sexta-feira, 21 de julho de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 54: Então, como vai isso de redes sociais?

As redes sociais na internet nunca foram sítios propriamente recomendáveis. Desde o início, foram mais propensas a fomentar os desaguisados e menos a promover ligações felizes entre as pessoas.

Dito isto, reconheço aspectos positivos nas redes sociais, como seja o combate à solidão, particularmente importante para os menos jovens e para os que se encontram isolados, permitindo encontros e reencontros. Através das maiores redes sociais é também possível restabelecer contactos há muito perdidos ou, como aconteceu também comigo, esclarecer vil desinformação. A promoção de atividades de algumas pequenas organizações, que não têm meios para aceder aos grandes meios de comunicação social (como jornais, televisões e rádios), também é um aspecto positivo.

Inicialmente, sentíamos que estávamos, de forma gratuita, a diversificar e a intensificar a nossa vida social pelo facto de interagirmos através destes portais. Mas, descobrimos depois, não era um sistema assim tão abnegado. As redes sociais tipificaram os nossos comportamentos colectivos e, a troco de dinheiro, transmitiram essa informação a empresas que, desta forma, puderam ajustar os seus serviços para mais nos vender. Como afirmou com clarividência o jornalista Andrew Lewis, “se não estás a pagar, tu não és o cliente, mas sim o produto”.

Para melhor nos conhecerem, as redes sociais encontraram formas de nos prender ao ecrã e isso incluiu técnicas de polarização e de incitação ao conflito. Estamos a ser manipulados para nos mantermos em linha, a ser estudados, avaliados… A partir do momento em que este modelo económico foi conhecido e divulgado, apenas se manteve em linha quem o desejou. É uma decisão informada, consciente e livre e, portanto, nada há a dizer.

Aquilo que menos perceberam e ainda é motivo de discussão é o nível de desinformação a que, sorrateiramente, são expostos os utilizadores das redes sociais. São públicos os processos de manipulação em massa que influenciaram o Brexit e as eleições norte-americanas de 2016, mas serão os únicos casos? E qual o nível da consequência? Terá sido suficiente para alterar os resultados desses importantíssimos processos democráticos?

Quantas discussões, quanta desinformação? Ou mesmo, quantos roubos? Durante algum tempo, resolvi resistir à saída até porque, perante a maldade, a postura das pessoas de bem deve ser resistir. Senti a obrigação de tentar clarificar a argumentação errada que por lá circulava com base no meu parco conhecimento.

Infelizmente, o terreno está “minado”. O algoritmo favorece o desentendimento e isso ficou-me muito claro quando um negacionista, tendo perdido todos os argumentos numa dessas discussões me deu o knock-out: “Tu não tens razão. Caso tivesses, não estarias tão empenhado em me contradizer. O teu empenho em apresentar argumentos é a prova de que me queres enganar.” E pronto, o meu interlocutor continuou a negar o efeito positivo da vacinação porque eu tinha argumentado com factos. A grande questão, no entanto, era a razão pela qual o estava sempre a encontrar. Em milhões de pessoas no mundo, por que raio esta pessoa me estava sempre a cair no prato? O tal do algoritmo... E a verdade é que usei inutilmente parte do meu tempo nesta vã tentativa de contribuir para endireitar o mundo.

Na realidade, eu não comecei a desistir das redes sociais por ter perdido a paciência ou o interesse na argumentação ou por recear a manipulação. Iniciei o meu processo de retirada quando, a partir do Vietnam, usaram a minha conta numa rede social para publicar um anúncio. Ao constatar que nem sequer podia protestar, porque já não há seres humanos do lado de lá, compreendi que algo de muito errado estava a acontecer e iniciei o processo de saída.

Mantenho-me passivamente no LinkedIn por potenciais razões profissionais e no WhatsApp por reais razões profissionais. Hoje, há minutos, saí do Twitter. Depois do Facebook, Messenger, Instagram e Telegram foi mais um passo para a libertação.

“Qual o resultado?”, podem querer perguntar... Sinto-me muito melhor, obrigado.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 53: Em Bordéus

 


"Santa Maria Manuela" ostentando A Portuguesa.
Foto: F Cardigos

Foi espantoso ver uma enorme bandeira portuguesa que se erguia sobre o rio Garona. O “Santa Maria Manuela”, um dos lindíssimos navios da frota branca portuguesa, assinalava com majestade o local da Festa Anual do Vinho de Bordéus.

