sexta-feira, 29 de março de 2024

O Imperativo da Reforma Eleitoral em Portugal

 

O Imperativo da Reforma Eleitoral em Portugal

 

Estava preocupado, sentia a responsabilidade do meu dever de votar. Pensava em todos os que lutaram pela democracia em Portugal, que lutaram e morreram pelo simples direito a votar e estava preocupado que o meu voto, colocado na urna no consulado no Luxemburgo, não chegasse a tempo ao meu círculo eleitoral no Faial (Açores). Noutras eleições, um pouco aleatoriamente, umas vezes o voto chegou a tempo, outras não. Nas eleições anteriores consegui mesmo ir aos Açores, mas, desta vez, limitações laborais impediram a minha deslocação.

Correu bem e o voto chegou a tempo! Ótimo!

No entanto, este processo tem que acabar. No tempo da informática, não faz qualquer sentido votar num papel, transportar fisicamente esse papel até milhares de quilómetros de distância e, depois, um conjunto de seres humanos serem chamados para o contabilizar. Muitos dizem que a segurança do processo eleitoral exige estas metodologias antiquadas, onerosas e ambientalmente desadequadas.

Claro que isso é uma conveniente falta à verdade. Na minha opinião, a verdade é que a inércia de quem legisla e de quem gere o processo eleitoral tem atrasado um processo inevitável e necessário. Evidentemente, se o Estado usa processos computorizados para comunicar com os cidadãos e se mesmo os nossos impostos são pagos por processos telemáticos, por que razão o voto, um processo tão simples, exige que um papel dê a volta ao mundo? São coisas de Estado rico!

Se, por acaso, tivéssemos índices de participação eleitoral elevados, eu até entendia que não houvesse um esforço para fazer melhor. Agora reparem, há uma grande discussão porque o partido antissistema teve cerca de um milhão de votos. Admito que é muito e merece reflexão, até por respeito por todos aqueles que lutaram pela democracia e que eu mencionava no início deste escrito. No entanto, não merece também preocupação ter havido cerca de três milhões de abstencionistas?! Três milhões de pessoas que estavam em condições de votar e que abdicaram de o fazer!? Isto tem de ser pensado. Pelo menos, tem de ser esclarecido o que leva tantas pessoas a abdicar de exercer o seu direito e o seu dever cívico.

Talvez seja necessário aprender umas coisas com a Bélgica a esse nível. Este país que acolhe muitos dos que me leem já tem o voto eletrónico implementado há mais de trinta anos! Não é um dia ou dois, são trinta anos! Nós, no nosso belo país à beira-mar plantado, ainda estamos na preguiçosa fase do projeto-piloto. Quantas pessoas que não podem ou não querem deslocar-se até à mesa de voto ou que se recusam a enviar cópia do seu bilhete de identidade dentro de um envelope, se prestariam a votar remotamente a partir do conforto do seu lar ou do seu local de trabalho? Particularmente para os emigrantes, como eu, isso seria um excelente serviço prestado pelo Estado. O voto eletrónico é um passo necessário para se poder votar remotamente, mas não é o único e, na Bélgica, não se vota remotamente. No entanto, caso o decidam fazer, já estão com um passo de trinta anos à nossa frente.

Outra coisa que poderíamos aprender com a Bélgica e com o Luxemburgo está relacionado com a obrigatoriedade do voto. Durante o Estado Novo, em Portugal, o voto era informalmente obrigatório porque permitia identificar quem apoiava os apelos à abstenção promovidos pela oposição. Isso pode justificar parte da resistência à obrigatoriedade de voto em Portugal. Somos também o resultado da nossa História.

O racional essencial do voto obrigatório insere-se no contexto de que os cidadãos têm algumas obrigações básicas a cumprir perante o Estado. Uma dessas obrigações é respeitar a lei, incluindo pagar os impostos, e, para estes dois países, votar. Que contributo dá um cidadão ao seu Estado se nem sequer vota?! Sinceramente, gosto muito das liberdades, mas custa-me a admitir que o esforço de votar seja assim tão elevado.

