A história andava à volta de uma pessoa que se tinha atirado do alto de um penhasco com uma asa às costas. Inicialmente, o dispositivo parecia ter funcionado bem, mas, a meio do voo, algo correu mal e o homem-voador despenhou-se. Ficou muito mal tratado, entre a vida e a morte, numa zona alta e remota. Com uma tempestade de vento e neve à espreita, havia que decidir rapidamente o que fazer para o salvar.
Esta história fictícia dividiu apaixonadamente um grupo de pessoas, eu incluído, à volta da mesa do café algures no centro da Europa. Uns quantos, a que chamarei de “os bons-samaritanos”, defendiam o uso de helicópteros para facilitar a aproximação inicial de uma equipe médica especializada em traumas de alta montanha. Esta equipa seria acompanhada de cães pisteiros para localizar rapidamente a vítima e, depois de prestados os primeiros socorros, todos seriam transportados sãos e salvos para o hospital mais próximo.
No entanto, para mim, o mais surpreendente foi existir um entusiasta segundo grupo, a que chamarei “os materialistas”. Para estes, qualquer gasto para salvar “um louco” seria supérfluo, autenticamente “deitar dinheiro fora”. “Ainda para mais”, referiam, com uma tempestade a aproximar-se, seria impensável “colocar em risco a vida de médicos, pilotos de helicóptero, e até dos cães e da aeronave, a troco de um alucinado em busca de adrenalina!”.
Fiquei surpreendido porque, ao vir dos Açores, ao ver como a Marinha, a Força Aérea, os Bombeiros ou os vizinhos de cada um arriscam a vida para salvar o próximo me é absolutamente natural empenhar o que se pode e, às vezes, o que não se pode para salvar seja quem for. Claro que se equaciona a segurança e, sabiamente, se arrisca até ao limite das próprias capacidades ou do material que se tem à disposição. Agora, jamais ouvi alguém nos Açores a hesitar num salvamento por colocar em questão o mérito da vítima. É tão natural que nunca tinha pensado nisto até esta refeição.
Quando o pessoal médico e de enfermagem entra nos aviões para ir buscar uma pessoa a outra ilha, a única questão é se a tempestade o permite e jamais qual a profissão da vítima. Não nos faz sentido. No entanto, pelo que pude verificar, longe do nosso território, este aspecto é colocado em consideração.
Lembro-me, em muito miúdo, de me contarem as aventuras do Mestre José Augusto quando enfrentava as ondas de inverno do canal entre as Flores e o Corvo. Ao leme de uma pequena embarcação de seis para sete metros, a “Ribeira da Cruz” ou a “Eduína”, lá ia vagarosamente, buscar um doente para o levar ao hospital de Santa Cruz. Nas suas histórias, as que me foram contadas por ele ou por outros, jamais ouvi questionar se o doente em causa merecia ou não.
Recentemente, ouvi o relato de um sobrevivente de um acidente de comboio em Portugal continental. Hoje em dia, o que tira a o sono a este sobrevivente, não é o acidente, nem as fraturas e o corpo queimado. O que lhe tira o sono é a pessoa que não conseguiu salvar. E isto mesmo depois de, arriscando a vida, ter salvo duas pessoas. A terceira, “uma menina...”, disse ele na entrevista, “Eu já tinha o corpo a arder e não consegui, tive que fugir”. E tinha mesmo 70% do corpo a arder, como puderam verificar os médicos e como, hoje, podemos verificar nas suas cicatrizes. No entanto, o que lhe pesa ao ponto de não ficar tranquilo é não ter conseguido salvar aquela menina.
Claro que me tenho de perguntar o porquê desta diferença de pensamento entre algumas pessoas que vou encontrando aqui pelo meio da Europa e no nosso país, e em particular nas nossas ilhas. Adoro a pluralidade e a liberdade de pensamento, mas... neste caso é mesmo diferente.
Depois de refletir, penso que há uma resposta simples: a cultura. Nos Açores, desde que as ilhas foram povoadas que, nos dias mais complicados, dependemos mesmo do nosso vizinho. Nós dependemos dele e ele depende de nós.
Acrescenta-se a isso a questão filosófica ligada ao primado da vida que nos é incutida pela educação cristã, presente mesmo nos não crentes. Para nós, há sempre que olhar para o próximo e garantir que se encontra suficientemente bem.
Voltando à discussão, tentei ripostar com uma linha de argumentação que se aproximava deste racional. Nada a fazer. Os materialistas não vergaram um centímetro.
Acabei por usar o argumento do valor da diversidade de pensamento e de opções. Esta linha de pensamento passa pela valorização de formas de estar e pensar que são diferentes do comum e que, em situações extraordinárias, podem ser um activo para a sociedade.
Dando um exemplo, Mahatma Gandhi ousou pensar de forma totalmente diferente. Para a restante sociedade, Gandhi era um louco que apelava à resistência não violenta. Porém, com isso, liderou uma revolução que resultou na libertação da Índia.
Curiosamente, este foi um argumento que colheu frutos. Ou seja, os materialistas apenas concederam usar recursos para salvar o homem voador quando lhe conseguiram atribuir um valor superior ao que apelidaram de “louco sem utilidade”. Como se pudéssemos ter a veleidade de condenar alguém à morte…
Tão importante como aprender a voar é compreender que o valor de um ser humano é intrínseco à sua existência. Não há, em democracia e em liberdade, uma pessoa que tenha menos valor potencial do que outra. Se houver, essa decisão fica para ser tomada à entrada do paraíso, para quem nisso acreditar...
Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da União Europeia.
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