela frente, mas há que ter consciência que o mar dos Açores reservará sempre para si alguns dos seus segredos.

Neste momento estão em curso diversos investimentos que podem melhorar o acesso ao mar dos Açores e ao desvendar dos seus segredos. Refiro-me particularmente ao AIR Centre e ao Observatório do Atlântico. Com apoio constante da Fundação para a Ciência e Tecnologia, do Fundo Regional para a Ciência e Tecnologia e dos respetivos governos, o AIR Centre foi-se impondo e tem já um interessante manancial de projetos de investigação orientados para o conhecimento do mar, da atmosfera e do espaço financiados pelas competitivas verbas europeias.

No documento proposto por António Costa e Silva para a Recuperação e Resiliência de Portugal constava uma “Universidade do Atlântico com base nos Açores”. Por razões que me escapam, na versão corrente desse instrumento entregue na Comissão Europeia deixou de haver essa menção e passou-se a expressões pouco concretas que me fazem recear o pior. É pena se o arquipélago perder esta oportunidade - uma instituição que enormes sinergias poderia fomentar com a Universidade dos Açores, com a Escola do Mar no Faial, com o AIR Centre na Terceira e com o Observatório do Atlântico. Há que ter objetivos com nível de excelência e exigentes, que aproveitem as nossas idiossincrasias únicas e que mobilizem em uníssono os atores regionais e nacionais. A Universidade do Atlântico seria tudo isso.

Apesar de recentemente ter sido criado um programa de bolsas para facilitar a entrada de cientistas nas empresas, alguns empresários do sector marinho nos Açores informaram-me que ainda sentem falta de uma transmissão do conhecimento de alto nível para o mundo da economia real. Sem conhecimento adequado, “as decisões tendem a ser empíricas, o que muito prejudica o negócio”, afirmou-me o dono de uma empresa azul com sede na ilha do Faial. Ou seja, apesar do bom trabalho já realizado, há agora que ir ainda mais longe.

A um nível mais técnico, a Escola do Mar do Faial é um instrumento fundamental para formar, treinar e certificar os profissionais e os amantes do mar. Agora, após ter entrado em funcionamento, há que ir reforçando, refrescando e renovando as tecnologias disponíveis e estabelecer as parcerias nacionais e internacionais que lhe permitam ser uma escola de excelência e de referência. Ao mesmo tempo, há que alargar a abrangência interna, eventualmente estabelecendo parcerias com os clubes navais e associações de pescadores da Região. Será um trabalho constante, mas o potencial de sucesso é enorme. As pessoas que se interessam pelo usufruto do mar conhecem algumas escolas internacionais que ressoam no nosso imaginário e que apenas alguns afortunados tiveram a oportunidade de frequentar. Refiro, por exemplo, “Les Glénans”, em França, e, estou certo, os olhos de alguns que me leem brilharam e outros, como eu, suspiraram…

 

Planeamento

A fase de planeamento é aquela que a mim, pessoalmente, me dá mais prazer. Considero fascinante pensar nas diferentes abordagens, assistir ao confronto com os utilizadores e verificar como os decisores fazem a necessária síntese. Os processos de planeamento, para terem sucesso em termos de amadurecimento e de inclusão, são morosos e exigem, muitas vezes, ouvir posições razoavelmente antagónicas. Haver posições que para uns são “óbvias” e para outros “deslocadas” é absolutamente normal no início dos processos participativos. A arte é construir pontes e, pacientemente, chegar às melhores conclusões.

Nos Açores, o passo mais esperado em termos de planeamento é o Plano Ordenamento do Espaço Marítimo dos Açores. Alguns dos atores privados que consultei para enriquecer a redação deste artigo disseram-me que aguardam com expectativa este documento para que possam avançar com investimentos de algum vulto. Depois de vários anos de construção, o POEMA (que belo acrónimo!) deve estar praticamente pronto. Este será um ótimo empurrão para o novo Governo dar ainda mais dinâmica à utilização do mar.

A nível nacional termina, precisamente hoje, a consulta pública para a nova versão do instrumento que norteará todo o uso do espaço marítimo: a Estratégia Nacional para o Mar. No dia 4 de novembro, de acordo com as notícias que então vieram a público, já havia cerca de 200 contribuições escritas. Considero que este é já um bom indicador do interesse dos portugueses para os assuntos do mar e que em muito contribuirá para atingir a visão aí proposta: “Promover um oceano saudável como forma de potenciar o desenvolvimento azul sustentável, o bem-estar dos portugueses e afirmar Portugal como líder na governação do oceano, apoiada no conhecimento científico”.