Com a Estónia, um país avançado em termos de informatização do processo eleitoral, talvez pudéssemos aprender que é possível ter um sistema em que os eleitores podem votar antecipadamente por via eletrónica, voltar a votar, para o caso de se terem enganado ou terem sido coagidos, e ainda podem optar por votar fisicamente no dia das eleições. Obviamente, conta apenas a última ação, sendo anuladas as anteriores. Seguir os bons exemplos não significa copiá-los; significa apenas fazer alguma coisa e inspirados pelos melhores…

Por último, uma lição que a nação poderia aprender com os Açores era a criação de um círculo nacional de compensação que recolhesse os votos dos eleitores que não contribuíram para eleger deputados. Por exemplo, em Portalegre, em Bragança, nos círculos da Europa e do resto do mundo apenas dois partidos elegeram deputados. Todas as dezenas de milhares de pessoas que nestes quatro círculos votaram noutros partidos viram os seus votos não contarem para nada. Claro que é desmotivador, tendo a concordar, e quem vê o seu voto ir para o “lixo” deve pensar duas vezes antes de ir votar na próxima vez.

Talvez, inicialmente, este círculo de compensação pudesse ter uma dezena de deputados. Parece-me um bom número para a experiência. Depois, verificar-se-ia como funcionava e afinar-se-ia o processo. Para além das vantagens relacionadas com o aproveitamento dos votos e de ser potencialmente mobilizador de parte dos abstencionistas, haveria ainda que considerar que este círculo poderia fomentar ainda mais a coesão nacional, até porque grande parte dos votos teriam origem nas circunscrições menos povoadas, em que mais votos são perdidos.

Uma das vantagens de fazer parte de uma organização como a Câmara do Comércio Belgo-Portuguesa é estar inserido num grupo que pensa e dialoga sobre estes problemas. Apoiados na experiência obtida por cada um nas suas diferentes realidades, conseguimos ver mais longe e propor soluções. Há que ser imaginativo e dar contributos para vitalização da democracia. A inspiração pode e deve vir dos exemplos inquestionavelmente democráticos que existem na União Europeia. Na minha opinião, em vésperas dos 50 anos do 25 de Abril, da muito nossa Revolução dos Cravos, a democracia em Portugal está a precisar dessa boa inspiração.

Feliz Páscoa para todos vós e para as vossas famílias!

 

Frederico Cardigos é vice-presidente da Câmara do Comércio Belgo-Portuguesa e é biólogo marinho no Eurostat. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da União Europeia.

 


 English translation:

The Imperative of Electoral Reform in Portugal

I was worried, I felt the responsibility of my duty to vote. I thought of all those who fought for democracy in Portugal, who fought and died for the simple right to vote, and I was worried that my vote, placed in the ballot box at the consulate in Luxembourg, wouldn't reach my constituency in Faial (Azores) in time. In other elections, somewhat randomly, sometimes the vote arrived on time, sometimes not. In previous elections, I did manage to go to the Azores, but this time, work constraints prevented me from going.

It went well and the vote arrived on time! That's great!

However, this process has to stop. In the age of information technology, it makes no sense to vote on a piece of paper, physically transport it thousands of kilometers away and then have a bunch of human beings called in to count it. Many say that the security of the electoral process requires these antiquated, costly and environmentally unsound methodologies.

Of course, this is a convenient lack of truth. In my opinion, the truth is that the inertia of those who legislate and those who manage the electoral process has delayed an inevitable and necessary process. Of course, if the state uses computerized processes to communicate with citizens and if even our taxes are paid by telematic processes, why does voting, such a simple process, require a piece of paper to go around the world? These are the things of a rich state!

If, by chance, we had high voter turnout rates, I could understand not making an effort to do better. Now look, there's a big discussion because the anti-establishment party got around a million votes. I admit that it's a lot and deserves reflection, not least out of respect for all those who fought for democracy and whom I mentioned at the beginning of this article. However, isn't it also worrying that there were around three million abstainers?! Three million people who were in a position to vote and who refrained from doing so? This needs to be considered. At the very least, it needs to be clarified why so many people gave up exercising their civic right and duty.

