sexta-feira, 28 de abril de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 48: O perigo do excesso de confiança: uma abordagem pessoal

 


Semi-rígido em vias de recolher mergulhador no Monte da Guia, ilha do Faial.
Foto: F Cardigos

Há muitos anos, enquanto biólogo-marinho no DOP (hoje, Okeanos), precisei de ir fazer qualquer coisa não significativa ao Monte da Guia. A missão implicava ir por mar e, portanto, usar um barco semirrígido. Desafiei um colega e lá fomos nós.

Dia lindo de Sol no céu azul. Apenas uma ligeira brisa impedia o mar de estar estanhado. “What a glorious day!”, exclamaria a minha avó com um rasgado sorriso se ali estivesse, ao que eu acrescentaria “nada pode correr mal”… Ambos errados, como veremos adiante.

A deslocação era mesmo muito simples e nada poderia correr realmente mal… Era apenas necessário pegar no semirrígido, ir até ao Monte da Guia e voltar.

Ao entrarmos no barco, como manda a praxe e em gestos tantas vezes repetidos, um de nós verificou se o combustível era suficiente. “É pá, é pouco, mas deve dar”. Com excesso de confiança, o outro respondeu, “É só até ali…”. Perante as hesitações, bate-se com os nós dos dedos na face exterior do depósito de combustível, analisa-se o eco e dá-se o veredicto: “Vamos lá!”. Primeiro erro.

Ainda antes de partirmos, e fazendo também parte do rol de confirmações: “Óleo? Pleno!”, “Flutuadores? Cheios e em condições”, “Coletes de salvação? A bordo e em número adequado.”, “Rádio? A funcionar.”, “Pagaia? Não tem, mas vamos só até ali, não será necessária.” Segundo erro.

Por último, nesta sessão de confirmações: “Ferros? Não tem fateixa, mas não iremos necessitar de apoitar. É só ir e voltar, está tudo bem”. Terceiro erro.

Com este acumular de disparates, podia ter corrido tudo bem. No entanto, não correu.

Ligámos o motor, que pegou à primeira e sem hesitações, libertámos os cabos de amarração e aí fomos nós. Vento pela cara, sabor a água salgada, virámos o Redondo da Doca, acenando passámos por um barco turístico de apoio ao mergulho na Baía de Entre-Montes e chegámos ao nosso destino. Trabalho feito, “ála p’ra trás”. Tudo a correr bem.

Passámos novamente pelo barco de apoio ao mergulho e, de lá, sinalizaram-nos para levarmos um mergulhador que se tinha sentido mal. “Não é nada de especial, simples enjoo, mas mais vale ir já para terra do que ficar aqui a sofrer”. Claro que sim. No mar, a entreajuda é essencial.

Mergulhador maldisposto a bordo e aqui vamos nós. Agora somos três, embora um esteja meio prostrado.

Ao começarmos a virar o leme para entrar no Redondo da Doca, o motor vai abaixo. “Oh, lá, lá… Queres ver que o combustível não era suficiente?” Não era. Estamos à deriva na entrada da doca. O Redondo da Doca tem umas argolas facilmente acessíveis a um semirrígido. Basta usar a pagaia, amarrar e dar um salto à cidade para trazer combustível.

“Pagaia?! Não trouxemos pagaia, pá!?”. À deriva, passámos a poucos metros de distância do Redondo da Doca, mas longe demais para que, com um simples mergulho, conseguíssemos amarrar.

Bom, então, nesse caso, apenas temos de nos manter à deriva e esperar que nos venham buscar ou dar combustível. Não é muito digno, mas mais vale assumir rapidamente o acumulado de disparates do que a coisa correr verdadeiramente mal. “Chama aí alguém pelo rádio!”. Pedidos feitos, silêncio do outro lado. Ninguém útil estava à escuta.

Estávamos à deriva. A resultante entre o vento e a maré empurrava-nos em direção a Avenida ou, para ser mais preciso, em direção aos blocos que protegem a Avenida Marginal da Horta, Avenida 25 de Abril de seu nome formal. Se chegássemos aos enormes calhaus, o barco estaria em perigo. Estávamos a derivar para dentro da doca a bom ritmo e isso poderia não ser bom. Não era bom…

Felizmente, podíamos usar a fateixa e amarrar-nos muito antes de chegarmos ao muro protetor da Avenida Marginal. “Passa aí o ferro!” Negativo. Não havia ferro. Estávamos oficialmente em perigo.

Passado pouco, já sentíamos as ondas resultantes da aproximação a terra. Duas ondas empurravam-nos para os blocos de proteção da avenida e uma contra onda para fora.

Em momento algum perdemos a concentração ou deixámos que o pânico se apoderasse de nós, mas a situação estava complicada. Coletes de salvação distribuídos, parecia apenas ser uma questão de tempo até termos de abandonar a embarcação.

Quando estávamos, segundo as minhas contas, a quatro ondas de saltar para a água, aparece o semirrígido de apoio ao mergulho turístico. Passa-nos um cabo e, literalmente, salva o dia.