A nível europeu, os dois documentos estratégicos determinantes para o mar são o Pacto Ecológico Europeu e a Estratégia para a Biodiversidade em 2030. Ao ler os objetivos aí contidos, ficamos com uma ideia clara sobre a oportunidade de investir na utilização sustentável do ambiente marinho. As metas são ambiciosas e exigirão um esforço por parte de todos, incluindo as regiões ultraperiféricas da União Europeia, onde se incluem os Açores.

Em contexto internacional, neste momento procuram-se soluções para gerir adequadamente o alto-mar. Dentro da ONU, diversos organismos tentam estabelecer regras e têm tido um auxílio precioso da Comissão do Mar dos Sargaços, onde os Açores participam e são signatários. Nesta organização promovem-se ações práticas para ajudar a gerir mar que ao ser de todos, vítima da “tragédia dos comuns”, se arrisca a não ser protegido por ninguém.

 

Ação

Habitualmente, o passo mais difícil na concretização de projetos é passá-los à ação. Quando se chega à fase que exige colocar “dinheiro sobre a mesa”, o decisor, com alguma razão, pensa duas vezes, receando que não seja aquele o investimento necessário. Compreendo que há uma responsabilidade no uso das verbas públicas e privadas que inibe a passagem à ação, mas é necessário fazê-lo. Com sensatez, há que assumir algum risco e ter a coragem de avançar com projetos que, muitas vezes, nasceram de um benigno delírio de alguém.

Outro dos entraves à concretização é a morosidade dos processos de licenciamento. O nosso país tende a complicar e isso tem de acabar. Há que, constantemente, rever os procedimentos para garantir a celeridade da necessária avaliação inerente ao licenciamento, mas, obviamente, sem jamais arriscar os limites ambientais, a adequação social ou a viabilidade económica. “Aprovação” ou “não aprovação”, mas rapidamente. Não é o caso dos Açores, mas, no Continente Português, os investimentos em aquacultura, já de si muito onerosos, exigiam mais de uma dezena de autorizações e pareceres de diferentes autoridades antes de poderem ver a luz do dia. Não fazia sentido e o procedimento para o licenciamento na aquacultura foi melhorado, mas a simplificação legal é um trabalho que exige atenção constante. Há novas tecnologias, novos procedimentos e o licenciamento tem que ter isso em conta.

Um dos processos que dificilmente sairá da gaveta é a extração de minerais no mar profundo dos Açores. As três condições para a iniciativa avançar nunca se concretizaram e parece tudo ter ficado pelo caminho: não há tecnologia adequada para extrair os minerais, não há necessidade dos recursos a extrair (que podem, por enquanto, ter origem terrestre ou na economia circular) e não se provou a adequação ambiental da extração. Relativamente a este último ponto, lembro que o projeto científico financiado a nível europeu e de que fez parte do DOP, na Horta, indiciou exatamente isso: o impacto ambiental potencial é elevado. Isso significa que eventuais promotores terão a árdua tarefa de provar o contrário, ou seja, que a extração de minerais no mar profundo não prejudica os mananciais piscícolas e os cetáceos. Parece-me difícil… Por outro lado, por parte da Região, devemos preparar-nos para, caso a atividade avance, a acompanhar do ponto de vista da monitorização. Apenas podemos garantir um oceano saudável se lhe conseguirmos aceder e para isso são necessárias pessoas competentemente formadas e instrumentos.

Nos Açores, ao longo das últimas dezenas de anos, temos visto nascer inúmeros projetos da economia do mar absolutamente fantásticos e, na maioria dos casos, a darem certo. Lembro as empresas que usam a maravilhosa biodiversidade dos Açores e que fazem observação de cetáceos, mergulho com tubarões e até tubarões-baleia, natação com jamantas e mergulho com escafandro autónomo, e junto aquelas que, com uma perspetiva extrativa, valorizam o pescado dos Açores para uso local ou exportação. Acrescento as empresas de índole mais marítima, como o aluguer de iates e os transportes marítimos de carga e passageiros. Desde o início dos nos 90 que tivemos todos o grato privilégio de assistir ao crescimento da economia azul e o potencial está longe de ser preenchido. Há que investir mais, investir ainda melhor e usufruir dos resultados. Por exemplo, o património cultural arqueológico subaquático dos Açores, que foi recentemente classificado a nível europeu, pode ajudar a fomentar novas opções para o turismo de mergulho com escafandro autónomo. De antigas tragédias, os verdadeiros naufrágios dos Açores têm hoje muito para nos dar e não são apenas histórias...

