Vista do Parlamento Europeu em Bruxelas.
Foto: F Cardigos
No dia 12 de setembro, o
Parlamento Europeu adotou a sua posição relativamente à proposta da Comissão
Europeia para revisão das regras relativas aos direitos de autor na
distribuição de conteúdos na internet. A intenção essencial da Comissão
Europeia, que é reforçada pela posição do Parlamento, é garantir que artistas e
jornalistas sejam remunerados pelo seu trabalho quando este é distribuído
através de plataformas de partilha, como o YouTube e o Facebook, ou agregadores
de notícias, como o Google Notícias ou SAPO.
Relembro que, de acordo com o
procedimento legislativo europeu, o direito de iniciativa é exclusivo da
Comissão Europeia e, na generalidade dos casos, a decisão sobre essas mesmas propostas
é partilhada apenas entre o Parlamento Europeu, representando os cidadãos, e o
Conselho, representando os Governos. Antes da tomada de decisão, nos chamados
trílogos, discute-se a três, embora os colegisladores sejam apenas o Parlamento
e o Conselho, assumindo a Comissão um determinante papel de apoio técnico e
político. Essas discussões adquirem, por vezes, um carácter duro, com cada
parte a fazer valer os seus pontos de vista, e termina, invariavelmente, num
compromisso negocial. Ou seja, nos pontos em discórdia tenta-se aplicar uma
aproximação salomónica em que ninguém fique totalmente a perder. Neste momento,
tendo o Parlamento Europeu já definido a sua posição, aguarda-se o início dos
trílogos.
A proposta da Comissão Europeia
assume a tipologia legal de “Diretiva”. Isto significa que, após a decisão dos
colegisladores, a que se segue a publicação no jornal oficial da União Europeia,
este documento legal terá de ser transposto por cada um dos Estados-Membros da
União Europeia. Caso a intenção da Comissão fosse a operacionalização imediata
desta legislação no direito Europeu, então teria optado por um “Regulamento”.
Não o fez. Esta opção obriga a que, posteriormente, Portugal, como os restantes
países, façam um exercício de interpretação e elaboração de legislação própria,
o que poderá demorar até um ano. Em resumo, este processo ainda levará o seu
tempo.
Em simultâneo, e mais grave, esta
postura permitirá haver 27 legislações diferentes sobre o mesmo assunto. O que
é válido em Portugal poderá não ser em Espanha o que irá causar uma enorme
confusão. A minha aposta é que, rapidamente, esta proposta de Diretiva passe a
Regulamento e muitas das suas leviandades e incoerências sejam retiradas.
Estive a ler a proposta da
Comissão, a posição do Parlamento e algumas das muitas críticas e opiniões sobre
os artigos 11 e 13. Se considerarmos que a arte de bem legislar inclui a
contenção, a clareza e a objetividade, há, de facto, alguma infelicidade nas redações
propostas para estes artigos. Os dois artigos estendem-se e, no caso da
proposta do Parlamento, o artigo 13º atinge patamares de incompreensibilidade.
Mais especificamente, o artigo
11º tenta garantir que os meios de comunicação social que empregam os autores
de peças jornalísticas sejam compensados pelo uso dos seus conteúdos nas
plataformas internet de agregação ou difusão massiva de notícias. Estão em
causa o Google Notícias, o SAPO e o Facebook, entre muitos outros. Ou seja, cingindo-me
ao primeiro exemplo, pretende-se que o Google Notícias partilhe parte dos seus
lucros por quem produz os conteúdos. Ora, ao não definir como será feita essa
partilha, deixando no ar expressões como “conferir
aos editores de publicações de imprensa os direitos exclusivos de autorização
ou proibição de reproduções relativos à utilização digital das suas publicações
de imprensa” [transcrição adaptada] coloca na mão dos órgãos de comunicação
social (OCSs) o direito exclusivo de permitir, ou não, a utilização de peças jornalísticas
por parte do Google Notícias. Ou seja, parece-me impensável que o Google
Notícias tenha capacidade de negociar com cada um dos OCSs e, ainda por cima,
partindo de uma posição de fragilidade.
O Parlamento Europeu complicou um
pouco o texto, mas introduziu um elemento de claridade e outro de elevada relevância,
entre outros aspetos interessantes. Primeiro, o Parlamento estipulou que a
remuneração deverá “justa e proporcionada”
e que esta remuneração é devida “por
parte dos prestadores de serviços da sociedade da informação”, ou seja, não
coloca o poder apenas nos OCS e define a quem se destina esta regra, libertando
o Estado e outros privados que produzem, por exemplo, newsletters, cujo objeto não seja os serviços comerciais da
sociedade da informação. Mas, mais importante, ainda que não de forma clara, o
Parlamento abre a possibilidade da partilha privada e sem fins lucrativos, ou
seja, aquela que habitualmente fazemos no Facebook. E isso é muito importante e
é também importante que fique claro porque, caso não seja possível partilhar
notícias verdadeiras, irão proliferar as notícias falsas (fake news). A meu ver, a democracia exige este ponto.