O skipper tinha ouvido os nossos apelos radiofónicos e, em vez de perder tempo a responder, usou esses preciosos segundos para recolher os turistas que ainda estavam a terminar o mergulho e vir ter connosco. Fez muito bem! Estávamos, literalmente, a pouquíssimo tempo de ter um problema grave entre mãos. Talvez esteja a exagerar um pouco, mas a história exige esta ponta de drama.

Chegados a terra, fomos à capitania prestar declarações, assumindo obviamente os erros. No mínimo, o nosso reporte poderia servir para que outros tivessem mais juízo. Por duas vezes na vida fui chamado à capitania prestar declarações como consequência de erros meus. Nas duas, estava um excelente tempo.

O excesso de confiança está por trás de imensos desastres, sendo alguns deles fatais. Não foi o caso, por sorte. Por muito bom que seja o planeamento, se a sua execução e o respeito pelos sinais de alerta forem ignorados, estaremos muito perto de um desenlace infeliz.

Dada a redundância de equipamentos e métodos, no mar raramente um acidente é o resultado de apenas um erro. No nosso caso, foram três erros básicos. Bastaria ter acumulado mais um, por exemplo, não termos um rádio funcional, para estarmos numa situação muito mais delicada.

Deixo aqui esta história para que outros não façam os mesmos erros do que eu naquele dia. É simples: planear bem e cumprir o planeamento. O mar, muito mais do que perigoso, é uma permanente aventura e uma fonte de felicidade, mas exige respeito.


* Frederico Cardigos é hoje biólogo marinho no Eurostat. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 47: E agora para algo completamente diferente…

Uma das coisas que me preocupa é o bem-estar de quem tem a obrigação laboral de manter e melhorar os serviços públicos de que todos usufruímos (p. ex. órgãos de soberania e governo, autarquias, escolas, unidades de saúde, forças armadas, ou finanças). É evidente que pagamos impostos e, portanto, também temos o direito de exigir que se preste um bom serviço. No entanto, quer seja por uma questão de empatia, de humanismo, de bom senso ou de simples reconhecimento por quem nos apoia, os funcionários públicos merecem-me, mais do que respeito, um constante agradecimento. Particularmente, quando me encontro com funcionários públicos que desempenham tarefas que me desagradariam e, adicionalmente, são mal pagas, sinto um indominável ímpeto para lhes agradecer.

Há uns dias, na Commune de Strassen (“Commune” é o equivalente a câmara municipal no Luxemburgo), tinha de tratar na de um ato burocrático simples. Neste país, é escusado ir diretamente à autarquia. É sempre mais conveniente agendar a reunião previamente através da internet. Nesse agendamento, declara-se logo à partida qual é o assunto e, no email que recebemos com a confirmação de agendamento, podemos encontrar uma relação de todos os documentos que devemos ter connosco e algumas ferramentas úteis, incluindo uma ligação internet que, através do telemóvel, nos leva até ao local da reunião. Simples e simpático.

À porta da Commune não nos deixam entrar nas instalações um minuto antes da hora de início de funcionamento mesmo que estejam a cair bátegas de água, faça um frio arrepiante e todos os funcionários estejam a postos. Já testei… Mas quando finalmente chega a hora marcada, entramos num mundo que apenas podemos desejar a todos os funcionários públicos a quem queremos bem.

O espaço é amplo, espaçoso, arejado, confortavelmente aquecido, com indicações claras e precisas e uma pessoa (agora) agradável dá-nos as últimas indicações antes da reunião. Sendo o Luxemburgo um dos países mais ricos do mundo e vivendo-se em democracia, as pessoas que decidem podem e tendem a tratar bem os restantes.

De repente, tudo pareceu mudar e não para pior, mas para muito diferente! Quando ia a entrar no gabinete, senti que estava num separador tipo “And Now for Something Completely Different” dos “Monty Python's Flying Circus”, para quem for desse tempo.

A receber-me estava um cão! A funcionária que iria tratar do meu assunto tinha realmente… um cão!? Como quem tem um pisa-papéis em forma de escultura em cima da secretária, a senhora tinha um cão e vivo! Felizmente não em cima da secretária…

A funcionária estava muito bem-disposta e descontraída e o cão era mesmo simpático, vindo ter comigo pedindo festas, e, depois de devidamente festejado, deitou-se preguiçosamente ao meu lado, como se estivesse interessado no meu conforto. Que ideia fenomenal!

Adorei a iniciativa e, ao mesmo tempo, perguntei-me como reagiriam as pessoas em Portugal se fossem recebidas no gabinete autárquico de apoio ao cidadão por um funcionário juntamente com o seu cão… O certo é que muitas vezes não é um aumento no ordenado que faz a diferença entre o funcionário sentir-se bem ou mal. Coisas simples, imaginativas e imprevisíveis, como ter um cão no gabinete de atendimento ao público, podem fazer diferença e, no final do dia, não custam nada a ninguém!


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.