sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Voo do Cagarro - 11: Sobre sobremesas

Enxarcada de ovos em Grâdola.
Foto: F Cardigos
 

Se tivesse que fazer uma lista de cidades que mais gosto, haveria imensas abordagens possíveis. As mais sérias, relacionadas com os direitos humanos, o ambiente e o património, ou as mais ligeiras, como as relacionadas com o humor ou a gastronomia. Para a descontração deste artigo, irei abordar pelo ponto de vista da doçaria de sobremesa.

Não posso dizer que conheça “muito mundo”, mas, do que vi por aí fora, não há melhor doçaria que em Portugal. Um amigo observou, com pertinência, que o meu gosto é condicionado pela minha vivência e, por essa razão, tendo a preferir o que está mais perto. Apesar de compreender o ponto de vista, a verdade é que, muitas vezes, ao falar com estrangeiros, os nossos doces são amplamente elogiados. E não são apenas os pastéis de nata ou a sua variante alfacinha de Belém.

Enfim, seja por razões culturais egocêntricas ou por ser realmente verdade, para mim, a doçaria portuguesa é a melhor do universo! Portanto, não venham com donuts ou tiramisus. Mesmo as bolas de Berlim, que não é um doce português, ganham outro sabor quando são cozinhadas numa pastelaria de Lisboa e comidas com um leite com chocolate UCAL morno ou, em Faro, em que o doce de ovos é particularmente saboroso.

Como aprendi num programa de rádio, a doçaria portuguesa foi bafejada pela sorte. Há uns séculos atrás, as religiosas precisavam de usar a clara do ovo para engomar as toucas ou era exportada e usada como purificador na produção de vinho branco. Restava a gema. Com o excesso de gemas e muita mão de obra disponível nos conventos, a doçaria nasceu e proliferou. Com ela, os papos-de-anjo, as barrigas-de-freira e tantos outros. Tão bom! A doçaria conventual portuguesa devia ser património da humanidade.

A cidade de Aveiro tem uma cultura e uma beleza sem par. No entanto, quando a maioria dos portugueses pensa em Aveiro, a primeira coisa que lhe vem à cabeça são… os ovos moles! Ou seja, os milhares de anos de história, as glórias dos antepassados ou a biodiversidade e riqueza da ria, tudo fica esbatido pela doçaria.

Há mesmo algumas povoações que não têm existência na memória coletiva para além dos doces. Com honestidade, quem sabe alguma coisa sobre a história milenar de Tentúgal para além dos seus pastéis? E valem mesmo a pena, tal como o património edificado daquela vila.

A cidade de Abrantes, deu uma nova dimensão à palha. No entanto, nessa zona, as tigeladas do Pego são maravilhosas. É interessante que as tigeladas de Lisboa sejam massudas e quase desagradáveis e as do Pego, com uma base suavemente rendilhada, são tão delicadas. Até parecem doces diferentes.

No Funchal, o bolo de mel é uma iguaria sui generis que vai muito além do seu sabor. Fui beneficiado pela forma como as famílias madeirenses se reúnem anualmente para fazer este doce e, depois, enviam pelo correio aos seus familiares distantes ou amigos.

Dificilmente consigo eleger um doce favorito ou uma cidade vencedora. Muitos dirão que os pastéis de nata, até pela visibilidade internacional que têm, deveriam obter esse título. Mas porque não os doces alentejanos? A sericaia, o tecolameco, lampreia-de-ovos ou, o meu favorito no Alentejo, a encharcada-de-ovos. Uma listagem aponta para 84 doces diferentes apenas no Alentejo.

No caso dos Açores, as queijadas da Graciosa, as queijadas da Vila, de São Miguel, ou as donas-Amélias, da Terceira, são, eventualmente, os pontos mais altos. No entanto, nada como o mistério do pudim não-sei da Horta. Lá está… pode ser a minha vivência a falar, mas um colchão-de-noiva à moda do Faial e um café é uma excelente forma de terminar uma boa refeição.


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