Foi espantoso ver uma enorme
bandeira portuguesa que se erguia sobre o rio Garona. O “Santa Maria Manuela”,
um dos lindíssimos navios da frota branca portuguesa, assinalava com majestade
o local da Festa Anual do Vinho de Bordéus.
Perto do nosso quatro-mastros, estavam
os veleiros “Pen Duick” do comandante Éric Tabarly, um velho conhecido da Horta
e uma das fontes de inspiração das aventuras de Genuíno Madruga. A associação
que gere o espólio de Éric Tabarly aproveitou a festa do vinho para promover a
vela e os valores do comandante falecido em 1998.
Bordéus, em termos demográficos,
não é propriamente uma grande cidade. A área metropolitana não chega a um milhão
de habitantes. No entanto, a fama dos seus vinhos e o seu papel na História da
França – nem sempre pelo lado da França – fazem com que a sua dimensão populacional
seja dissonante da sua importância real.
Evidentemente, a área em que está
implementada a cidade de Bordéus tem certamente um brilhante passado
pré-histórico e romano. Mas eu quero começar a minha história de Bordéus um
pouco depois, no século XII. Quero escrever sobre Leonor da Aquitânia.
Condensando uma longa e
extraordinária história em algumas pequenas frases, Leonor da Aquitânia foi uma
mulher que, em plena idade média, se separou do Rei de França, com quem tinha
já duas filhas, para se casar com o Rei de Inglaterra. Leonor foi a mãe de cinco
monarcas, três deles reis de Inglaterra, incluindo os famosos Ricardo Coração
de Leão e João Sem-Terra. Quase todas as casas reais da Europa e mesmo a Casa Imperial
do Brasil descendem de alguma forma de Leonor da Aquitânia.
Do casamento de Leonor com Henrique
II, Rei de Inglaterra, resultou que a Aquitânia passou a fazer parte do Império
Angevino e, depois, da coroa inglesa. Esta relação era protegida pelos bordaleses, que
usufruíam de tentadoras isenções de taxas de comércio que catapultaram a
importância do enorme porto comercial que se estendia pelo rio Garona ao longo da
cidade.
Foi necessário os franceses
ganharem a “Guerra dos Cem Anos” e outras altercações internas para que esta
situação terminasse e a coroa francesa submetesse o ducado. Vítima da
justificada desconfiança dos franceses quanto à lealdade dos cidadãos de
Bordéus, as estruturas militares locais então construídas tinham os canhões
apontados para a própria cidade, tentando assim desmotivar outras tentações… Mas
a relevância do porto manteve-se, tendo sido o mais importante de França e o
segundo da Europa (apenas atrás do porto de Londres) durante largos períodos.
Além disso, o porto foi fulcral para o passo seguinte: o vinho.
O vinho começou a ser produzido
na região no tempo dos romanos. No entanto, como nos foi dito pelos locais, tinha
uma qualidade apenas razoável e uma produção limitada. Essencialmente, faltava
terreno. Uma associação estratégica com os holandeses iniciada no século XVII teve
uma importância fundamental, tendo estes trazido saberes em que eram exímios: o
comércio e a drenagem. Hoje, no Médoc, os pântanos então drenados, são produzidos
alguns dos vinhos mais prestigiados do mundo.
Durante quatro anos, durante a
Segunda Guerra Mundial, Bordéus foi vítima da ocupação nazi de parte da França.
No Garona, foi então construído um enorme hangar para submarinos. Hoje, este
local é uma enorme sala de exposições multimédia que vale mesmo a pena visitar.
Foi também durante este período
negro que se estabeleceu na cidade um dos seus grandes heróis. Aristides Sousa
Mendes, o Cônsul de Portugal em Bordéus, “um dos que teve a coragem de dizer
não”, salvou 30 mil pessoas, dos quais dez mil judeus. Este facto está gravado
nas paredes da cidade como “um justo entre as nações”.
Bordéus à beira d’água, aquela
que foi a casa do jogador de futebol açoriano Pauleta durante um dos períodos
mais brilhantes da sua gloriosa carreira, é uma cidade que soube olhar para si
própria, para as suas oportunidades e debilidades, valorizando as primeiras e estrategicamente
modificando as segundas. Parece simples.
Muito mais haveria para escrever
sobre Bordéus como, por exemplo, foi o modelo que inspirou a cidade de Paris
moderna, mas o espaço de uma crónica é limitado. Termino com as palavras
simples, mas profundas de Victor-Hugo, um dos grandes da literatura, “Pegue em
Versalhes, junte-lhe Antuérpia e obtém Bordéus”. Quem sou eu para discordar?
* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.
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