Perhaps we need to learn something from Belgium in this respect. This country, which is home to many of you, has had electronic voting in place for over thirty years! Not a day or two, thirty years! We, in our beautiful country by the sea, are still in the lazy phase of the pilot project. How many people who can't or won't travel to the polling station, who refuse to send a copy of their ID card in an envelope, would be willing to vote remotely from the comfort of their home or workplace? Particularly for emigrants like myself, this would be an excellent service provided by the state. Electronic voting is a necessary step towards being able to vote remotely, but it's not the only one, and in Belgium, remote  voting does not exist. However, if they decide to do so, they are already thirty years ahead of us.

Another thing we could learn from Belgium and Luxembourg relates to compulsory voting. During the Estado Novo in Portugal, voting was informally compulsory as it allowed to identify those who supported the opposition's calls for abstention. This may explain some of the resistance to compulsory voting in Portugal. We are also the result of our History.

The essential rationale for compulsory voting is that citizens have some basic obligations to fulfil towards the state. One of these obligations is to respect the law, including paying taxes, and for these two countries, voting. What contribution does a citizen make to their state if they don't even vote?! Frankly, I'm very fond of freedoms, but I find it hard to admit that the effort involved in voting is so high.

 

With Estonia, an advanced country in terms of computerizing the electoral process, perhaps we could learn that it is possible to have a system in which voters can vote electronically in advance, vote again in case they have made a mistake or been coerced, and can even choose to vote physically on election day. Obviously, only the last action counts and the previous ones are annulled. Following good examples doesn't mean copying them; it just means doing something and being inspired by the best...

Finally, one lesson the nation could learn from the Azores is to create a national compensation constituency to collect the votes of voters who did not contribute to electing MPs. For example, in Portalegre, in Bragança, in the constituencies of Europe and the rest of the world, only two parties elected MPs. All the tens of thousands of people who voted for other parties in these four constituencies saw their votes count for nothing. Of course it's demotivating, I agree, and anyone who sees their vote go to waste should think twice before voting next time.

Perhaps, initially, this compensation circle could have a dozen deputies. That seems like a good number for the experiment. Then we'd see how it worked and fine-tune the process. In addition to the advantages of using votes and potentially mobilizing some of the abstentionists, we should also consider that this circle could further promote national cohesion, not least because a large part of the votes would come from the least populated constituencies, where the most votes are lost.

One of the advantages of being part of an organization like the Belgo-Portuguese Chamber of Commerce is that you are part of a group that thinks and talks about these problems. Supported by the experience gained by each person in their different realities, we can see further and propose solutions. We have to be imaginative and contribute to the vitalization of democracy. Inspiration can and should come from the unquestionably democratic examples that exist in the European Union. In my opinion, on the eve of the 50th anniversary of 25 April, of our Carnation Revolution, democracy in Portugal is in need of some good inspiration.

Happy Easter to all of you and your families!

 

Frederico Cardigos is vice-president of the Belgo-Portuguese Chamber of Commerce and a marine biologist at Eurostat. The ideas expressed in this article are the sole responsibility of the author and may not coincide with the official position of the European Union.

 

sexta-feira, 31 de março de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 46: A minha Balada da neve

 

 
Dia de neve no Luxemburgo.
Foto: F Cardigos

Há belíssimas sensações que são impossíveis de imaginar até que nos acontecem. Uma dessas pequenas maravilhas é observar o cair da neve.

O contraste entre a aconchegante e bucólica neve que cai lá fora com a revolta que o poeta sente perante o sofrimento dos mais frágeis é o tema da “Balada da Neve” de Augusto Gil. Não é o tema da minha Balada, possivelmente por não ter vivido os rigores do inverno na Guarda do início do século XX.

