sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Crónicas do Voo do Cagarro - 35: A arte de cozinhar atum

Rabilo meio cozinhado. 
Foto: F. Cardigos

Não faço ideia como se cozinha bem. Sou um utilizador muito avançado de uma arte da qual apenas conheço os rudimentos. A minha sensação em relação à gastronomia é a mesma que tenho ao ser confrontado com a pintura realista do século XVIII. Compreendo a complexidade de reproduzir com rigor a paisagem, mas não faço ideia qual o treino e as técnicas utilizadas. Consigo, como todos, verificar se o pintado corresponde à realidade, mas há um hiato no processo sobre o qual não me posso pronunciar porque não tenho o conhecimento.
O mesmo acontece em relação à comida. Sei o que me sabe bem e consigo descrevê-lo com alguma precisão e muita paixão, mas não faço ideia do que aconteceu até ter aterrado no meu prato. Atenção, não sou inapto! Consigo cozinhar tudo aquilo que é necessário para ter uma alimentação saudável baseada na dieta mediterrânica. Mas, é tudo. Quando me falam em molhos “isto”, refugados “não sei o quê” ou demolhar… diluo-me noutros pensamentos…
Aquilo que perco na arte da conceção, não me belisca na nobre arte tão portuguesa de mal dizer o que estiver a deglutir. Criticar e elogiar! Aliás, prefiro mil vezes elogiar, até porque significa que estou contente com o repasto. Já aqui escrevi alguns artigos que passam pela gastronomia, tendo um sido mesmo totalmente dedicado à doçaria portuguesa, a melhor do mundo!
Num destes dias, num jantar com colegas, arrisquei tudo e, em pleno Luxemburgo, pedi rabilo meio cozinhado. Sabia que era um passo corajoso já que é muito fácil cozinhar mal o atum. Estando no Luxemburgo, um país não muito conhecido pelas suas pescas oceânicas (não tem) ou pelo peixe fresco, a probabilidade de chegar ao meu prato um peixe seco e sobre-cozinhado era elevada. Por outro lado, confortava-me ter já estado neste restaurante e, com outros pratos, ter ficado agradavelmente surpreendido. No entanto, atum, um prato particularmente caro às pessoas de mar, o risco era mesmo elevado.
Quando o empregado anunciou a chegada do meu atum, imediatamente parti para uma sublime viagem com o aroma do atum grelhado acompanhado pelo molho de tomate inteiro que o acompanhava. Detive-me a olhar para o prato, lindo, imaginando que, a partir daí, apenas poderia ficar desiludido. O naco de atum estava rebordado pelo vermelho do acompanhamento, numa belíssima coerência de contrastes. O cheiro e a imagem eram simplesmente arrebatadores. A fasquia tinha subido para patamares inauditos. Que sabor poderia estar perto daquele cheiro? Que textura poderia acompanhar aquela imagem?
Peguei no garfo com as pontas dos dedos da minha mão esquerda, esforçando-me por manter a calma, tentando esconder dos meus colegas a minha evidente curiosidade, mesmo excitação. Espetei o lombo verificando como cedeu com alguma resistência inicial ao garfo. A superfície do atum baixou o suficiente para compreender que, por dentro, estaria com um cozinhado diferente do quase crestante exterior. Bom sinal.
Agarrei a faca com a minha mão direita. Desloquei-a para se posicionar perpendicularmente ao garfo, preparando um corte lento e sereno, mas seguro, que permitisse a separação em fatia com cerca de meio centímetro de espessura. Balancei a faca para a frente e para trás, registando, conforme o interior se ia apresentando, como o crestante se transformava em cozinhado e, depois, no quase cru interior. Magnífico.
Os meus olhos cresceram perante o espetáculo que tinha pela frente. Acabei de separar o primeiro pedaço e levei-o à boca. Comecei a mastigar sentido perfeitamente o que acabava de ver, apenas polvilhado por um pouco de sal que, ali, pousava com natural complemento. Ah… tão bom, mas tão bom…
Lutei para comer devagar, esmerei-me para dar alguma atenção aos meus colegas e esforcei-me tentar apreciar o vinho que não estava mal… A certo ponto, pensei para mim próprio que será esta uma das refeições que estará certamente disponível no paraíso, se paraíso houver.
Voltei à terra o tempo suficiente para me persuadir que tinha de fazer uma qualquer observação aos meus colegas ou eles pensariam que estava em transe. Mentalizei-me para dizer alguma coisa entre cada garfada e de boca vazia, claro (há um mínimo de educação, mesmo perante uma refeição divinal).
Acalmei-me. Pensei em gestos e frases que me pudessem libertar do prato e levantar o olhar para os restantes convivas. Considerei adequado dissertar um pouco sobre a recuperação do manancial de rabilo, uma ação de gestão visionária e consequente por parte de todos os envolvidos. Depois falaria sobre as armações para a captura de tunídeos existentes no Sul de Portugal e Espanha e sobre as diferenças na sua utilização no passado e no presente. Pareceu-me bem falar sobre o impacto potencial da sobre-utilização de dispositivos de agregação de pescado no Atlântico Central para a pesca do atum na Macaronésia. Se houvesse oportunidade, exibiria orgulhosamente a fotografia subaquática de um enorme rabilo que tirei no Canal Faial-Pico... Raios…! Só pensei em falar sobre atum…
Estava possesso, mas soube muito bem!
Este inesperado repasto de atum, apesar de fenomenal, não foi o meu melhor de sempre. O meu melhor atum de sempre foi-me servido num restaurante que existiu brevemente no interior da ilha de Santa Maria. Aí, um atum polvilhado em pimenta semi-moída fez vibrar todas as minhas glândulas gustativas de uma forma que ainda habita os meus melhores sonhos.
Ah, é tão bom comer bem...

*Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Artigo de opinião escrito a título pessoal. As informações aqui transmitidas podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

Sem comentários:

Enviar um comentário