sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Crónicas do Voo do Cagarro – 38: Falar emigrante

Igreja de Torhout, Bélgica.
Foto: F Cardigos

À saída dum centro comercial no Luxemburgo, quatro raparigas, aparentemente de origem portuguesa, estão a conversar com uma felicidade que contagia. Reparei primeiro na linguagem corporal que deixava adivinhar palratório jocoso sobre qualquer coisa pouco importante, mas com risos e sorrisos que extravasavam aquele lugar. Falavam num alemão meio estranho, que me pareceu poder ser luxemburguês. No entanto, por vezes, saltavam para o português e, uma delas, possivelmente francófona, optava preferencialmente pelo francês.
Tinha que tirar o cadeado da bicicleta e fiz por demorar. Queria tentar entender o falejar para o conseguir colorir com uma história. Mas o grupo saltava de língua em língua, fazendo com que apenas uma pessoa que soubesse as três as pudesse entender. Eu sabia duas delas e não entendi. Pareceu-me serem estórias ocorridas num concerto musical em que tinham estado há pouco tempo. Mas seria…?
Só então compreendi! Engenhoso! O saltar entre línguas não era consequência do acaso ou da necessidade. A permanente mudança era uma estratégia. Aquela salada de frutas babilónica estava sabiamente gizada, possivelmente polida ao longo do tempo, para que ninguém as conseguisse entender facilmente.
O português, para os portugueses, cabo-verdianos e brasileiros ou seus descendentes e amigos próximos, é como uma língua de resistência no Luxemburgo. Por exemplo, a miudagem usa o português com enorme animação para poder comunicar como se fossem espiões em missão secreta a falar com o quartel-general.
Há apenas um problema crescente. Como há cada vez mais lusófonos no Luxemburgo, o português deixou de ser uma forma segura de segredar. Estas jovens discretas, que certamente aprenderam luxemburguês numa escola do Grão-Ducado, compreenderam que a maioria dos lusófonos não sabe este idioma, e, voilà, polvilham agora as suas conversas, apenas aqui e ali, onde é necessário para se ficar completamente perdido.
A mistura de línguas por parte dos emigrantes é resultado de uma conjunção de vários motivos. Para além dos que já mencionei, há também a questão da praticalidade. Qualquer língua tem palavras que lhe são originais e para as quais a tradução não é simples. A clássica, para nós portugueses, é a impossibilidade de traduzir “saudade”. No entanto, os exemplos são múltiplos. Vejam como os anglófonos e as anglófonas não têm uma palavra com a força de um “amar”, embora, certamente, amem como os outros.
Há quem veja uma ameaça na mistura de línguas. Consideram, com legitimidade, que o perigo de descaracterização é real. Pelo contrário, eu tendo a considerar que a mistura de línguas num idioma robusto é uma forma de enriquecer e diversificar a comunicação. Para mais, a evolução linguística é uma inevitabilidade. O português falado no século XIX era diferente daquele que falamos hoje e será diferente do português do futuro. E, no entanto, o português resiste e brilha! Tentar parar no tempo é inútil e um passo, mesmo que pequeno, para a intolerância.
Isso não significa que seja contra as definições ortográficas (Acordos e outros). Temos que comunicar com o Estado e isso implica regras bem definidas. Já quanto ao resto… deixemos a língua evoluir!
De facto, gosto de parar e ficar a saborear a musicalidade de quem fala diversas línguas com tal à vontade que pode saltar de uma para outra como se estivesse sempre na mesma. Alguns consideram pífio meter umas palavras de “estrangeiro” no meio das frases. Não concordo. Há uma diferença entre fazê-lo com naturalidade, utilidade, espontaneidade e beleza ou de forma forçada, inconsequente e exibicionista.
Mesmo os flamengos da Bélgica, que defendem a sua língua como poucas vezes vi, metem um “merci” para fortalecer o agradecimento, que na sua língua se fica por um fracote “dank u”. No entanto, talvez para reforçar a sua originalidade, arrastam e atenuam o “R”, resultando num totalmente diferente mérêci. Lindo! O Professor Vítor Rui Dores, o melhor e mais sensível estudioso de pronúncias que conheço, iria adorar “mergulhar” na Flandres e fomentar ainda mais pontes com a ilha do Faial. Quem sabe isso pudesse nascer à luz de uma geminação da Horta com a cidade originária de Josse van Huerter, Torhout na Bélgica…
Algumas pessoas, poucas, conseguiram elevar esta capacidade de misturar línguas numa arte. Penso em particular no Manu Chao em canções como “Welcome to Tijuana”, no Cristóvam e o seu (nosso?) “Andrà Tutto Bene”, penso na “Força” da Nelly Furtado, nos “Pós-Modernos” dos GNR e vem-me à memória uma sublime cantilena de Caetano Veloso, “Língua”; ah como ele canta, “A língua é minha pátria, E eu não tenho pátria, tenho mátria, Eu quero frátria”.
Acabo de tirar o cadeado da bicicleta. Sento-me no selim, pedalo em direção ao por-do-Sol recordando-me dos sorrisos que acabei de ver e do poema que ouvirei daqui a pouco, “Die Meister, Die Besten, Les grandes équipes, The champions!”. Sim, o Benfica vai jogar contra o Maccabi Haifa, em Israel, e o hino que o antecede é também um hino a esta belíssima diversidade linguística e tolerância que grassa pelo nosso velho continente. Viva a Europa!


Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da União Europeia.

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