Apenas quando comecei a trabalhar na Bélgica, tive oportunidade de ver neve a cair como deve ser. Era tão ignorante no tópico que julgava que a nevinha que tinha visto cair em Lisboa e no Faial, nos mais rigorosos invernos, tinham algum significado. Nada mais errado. Já era adulto bem entrado quando vi neve a cair com a dignidade desse nome.

Lembro-me como se fosse hoje. Era noite cerrada e, depois de mais um dia de trabalho que acabou tarde demais, decidi ir para casa a pé. Os cinco quilómetros de frio estavam mesmo a calhar para meter ideias em dia e desmultiplicar a velocidade a que ainda corria o cérebro.

Ao virar uma esquina, comecei a ver a neve a chegar-se entre mim e o candeeiro de rua mais próximo. Silenciosos, elegantes, mas convictamente, os flocos de neve iam-se deixando cair à minha frente. Primeiro poucos, depois mais, mas nunca demais. Tão brancos, alvos com distinção. Desejei não chegar a casa. 

Apesar do frio, deixei a janela do quarto aberta para ouvir o silêncio da neve a cair. De manhã, ainda caíram mais uns flocos, como que a garantir que eu os via. Sim, certamente eram para mim, visto estar a gostar tanto. Pareceu-me justo.

No dia seguinte, alguns centímetros de neve cobriam todas as superfícies que não tinham sido anteriormente polvilhadas com sal. Em Bruxelas, é obrigatório os proprietários colocarem sal nos passeios em frente de suas casas. A Administração Pública trata das ruas. Portanto, restam os carros, os jardins, as árvores e os telhados. Todos cheios de neve, como uma cobertura de açúcar na história de Hansel e Gretel. 

Desde então, ao contrário da maioria dos meus colegas e amigos, desejo que o inverno seja frio e terrível. Apelo aos ventos e tempestades para emprestarem o seu tempo a onde quer que eu esteja e em que, pelo menos num dos dias, haja neve.

Amaldiçoo as alterações climáticas por tudo, mas também por me estarem a roubar a probabilidade de ter invernos frios. Não é sempre, até porque também adoro o calor e o chamado bom tempo, mas, agora que a conheço, eu preciso de uns dias de neve por ano.

Este ano, no Luxemburgo, acordei e levantei-me de um só salto quando me disseram que estava a nevar. Fui para a janela ver, contemplar, fotografar e filmar. Vesti-me convenientemente e peguei na bicicleta.

Ninguém me tinha explicado. Ninguém me tinha explicado como era bonito andar de bicicleta no meio da neve. Os pneus de inverno, com piso de pequenos pinos em borracha, aconchegavam-se na neve permitindo um fluir razoavelmente rápido e seguro. Mas mais do que isso, tão confortável... Era tão aconchegante que pensei poder adormecer em cima da bicicleta.

Ninguém me tinha explicado como era maravilhoso ver os flocos a cair à minha frente e, alguns, a agarrarem-se ao casaco. Absolutamente fantástico. E assim fui, nos 8 km que separam a minha casa do trabalho, a ver a neve a flutuar até ao chão, a tocar-me e a dar-me memórias de suavidade e sincronia com o universo que nunca esquecerei.

Os Açores são perfeitos, mas, se pudesse mudar uma coisa, era dar ao arquipélago uma semana de intensa neve por ano. Passariam de perfeitos a sublimes.

Esta é a minha Balada da neve.


Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da União Europeia.

sexta-feira, 3 de março de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 45: Pessoas admiráveis!

Este artigo foi-me suscitado pela minha filha. Um destes dias enviou-me uma mensagem sugerindo que ouvisse um episódio do podcast “Vamos todos morrer” (Antena 3) em que se falava de Miguel de Arriaga. Não, não me enganei, não é “Manuel” de Arriaga, mas sim “Miguel”.

Para quem não sabe, tal como eu não sabia, Miguel de Arriaga (1776-1824) é um muy ilustre Fayalense que se destacou enquanto ouvidor e diplomata em Macau. Vale mesmo a pena ler a história deste familiar daquele que viria a ser o primeiro Presidente da República eleito de Portugal. Uma história que dava um filme e dos bons!