Com o artigo 13º a Comissão
Europeia tenta regular o pagamento de direitos de autor pelos distribuidores de
conteúdos (usualmente vídeos), como seja o Youtube. Ou seja, o Youtube, de
acordo com a Comissão Europeia, não desenvolve todos os esforços possíveis para
distribuir parte dos lucros que obtém com a distribuição de conteúdos pelos
detentores dos direitos de autor, imagem ou conexos.
Deixem-me ilustrar. Imagine-se
que uma pessoa pega num livro do José Eduardo Agualusa, grava-o e coloca-o no
YouTube. Evidentemente, os direitos de autor de José Eduardo Agualusa e da sua
editora estão a ser violados porque quem ouvir o livro “pirateado”,
provavelmente, já não o irá comprar. A postura do YouTube é que, não sendo
possível detetar todos estes casos, não os pode controlar.
Reconheça-se adicionalmente que o
Youtube até faz um esforço. Por exemplo, se se usar uma banda sonora comercial
num vídeo privado, em muitos casos a plataforma já a consegue detetar
automaticamente e cortar o som ou distribuir os lucros por quem é devido. Eu
próprio já fui “vítima” disso mesmo, porque usei num filme familiar uma música
de fundo para a qual não tinha os respetivos direitos. Nalguns países, essa
música de fundo é automaticamente silenciada.
O que a Comissão tenta fazer é
elevar a fasquia da exigência e colocar a responsabilidade no distribuidor de
conteúdos, em que o mais conhecido é mesmo o YouTube, mas há muitas outras plataformas
especialistas em piratear filmes, desportos e outros. A desculpa é sempre a
mesma: “estamos apenas a dar a
oportunidade a que outros partilhem os seus conteúdos”… Claro que não
estava certo.
O objectivo inicial da Comissão
relativamente ao artigo 13º, quando propôs a legislação, era de apelar aos
desenvolvimentos tecnológicos para que detetassem e contabilizassem o uso de
materiais protegidos e que se fomentassem os entendimentos comerciais. Apesar
da benevolência, era uma postura pouco prática e sem objetividade. Eu chamo a
este tipo de legislação de “pancadinha
nas costas, vá lá, faz qualquer coisa”. Era pouco.
O Parlamento Europeu, na sua
posição, coloca um tom mais assertivo tanto para os distribuidores, como para
os produtores, mas também para os Estados, obrigando a que criem autoridades
reguladoras. Parece-me bem.
O problema remanescente são os
exageros a que a Diretiva poderá conduzir. Por exemplo, se no meu próximo vídeo
eu usar uma camisola de marca, para a qual não tenho os direitos de imagem,
apenas de usufruto, estarei a colocar o YouTube em sarilhos legais? E aqueles
que avaliam equipamentos de terceiros e que todos nós vemos e ouvimos no
YouTube antes de comprar o novo gadget
da moda? Estarão a ferir os direitos de imagem das respetivas marcas? Como me
referia um amigo jurista, com a atual proposta deixa de ser possível distribuir
livremente um simples filme do seu filho a marcar um grande golo num jogo da
terceira divisão dos infantis. Não está certo…
Este é um assunto verdadeiramente
complicado e para o qual a inação não é resposta. A regulação é uma das
atividades mais nobres de qualquer órgão legislador. Ao contrário de outros, eu
não concordo com a simples liberalização. Penso que devemos viver numa
sociedade com regras que nos protejam dos abusos e dos abusadores. No entanto,
a regulação é uma arte e os artigos 11 e 13, com as atuais redações, ainda são
autênticos elefantes numa loja de porcelanas. Há que os simplificar e tornar
mais concretos. Não é fácil, mas terá de ser feito.
Toda a informação que uso neste
texto está disponível nos sítios internet das instituições europeias, incluindo
ligações para os textos que mais criticam as propostas existentes. Podemos
tecer críticas à União Europeia, como até eu faço atrás, mas jamais de falta de
transparência. Fiquei impressionado com a quantidade e a qualidade de
informação disponível ou apontada.
Referências:
1.
Diretiva 2001/29/CE: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32001L0029&from=ES
2.
Proposta da Comissão em Português: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52016PC0593&from=EN
3.
Proposta da Comissão em Inglês: file:///C:/Users/Frederico%20Cardigos/Downloads/ProposalforaDirectiveoftheEuropeanParliamentandoftheCounciloncopyrightintheDigitalSingleMarket.pdf
4.
Notícia do Parlamento Europeu: http://www.europarl.europa.eu/news/pt/press-room/20180906IPR12103/parlamento-europeu-aprova-posicao-sobre-direitos-de-autor
5.
Posição do Parlamento Europeu: http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//NONSGML+TA+P8-TA-2018-0337+0+DOC+PDF+V0//PT
6.
Análise do EPRS: https://epthinktank.eu/2016/11/30/copyright-in-the-digital-single-market-eu-legislation-in-progress/
7.
Outra análise do EPRS: http://www.europarl.europa.eu/thinktank/en/document.html?reference=EPRS_BRI(2016)593564
e briefing http://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2016/593564/EPRS_BRI(2016)593564_EN.pdf
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