Para que esta azáfama resulte é necessário criar as parcerias internas e externas adequadas. Atualmente, resultado da pandemia, é difícil participar presencialmente nos fóruns que catalisam estas sinergias. Tentando rumar em sentido contrário, precisamente amanhã, a Câmara do Comércio Belgo-Portuguesa organiza as “II Rotas da Economia Azul da Bélgica e Portugal”. Será mais uma oportunidade para os empresários dos Açores.

Na realidade, apesar de me ter detido muito na ação de empresas e governos, a ação ambiental marinha é algo que apela a todos os cidadãos. A campanha SOS Cagarro, provavelmente a mais antiga campanha ambiental de Portugal, salva milhares de aves marinhas todos os anos no arquipélago. Largas dezenas de milhares de açorianos já “salvaram um cagarro, fizeram um amigo”.

 

Monitorização

Qualquer investimento e atividade tem que ser permanentemente acompanhado para garantir que os objetivos são cumpridos, que são criados os estímulos para que tenha sucesso e que não há excessos. Para além de, na maioria dos casos, ser um imperativo legal, é um crucial ato de sensatez.

“Monitorização” é uma palavra simpática, mas que, na realidade, aglutina quatro conceitos razoavelmente distantes, quase antagónicos: observação, acompanhamento, regulação e fiscalização. Se com o acompanhamento se pretende estar ao lado dos promotores, a fiscalização deve ter um razoável distanciamento dos atores do investimento, verificar o cumprimento da legislação e, em caso de falha, autuar implacavelmente. Entre os dois, as entidades reguladoras são um elemento essencial para observar as grandes variáveis, como o estado do ambiente, e propor novos procedimentos e regras que, mais tarde, se poderão transformar em novas leis.  

A observação é essencial para atingir os grandes objetivos definidos pela Organização das Nações Unidas através da Agenda 2030. Os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável têm metas precisas para o ambiente marinho. A título de exemplo, como se pode ler no Objetivo 14, “Proteger a Vida Marinha”, “Até 2020, [há que] conservar pelo menos 10% das zonas costeiras e marinhas, de acordo com a legislação nacional e internacional, e com base na melhor informação científica disponível.”. Apenas poderemos verificar se esta meta em concreto foi atingida caso haja monitorização que verifique o estado de conservação das zonas costeiras e marinhas. Portanto, até ao final de 2020, há que avaliar o estado das zonas costeiras. Estamos preparados para responder?

Os navios de investigação são importantes instrumentos para fazer essa observação marinha e, em simultâneo, ciência. Amanhã, em Portugal Continental será batizado o N/I “Mário Ruivo”, que constituirá mais uma peça fundamental para estudar o oceano, incluindo o Mar dos Açores. No entanto, o nosso N/I “Arquipélago” tem de ser substituído. Não podemos reivindicar um mar que não monitorizamos adequadamente. Os 27 anos e 25 metros de comprimento do navio de investigação dos Açores são, respetivamente, excessivos e insuficientes para os 4 milhões de quilómetros quadrados de plataforma continental (senso jurídico) que nos rodeiam. O N/I “Arquipélago” fez um extraordinário trabalho, a tripulação é admirável e os cientistas embarcados produziram ciência de alto nível, mas está no momento de proporcionar uma nova plataforma aos cientistas dos Açores e seus convidados. Se queremos continuar a ganhar verbas do mais exigente programa da Comissão Europeia, o Horizonte Europa, temos que possuir um navio de investigação condizente.

O financiamento para a observação e inerente caracterização dos sistemas marinhos tem diferentes géneses. No entanto, um dos mais complexos, valiosos e almejados é o programa LIFE da Comissão Europeia. O Governo dos Açores investiu e implementou uma equipa que aprendeu a concorrer e a ganhar projetos submetidos a financiamento LIFE. As verbas assim angariadas estão longe de ser inertes e são altamente consequentes para a conservação da natureza e seu uso sustentável, por exemplo, através do Turismo.