No entanto, aquilo que me suscitou a mensagem da filhota não era tanto a contemplação da ancestralidade da Ilha do Faial, que admiro sem reservas, mas sim enaltecer o percurso de algumas pessoas que sinto poderem servir de exemplo para os meus filhos. Colocaria Miguel de Arriaga entre eles? Sim, e com mais entusiasmo do que Manuel de Arriaga (1840-1917).

Aproveitando o seu conhecimento histórico, perguntei à minha família próxima quem seriam para eles as pessoas que se excederam de forma inesperada e muito positiva para o bem da humanidade. Pedi-lhes para excluírem os políticos, porque desses é esperada essa positividade, mesmo que, por vezes, nos desiludam. Portanto, as pessoas que irei mencionar daqui em diante são o somatório da minha pesquisa assumidamente contaminada pelo que me disseram os meus familiares. Até para que a aproximação histórica fique mais evidente, apresento por ordem razoavelmente cronológica.

Siddhartha Gautama (ca. 563 a.C. - 483 a.C.) foi um príncipe que abdicou de todas as suas regalias e riquezas para fazer um percurso de “iluminação” interior que incluiu preocupações com a erradicação do sofrimento de humanos e animais. Buda, nome pelo qual é hoje mais conhecido, inspirou a religião budista e muitos dos escritos que são a pedra basilar desse movimento que tem como ponto fundamental a busca individual da perfeição humanista.

Mesmo sem ser necessário recorrer ao seu estatuto de divindade, não tenho dúvidas sobre a importância de Jesus Cristo (ca. 4 a.C. - 30/33 d.C.) na transformação do mundo para melhor. O seu exemplo dá permanentemente alento e esperança a tantos que sofrem. Os seus discursos, a sua visão e a sua ação proporcionaram inspiração ao melhor que artistas, políticos e religiosos fizeram desde o seu tempo enquanto entidade terrena. Aquilo que de bom possui o chamado mundo ocidental tem como ponto de charneira a vida de Jesus Cristo traduzida pelas diversas religiões monoteístas e igrejas cristãs ou, mais a meu gosto, pelos trabalhos científicos que o estudam.

Os quatro Grandes compositores transformaram a música, serão eternamente ouvidos enquanto seres humanos existirem e são imediatamente reconhecidos apenas por um único nome. Vivaldi (1678-1741), Bach (1685-1750), Mozart (1756-1791) e Beethoven (1770-1827) viveram e protagonizaram a transição do período barroco para o período romântico. Trouxeram ao mundo composições como os concertos “As Quatro Estações”, o coral “Jesus Alegria dos Homens”, a missa fúnebre ou Requiem de Mozart e o “Hino à Alegria”, apenas para dar um único exemplo para cada.

O importantíssimo filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) pediu para dizerem a Carl Linnaeus (1707-1778) que “não conhecia maior homem na Terra”. Linnaeus foi um botânico, zoólogo, taxonomista e médico sueco. O seu trabalho mais importante culminou no estabelecimento da nomenclatura binominal que ainda hoje é usada para designar todos os organismos vivos e de forma única em todo o planeta. Goethe (1749-1832), talvez o maior génio de todos os tempos e também político, admitiu que foi fortemente influenciado por Linnaeus.

A fundadora da enfermagem moderna, Florence Nightingale (1820-1910), foi, antes disso, uma profissional da estatística com trabalho reconhecido. Ainda hoje, algumas das ferramentas usadas para visualizar informação numérica resultam dos seus trabalhos pioneiros. Mas foram as suas ações na sistematização do auxílio a feridos e doentes e a sua contribuição para o empoderamento das mulheres que transformaram o mundo para melhor. Uma das mais prestigiadas condecorações da Cruz Vermelha Internacional tem o seu nome.