Perto do nosso quatro-mastros, estavam os veleiros “Pen Duick” do comandante Éric Tabarly, um velho conhecido da Horta e uma das fontes de inspiração das aventuras de Genuíno Madruga. A associação que gere o espólio de Éric Tabarly aproveitou a festa do vinho para promover a vela e os valores do comandante falecido em 1998.

Bordéus, em termos demográficos, não é propriamente uma grande cidade. A área metropolitana não chega a um milhão de habitantes. No entanto, a fama dos seus vinhos e o seu papel na História da França – nem sempre pelo lado da França – fazem com que a sua dimensão populacional seja dissonante da sua importância real.

Evidentemente, a área em que está implementada a cidade de Bordéus tem certamente um brilhante passado pré-histórico e romano. Mas eu quero começar a minha história de Bordéus um pouco depois, no século XII. Quero escrever sobre Leonor da Aquitânia.

Condensando uma longa e extraordinária história em algumas pequenas frases, Leonor da Aquitânia foi uma mulher que, em plena idade média, se separou do Rei de França, com quem tinha já duas filhas, para se casar com o Rei de Inglaterra. Leonor foi a mãe de cinco monarcas, três deles reis de Inglaterra, incluindo os famosos Ricardo Coração de Leão e João Sem-Terra. Quase todas as casas reais da Europa e mesmo a Casa Imperial do Brasil descendem de alguma forma de Leonor da Aquitânia.

Do casamento de Leonor com Henrique II, Rei de Inglaterra, resultou que a Aquitânia passou a fazer parte do Império Angevino e, depois, da coroa inglesa. Esta relação era protegida pelos bordaleses, que usufruíam de tentadoras isenções de taxas de comércio que catapultaram a importância do enorme porto comercial que se estendia pelo rio Garona ao longo da cidade.

Foi necessário os franceses ganharem a “Guerra dos Cem Anos” e outras altercações internas para que esta situação terminasse e a coroa francesa submetesse o ducado. Vítima da justificada desconfiança dos franceses quanto à lealdade dos cidadãos de Bordéus, as estruturas militares locais então construídas tinham os canhões apontados para a própria cidade, tentando assim desmotivar outras tentações… Mas a relevância do porto manteve-se, tendo sido o mais importante de França e o segundo da Europa (apenas atrás do porto de Londres) durante largos períodos. Além disso, o porto foi fulcral para o passo seguinte: o vinho.

O vinho começou a ser produzido na região no tempo dos romanos. No entanto, como nos foi dito pelos locais, tinha uma qualidade apenas razoável e uma produção limitada. Essencialmente, faltava terreno. Uma associação estratégica com os holandeses iniciada no século XVII teve uma importância fundamental, tendo estes trazido saberes em que eram exímios: o comércio e a drenagem. Hoje, no Médoc, os pântanos então drenados, são produzidos alguns dos vinhos mais prestigiados do mundo.

Durante quatro anos, durante a Segunda Guerra Mundial, Bordéus foi vítima da ocupação nazi de parte da França. No Garona, foi então construído um enorme hangar para submarinos. Hoje, este local é uma enorme sala de exposições multimédia que vale mesmo a pena visitar.

Foi também durante este período negro que se estabeleceu na cidade um dos seus grandes heróis. Aristides Sousa Mendes, o Cônsul de Portugal em Bordéus, “um dos que teve a coragem de dizer não”, salvou 30 mil pessoas, dos quais dez mil judeus. Este facto está gravado nas paredes da cidade como “um justo entre as nações”.

Bordéus à beira d’água, aquela que foi a casa do jogador de futebol açoriano Pauleta durante um dos períodos mais brilhantes da sua gloriosa carreira, é uma cidade que soube olhar para si própria, para as suas oportunidades e debilidades, valorizando as primeiras e estrategicamente modificando as segundas. Parece simples.

Muito mais haveria para escrever sobre Bordéus como, por exemplo, foi o modelo que inspirou a cidade de Paris moderna, mas o espaço de uma crónica é limitado. Termino com as palavras simples, mas profundas de Victor-Hugo, um dos grandes da literatura, “Pegue em Versalhes, junte-lhe Antuérpia e obtém Bordéus”. Quem sou eu para discordar?


Um dos "Pen Duick" no rio Girona, em Bordéus.
Foto: F Cardigos


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.