O acompanhamento dos diferentes processos é realizado por diversas instituições com maior ou menor grau de governamentalização. As organizações que mais longe estão do Governo, as ONG, são fundamentais para acompanhar os diferentes processos com sentido crítico fundamentado. No caso dos Açores, há apenas uma ONG totalmente dedicada ao mar, o Observatório do Mar dos Açores (OMA) com sede no Faial. Na minha opinião e apesar do extraordinário trabalho feito pelo OMA, é manifestamente insuficiente para a dimensão marítima do arquipélago. As ilhas do Grupo Oriental precisam de uma ONG marinha. Não pode ser o Governo a estimular o aparecimento de uma ONG, até porque isso iria contra a independência fundamental que se exige a uma organização com esta tipologia. Terão de ser os interessados a liderar e a estabelecer novas ONG.

Este acompanhamento das atividades, no caso da pesca profissional europeia, é também realizado pelos chamados “Conselhos Consultivos” (CC). Há diversos CC de acordo com a geografia ou a tipologia do processo da pesca em causa. Recentemente, foi instalado o CC dedicado às regiões ultraperiféricas e a sua sede localiza-se nos Açores. É mais um resultado que enfatiza a liderança e a inspiração que as nossas ilhas proporcionam.

Ainda há falhas na fiscalização dos mares. No caso dos Açores, por exemplo, é notória a falta de fiscalização sobre as áreas marinhas protegidas contidas no Parque Marinho dos Açores. Como lhes compete, a Inspeção Regional das Pescas e a Inspeção Regional do Ambiente apontam baterias à fiscalização essencialmente em terra e a Marinha Portuguesa tem demasiadas solicitações. No meio, sem resguardo adequado, ficam as áreas marinhas protegidas costeiras e o resultado não é positivo, há que reconhecer. Há aqui uma nítida oportunidade de melhoria. Admito que não tenho a solução milagrosa, mas talvez sentar à mesma mesa as partes interessadas possa ser um bom começo.

 

Balanço

O balanço é, no fundo, uma avaliação profunda que acompanha a fase final de qualquer processo. Entre outras técnicas, muitas vezes usa-se a análise “pontos fortes, pontos fracos, oportunidades e ameaças” (ou “SWOT”, no acrónimo em inglês). Nesse caso, representantes das partes envolvidas lideradas por especialistas devem fazer esta análise, reportar e influenciar os novos procedimentos.

Quando um qualquer processo dá nitidamente certo ou nitidamente errado, há a tentação de saltar esta importante fase de construção da sustentabilidade. No entanto, é essencial fazer esta reflexão. Talvez por terem a obrigação legal de o fazer, a nível europeu estas análises são uma constante, mesmo antes do início do processo. Tipicamente contratadas a empresas privadas de consultadoria, as chamadas análises ex ante e ex post são documentos essenciais, de uma enorme riqueza e com os quais já aprendi muito, essencialmente, na área dos acordos internacionais para as pescas.

 

Recomeço da sequência

Munidos da experiência, dos resultados e da avaliação, em qualquer procedimento dito sustentável há que verificar a pertinência de o recomeçar e em que circunstâncias. Por exemplo, o centro de energia das ondas do Pico, instalado no Cachorro, foi um procedimento que não teve sequência. Apesar de ter constituído uma importante base para o estudo da energia das ondas, a falta de interesse por parte de atores fundamentais votou-a ao abandono e desmantelamento. Ao verificar como procedimentos similares estão a ser extraordinariamente bem-sucedidos em diversos locais da Europa, parece-me que está em falta uma avaliação séria sobre a pertinência e contexto para instalar uma base para estudo e usufruto de energias alternativas marinhas e decidir se e como este processo deveria ter reinício.

 

Finalizando com os olhos no futuro…

Por estes dias, o “Lula” tem estado em missão no arquipélago da Madeira. O mais potente submarino privado de Portugal é propriedade da Fundação Rebikoff-Niggeler e tem sede na ilha do Faial. Este submarino amarelo já forneceu imagens fantásticas para documentários da BBC e, mais importante, novas espécies e habitats para a ciência e para a humanidade. Entre os Açores e a Madeira, que novidades nos trará este pequeno Neptuno do mar profundo de Portugal?

