Há muitos anos, enquanto biólogo-marinho no DOP (hoje,
Okeanos), precisei de ir fazer qualquer coisa não significativa ao Monte da
Guia. A missão implicava ir por mar e, portanto, usar um barco semirrígido.
Desafiei um colega e lá fomos nós.
Dia lindo de Sol no céu azul. Apenas uma ligeira brisa
impedia o mar de estar estanhado. “What a glorious day!”, exclamaria a
minha avó com um rasgado sorriso se ali estivesse, ao que eu acrescentaria
“nada pode correr mal”… Ambos errados, como veremos adiante.
A deslocação era mesmo muito simples e nada poderia correr realmente
mal… Era apenas necessário pegar no semirrígido, ir até ao Monte da Guia e
voltar.
Ao entrarmos no barco, como manda a praxe e em gestos tantas
vezes repetidos, um de nós verificou se o combustível era suficiente. “É pá, é
pouco, mas deve dar”. Com excesso de confiança, o outro respondeu, “É só até
ali…”. Perante as hesitações, bate-se com os nós dos dedos na face exterior do
depósito de combustível, analisa-se o eco e dá-se o veredicto: “Vamos lá!”. Primeiro
erro.
Ainda antes de partirmos, e fazendo também parte do rol de
confirmações: “Óleo? Pleno!”, “Flutuadores? Cheios e em condições”, “Coletes de
salvação? A bordo e em número adequado.”, “Rádio? A funcionar.”, “Pagaia? Não
tem, mas vamos só até ali, não será necessária.” Segundo erro.
Por último, nesta sessão de confirmações: “Ferros? Não tem
fateixa, mas não iremos necessitar de apoitar. É só ir e voltar, está tudo
bem”. Terceiro erro.
Com este acumular de disparates, podia ter corrido tudo bem.
No entanto, não correu.
Ligámos o motor, que pegou à primeira e sem hesitações, libertámos
os cabos de amarração e aí fomos nós. Vento pela cara, sabor a água salgada,
virámos o Redondo da Doca, acenando passámos por um barco turístico de apoio ao
mergulho na Baía de Entre-Montes e chegámos ao nosso destino. Trabalho feito,
“ála p’ra trás”. Tudo a correr bem.
Passámos novamente pelo barco de apoio ao mergulho e, de lá,
sinalizaram-nos para levarmos um mergulhador que se tinha sentido mal. “Não é
nada de especial, simples enjoo, mas mais vale ir já para terra do que ficar
aqui a sofrer”. Claro que sim. No mar, a entreajuda é essencial.
Mergulhador maldisposto a bordo e aqui vamos nós. Agora
somos três, embora um esteja meio prostrado.
Ao começarmos a virar o leme para entrar no Redondo da Doca,
o motor vai abaixo. “Oh, lá, lá… Queres ver que o combustível não era suficiente?”
Não era. Estamos à deriva na entrada da doca. O Redondo da Doca tem umas
argolas facilmente acessíveis a um semirrígido. Basta usar a pagaia, amarrar e
dar um salto à cidade para trazer combustível.
“Pagaia?! Não trouxemos pagaia, pá!?”. À deriva, passámos a
poucos metros de distância do Redondo da Doca, mas longe demais para que, com
um simples mergulho, conseguíssemos amarrar.
Bom, então, nesse caso, apenas temos de nos manter à deriva
e esperar que nos venham buscar ou dar combustível. Não é muito digno, mas mais
vale assumir rapidamente o acumulado de disparates do que a coisa correr
verdadeiramente mal. “Chama aí alguém pelo rádio!”. Pedidos feitos, silêncio do
outro lado. Ninguém útil estava à escuta.
Estávamos à deriva. A resultante entre o vento e a maré empurrava-nos
em direção a Avenida ou, para ser mais preciso, em direção aos blocos que
protegem a Avenida Marginal da Horta, Avenida 25 de Abril de seu nome formal.
Se chegássemos aos enormes calhaus, o barco estaria em perigo. Estávamos a
derivar para dentro da doca a bom ritmo e isso poderia não ser bom. Não era
bom…
Felizmente, podíamos usar a fateixa e amarrar-nos muito
antes de chegarmos ao muro protetor da Avenida Marginal. “Passa aí o ferro!” Negativo.
Não havia ferro. Estávamos oficialmente em perigo.
Passado pouco, já sentíamos as ondas resultantes da
aproximação a terra. Duas ondas empurravam-nos para os blocos de proteção da
avenida e uma contra onda para fora.
Em momento algum perdemos a concentração ou deixámos que o
pânico se apoderasse de nós, mas a situação estava complicada. Coletes de
salvação distribuídos, parecia apenas ser uma questão de tempo até termos de abandonar
a embarcação.
Quando estávamos, segundo as minhas contas, a quatro ondas
de saltar para a água, aparece o semirrígido de apoio ao mergulho turístico. Passa-nos
um cabo e, literalmente, salva o dia.
O skipper tinha ouvido os nossos apelos radiofónicos
e, em vez de perder tempo a responder, usou esses preciosos segundos para recolher
os turistas que ainda estavam a terminar o mergulho e vir ter connosco. Fez
muito bem! Estávamos, literalmente, a pouquíssimo tempo de ter um problema
grave entre mãos. Talvez esteja a exagerar um pouco, mas a história exige esta
ponta de drama.
Chegados a terra, fomos à capitania prestar declarações,
assumindo obviamente os erros. No mínimo, o nosso reporte poderia servir para
que outros tivessem mais juízo. Por duas vezes na vida fui chamado à capitania prestar
declarações como consequência de erros meus. Nas duas, estava um excelente
tempo.
O excesso de confiança está por trás de imensos desastres,
sendo alguns deles fatais. Não foi o caso, por sorte. Por muito bom que seja o
planeamento, se a sua execução e o respeito pelos sinais de alerta forem
ignorados, estaremos muito perto de um desenlace infeliz.
Dada a redundância de equipamentos e métodos, no mar raramente
um acidente é o resultado de apenas um erro. No nosso caso, foram três erros
básicos. Bastaria ter acumulado mais um, por exemplo, não termos um rádio
funcional, para estarmos numa situação muito mais delicada.
Deixo aqui esta história para que outros não façam os mesmos erros do que eu naquele dia. É simples: planear bem e cumprir o planeamento. O mar, muito mais do que perigoso, é uma permanente aventura e uma fonte de felicidade, mas exige respeito.
* Frederico Cardigos é hoje biólogo marinho no Eurostat. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.