sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Voo do Cagarro - 12: A Boa Disposição

"Veja só, este cara anda no meio do mar a ver peixinho!"
Foto: F Cardigos
 

Advertência: neste artigo escrevo palavras de forma distorcida para tentar captar os belíssimos sotaques brasileiros dos meus interlocutores. As minhas desculpas aos puristas da língua portuguesa escrita.

Fui cortar o cabelo. Nada de especial até aqui. 

Ao entrar, notei que os dois barbeiros de serviço estavam animados. Falavam um com o outro e com um cliente que terminava o corte. Comentando o acidente de avião que, infelizmente, levou a vida da cantora nordestina Marília Mendonça, listavam as celebridades brasileiras que morreram em acidentes de avião. Apesar de o tema ser sério, tentavam realçar as virtudes de cada uma das pessoas, quase como se fosse uma homenagem da vida.

“Como cê quére o corrte?”. “O senhor é o artista, esteja à vontade”. “Mas querr voltá cá daqui a um meis ou só no Natau? É melhore antis ou então vai terr de trazer prenda, né?”

Não entendi porquê, mas a conversa derivou para o roubo de fruta. “Ó ménino qui r
ouba fruta não é ladrão. Ous ménino podem tirar fruta do quintau do vizinho. Não é roubo, não. Nem é probrema.” Ao que o meu barbeiro acrescentou, “excepetô se cê é o vizinho, né?” Riram-se ambos sem contenção e eu fui atrás.

Ao entrar um novo cliente, loiro como o ouro do El Dorado e olhos de azul céu, o barbeiro número dois diz “Welcómi, Sari”. A resposta num português escorreito, “Boa tarde.”, deixou-o desconcertado, mas não o meu barbeiro, que brincou de imediato, acentuando o sotaque: “Ingrêis perrfeito, mas inútiu. Totaumente inútiu. Tanta educação irrelêvante. Nou use!”. “Valeu à tentativa, mê ‘rmão”, tentou ripostar o outro.

No meio da conversa que estava a ter comigo, o meu barbeiro grita para o outro “Veja só, este cara anda no meio do mar a ver peixinho!”. Já tinha ouvido muitas descrições simplificadas para biólogo marinho, mas esta foi particularmente carinhosa. O outro respondeu “Nossa, isso deve ser mesmo boummm! O oceano é tão grande, não deve ter falta de trabalho!”.

Os jovens brasileiros estão a ocupar os empregos privados de serviço direto ao cliente em Lisboa. Ao entrar num qualquer café, tenho a sensação que é mais fácil encontrar um brasileiro do que um português. Talvez esteja a exagerar, mas a probabilidade de ouvir um sotaque português do outro lado do Atlântico é tão elevada que já fico com a dúvida. É um indicador.

Obviamente, isso acontece porque os brasileiros e as brasileiras estão dispostos a desempenhar essas funções pelo pagamento que está a ser oferecido e, na minha opinião, é também pela boa onda que transmitem. Hoje, no barbeiro, senti-me mesmo bem.

Ao terminar o corte, pergunto “ficou bom?”. Um deles diz: “Pô! Com esse cabelo, ninguém lhe pega. Nem a NASA!” e o outro complementa: “A Dona Rute [quem será a D. Rute, pergunto-me] nem vai deixá cê saíre di casa”. Já não sei qual deles, “Uhau, me queimei. Cê tá fogo!”, “Cara, vamos saí daqui k’isto vai encher de pretendente” e continuaram…


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