sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Voo do Cagarro - 14: Em África

 
Um "Hotel Central".
Foto: F Cardigos


Quis o destino que passasse por vários países africanos em pouco tempo. A quantidade e a variedade de sentimentos e sensações são demasiado vastos para conseguir sistematizar ou alegar qualquer autoridade sobre esta geografia, mas aqui ficam algumas pinceladas iniciais.

Em África o contraste social é estonteante. São visíveis a riqueza e a opulência da elite financeira e dirigente. A classe média também tem recursos suficientes para viver bem. Em contraste, há muitas pessoas pobres, muito pobres mesmo, e esta classe representa a esmagadora maioria da população em qualquer dos países que visitei.

Entre os pobres, há os que nada têm e os que, apesar de tudo, vão, com muito esforço, ganhando um dia e o próximo e arranjam o suficiente para alimentar a sua família. Quando digo muito esforço é mesmo, mesmo muito esforço para ganhar muito pouco. O rendimento per capita mensal médio de um dos países que visitei é de 30 euros. Um euro por dia. Quem de nós se imagina a viver nestas circunstâncias?

Apesar disso, apesar de ser mesmo muito difícil, eu vi famílias a lutarem e a conseguirem que os seus filhos continuem a ir à escola. Com um resto de uniforme e uma gravata cheia de nódoas, mas iam! E diziam que era importante e que tinham de ir aprender com os professores.

O nível de empreendedorismo em África é extraordinário. Há lojas, lojecas e banquinhas onde se vende de tudo, desde fruta ao sumo de rua, passando pelas peças para automóveis. Uma placa dizia que se Jesus Cristo voltasse à Terra era ali, naquela barbearia, que cortaria o cabelo. Uma pequena casa muito longe de estar terminada exibia as duas estrelas do Hotel Central de uma cidade do interior. Basta um guarda-sol e um banco e está feita a loja onde jovens vendem saldo para o telemóvel. E estão e continuam na luta, enchendo de vergonha as nossas preguiçosas depressões ocidentais.

E dançam e cantam. Batem palmas e exibem os corpos com um extraordinário sorriso rasgado e orgulhoso. Tocam maravilhosamente, pintam com cores garridas, cheias de laranjas, verdes e azuis. Sabem esculpir peças que explicam o mundo como é visto pelos seus olhos e dissertam entusiasticamente sobre o seu significado. Pegam em lixo e transformam em arte que, em muitos casos, exibiria na minha casa com prazer.

Deixem a paz instalar-se em África e este continente vai desabrochar de imediato. As pessoas aqui sabem lutar, têm imaginação, têm garra e estão sedentos de vida. A compreensão da importância da educação, o respeito pelo ambiente e a diversidade cultural são os pilares que me dão alguma segurança ao afirmar que África tem futuro!

Depois há as pessoas em situação paupérrima…

Ao final do dia, já lusco-fusco, apeteceu-me ir dar uma volta até ao bar mais próximo do hotel. O local escolhido, onde se podia beber uma cerveja e conversar, ficava a um quarteirão de distância. Saí, andei um pouco e, mesmo antes de entrar, fui abordado por um jovem que me disse “dá-me dinheiro para comer. Quero ir comprar uma pizza. Por favor, faço qualquer coisa. Não te vou roubar, dá-me apenas dinheiro para comer.”. Olhei para ele e vi o “estalo” da cola nos olhos avermelhados. Estava completamente passado... Que raio?! Que dizer nestas circunstâncias?

Entrei no bar e, como já não estavam a servir (covid oblige), tive que regressar pelo mesmo caminho. O jovem, sem me tocar, aproximou-se novamente muito mais do que me parecia razoável e repetiu o apelo. Ao longe vi mais uma dezena de outros jovens igualmente indigentes e, possivelmente, também sob o efeito de drogas.

Sabia que, neste percurso altamente vigiado por polícias e seguranças privados, estava seguro, mas, caso me tivesse aventurado um centímetro para fora desta cordilheira teria sido certamente roubado. E não seria a coisa certa? Claro que não, mas porque é que eu tenho o direito a comer três refeições por dia e aquelas crianças grandes têm de andar de roupa esfarelada por sujidade e porcaria, suplicando por um improvável pão?! Em vez de estrem no liceu ou na universidade, esquecem-se de si próprios refugiando-se em drogas e sabe-se lá em que mais. Não está certo. Não está certo!

À minha frente estavam seres humanos em desespero e eu atrevi-me a pensar que o problema era a limitação da minha liberdade de movimentos, aquela que me permite sair de casa a qualquer hora do dia em Lisboa ou outra cidade ocidental. O contraste norte-sul e a extrema injustiça social entraram-me pelos olhos dentro. Algo terá de ser feito. Assim não pode ser. Assim, não nos admiremos que haja cada vez mais migrantes a arriscar atravessar o Mediterrâneo mesmo que as probabilidades de sobrevivência sejam baixas.

Penso no que faria se estivesse nas circunstâncias destes jovens. Que faria se me doesse a barriga de fome e se tivesse consciência que, do dia a seguir, o máximo que podia esperar era que a dor fosse menor, já que a esperança era nula?


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