Por último, quero reiterar que apenas temos um planeta para viver, sonhar e sermos felizes. Erradamente, a esse planeta deram o nome de Terra. No nosso arquipélago, em que somos lava, mar e maresia, saibamos usar e preservar o Planeta Oceano que nos rodeia.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Crónicas de Bruxelas - 83: Quinze minutos de leitura


Lendo "Uma Aventura Corvina", de José Carlos Magalhães Cymbron

Desde há cinquenta anos, um programa de rádio divulga o Jazz do mundo em Portugal. Quando trabalhava no nosso país, ouvia esta emissão sem grande atenção, mas com prazer. Chama-se “Cinco minutos de Jazz” e, nela, o autor, José Duarte, faz-nos viajar por um qualquer tema, compositor ou instrumentista através de estilos que vão do “New Orleans, ao swing, do bebop ao hard bop e ao free jazz”, como indicado no sítio internet da RDP.

Invariavelmente, trauteava os acordes e a melodia passava a acompanhar-me pelo resto do dia, como uma quase impercetível aula de tolerância e abertura à diversidade musical. Fui aprendendo a conhecer e a apreciar este género com os “Cinco minutos de Jazz”. "1, 2, 3, 4, 5 minutos de jazz"!

Dado este historial, quando em Bruxelas ouvi a diretora de uma escola secundária referir as palavras “quinze minutos de leitura”, rendi-me de imediato. Apenas podia ser uma fórmula ganhadora! Mas seria mesmo…?

Naquela escola secundária, dois dias por semana, as aulas param ao som de um sino e, durante quinze minutos, todo o pessoal escolar lê. Desde o mais pequeno dos alunos, passando pelos professores, até ao mais idoso dos auxiliares de ação educativa, todos se sentam, abrem o livro que escolheram antecipadamente e atacam as letras, palavras, linhas, parágrafos, páginas e capítulos. Durante 15 minutos dedicam-se à aventura, ao drama ou à comédia que estiver escondida por entre aquelas folhas de papel.

A própria diretora desce do seu gabinete, também com o seu livro debaixo do braço, e junta-se a uma turma ou a um dos múltiplos grupos de leitura que já nascem de forma razoavelmente desorganizada. Durante quinze minutos impera o silêncio, apenas obscurecido pelo murmurar quase surdo do juntar de sílabas que fazem os mais jovens ou pelo virar de mais uma página.

Tem sucesso?”, perguntei com o olhar desconfiado de quem não acredita nas novas gerações, vítimas oferecidas ao tuíter, ao tique-tóque e ao faissebuque. “Agarram-se aos livros e não querem parar!”, afirmou com um não disfarçado entusiasmo. “Aliás, a ideia foi deles. Publiquei no nosso boletim de segunda-feira a experiência que nasceu na Turquia e que se multiplicou por outros países, incluindo na Bélgica, e foi a comunidade escolar a sugerir que fizéssemos o mesmo. A iniciativa foi da comunidade escolar e tem estado a correr bem.”. Complementou dizendo que algumas turmas já estão a constituir as suas próprias bibliotecas e onde incluem outros objetos alusivos às tramas que leram.

Tento imaginar que livro escolheria, caso fosse estudante neste liceu. Que me lembre, o primeiro livro que li foi “As Aventuras de Tom Sawyer”, de Mark Twain. Não teria gostado de o ler em frente a outras pessoas, até porque chorei com algumas passagens… Talvez escolhesse “A Crónica dos Bons Malandros” do Mário Zambujal, como sinal de rebeldia, ou o “Amor nos Tempos da Cólera”, porque sempre gostei de literatura sul-americana e este livro do Gabriel García Márquez foi publicado precisamente quando eu andava no liceu. Pergunto-me que livros escolherão e quais as razões da escolha… Tenho que perguntar na próxima vez que vir a diretora da escola.

Em Bruxelas, no meu bairro, há uma outra escola que levou esta ideia ainda mais longe. Adaptou o horário escolar e os 15 minutos de leitura passaram a fazer parte do quotidiano oficial da comunidade todos os dias da semana. Com estes interessantes passos, alguns jovens belgas estão progressivamente a voltar aos livros e à leitura. Parece-me uma iniciativa a equacionar pelas escolas nos Açores, se é que ainda não o estão a fazer…

Fica a ideia!