A Cruz Vermelha, essa impressionante e imprescindível organização de apoio humanitário, nasceu da visão Henry Dunant (1828-1910). O empresário suíço, motivado pelo sofrimento que testemunhou da guerra, dedicou parte da sua vida a esta causa e, por isso, mereceu o Prémio Nobel e merece a minha admiração.

Marie Skłodowska-Curie (1867-1934) foi uma genial cientista nas áreas da física e da química. Nasceu na Polónia ocupada pela Rússia e naturalizou-se francesa. Com o seu marido, Pierre Currie (1859-1906), protagonizou extraordinários avanços no estudo e aplicação da radiação e descobriu os elementos químicos Polónio (denominado em homenagem à sua terra natal) e Rádio. Foi a primeira mulher a receber um prémio Nobel e a primeira pessoa a receber este reconhecimento por duas vezes. Entre muitas outras posições, foi também diretora do serviço de radiologia da Cruz Vermelha.

Albert Schweitzer (1875-1965) foi um pastor luterano que se destacou como teólogo, organista, musicólogo, escritor, humanista, filósofo e médico. Ficou mundialmente conhecido por ter fundado, financiado e trabalhado num hospital em Lambaréné (Gabão). Foi agraciado pelos seus trabalhos filosóficos sobre ética. É da sua pena, “A Ética nada mais é do que a Reverência pela Vida. A reverência pela vida proporciona-me o princípio fundamental de moralidade, ou seja, que o bem consiste em manter, auxiliar e melhorar a vida, e que destruir, prejudicar ou impedir a vida é mau.” Era primo de Jean-Paul Sartre (1905-1980), outro enorme ser humano, com o qual civilizadamente discordava. A ambos foi atribuído o prémio Nobel: Albert Schweitzer aceitou e Jean-Paul Sartre recusou.

Por princípio, devemos cumprir as ordens laborais dadas pelos superiores hierárquicos, mesmo que com isso não concordemos. No entanto, em casos extremos, é necessário ter a clarividência e a coragem de dizer “não”. Foi isso que fez Aristides de Sousa Mendes (1885-1954), um dos diplomatas portugueses que desobedeceu ao seu Governo durante a segunda grande guerra e, com isso, salvou milhares de judeus e outros refugiados. Entre outras homenagens, foi agraciado como um dos “Justos entre as nações”.

Flora Solomon (1895-1984) foi aquilo que hoje poderíamos chamar de mulher multifacetada. Bielorrussa, nascida numa família de largos recursos, perdeu a fortuna com a revolução de 1917, o que a obrigou a trabalhar em Inglaterra onde, entretanto, se tinha radicado. Organizou a receção de crianças refugiadas que chegavam a Londres nos anos 30. Como responsável pelo bem-estar dos funcionários numa grande cadeia de venda a retalho, influenciou a criação do Serviço Nacional de Saúde britânico. Num campo totalmente diverso, descobriu e expôs um dos mais famigerados agentes-secretos duplos do Reino Unido. Para além de tudo isso, ficou também na História por ser a mãe de Peter Benenson (1921-2005), fundador da Amnistia Internacional.

Pela enormíssima consideração que lhe tenho enquanto ativista pelos direitos humanos, quebro a minha regra e mencionarei um político. Nelson Mandela (1918-2013) foi um resistente pacifista anti-apartheid e liderou a transição de um país então fortemente segregacionista para uma África do Sul igualitária e reconciliada. O seu exemplo e a sua extraordinária sabedoria iluminam as pessoas de bem.

Obviamente e felizmente, esta não é uma lista exaustiva. Apenas por escrever os nomes atrás, lembrei-me de tantos outros, incluindo filósofos e cientistas da Grécia antiga, escritores romanos, pensadores asiáticos, exploradores dos sete mares, incluindo alguns portugueses, e até desportistas... No entanto, este é um conjunto de pessoas de cujo exemplo e por razões diferentes, eu gostaria que os meus filhos se lembrassem quando têm de tomar decisões importantes. Todas estas pessoas tornaram o mundo diferente e, na minha opinião, para melhor.

 

Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da União Europeia.