sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 44: 9981-000 CORVO

 
Azorinas na ilha do Corvo, Açores.
Foto: F Cardigos

Muitas pessoas têm aquilo que se chamam de sonhos recorrentes. Um sonho torna-se “recorrente”, tal como os pesadelos nos casos mais aborrecidos, quando se repete com o mesmo mote em noites diferentes.

Num dos meus sonhos recorrentes, estou a sair da Vila do Corvo, a caminhar para Leste sobre o rolo da Baía do Porto da Casa, indo, portanto, na direção da Ponta do Pesqueiro. Até aqui nada de novo. Tudo isto existe e tudo isto faz parte das minhas paisagens e atividades que guardo nas tranquilas memórias de infância e juventude. Nos verões entre os meus 9 e 16 anos, eu andaria certamente por ali, no mundo real a explorar o lixo que dava à costa ou a tentar apanhar caranguejos. Mas é aqui que termina a realidade e se entra em terras oníricas.

Passando a Ponta do Pesqueiro para o lado de lá tem início um caminho de pé posto que, após meio quilómetro, desagua numa fajã costeira que apenas começou a ser explorada no século XIX. Exposta às tempestades marítimas, tsunamis e a servir de abrigo a piratas desavindos, esta fajã foi sendo esquecida até ficar apagada da memória coletiva.

No final do século XIX, com a falta de madeira para cozinhar e aquecer, as pessoas tentaram voltar novamente à fajã. A ideia era explorar aquele recanto, mas a pequenez, a distância, a dificuldade do caminho, as intempéries e o nevoeiro garantiram que nunca fosse realmente extraído seja o que for. Apesar disso, declararam-se posses e, mesmo que sem qualquer usufruto útil, a área é propriedade privada.

À entrada da fajã, o caminho divide-se em dois e, nesse cruzamento, podemos ver a única casa. O caminho para a esquerda leva a uma velha lagoa costeira, assemelhando-se mesmo a um pântano envolto de plantas. Digamos que é similar à Lagoa de Santo Cristo em São Jorge, mas com vegetação inexplicavelmente luxuriante, quase tropical.

O caminho para a direita, aquele que continuaria pela zona costeira, é-me desconhecido. Talvez termine logo ali à frente, não sei. Vejo umas vidálias junto à costa, mas o sonho nunca me levou mais longe...

A casa situada onde o caminho se divide tem dono, mas ele não vive lá. Como poderia?

Porque gosto muito daquele local, tentei comprar a casa. Infelizmente, o dono pede 45 mil euros e eu considero que apenas vale dois e, com isso, nunca chegamos a fechar negócio. Sonho após sonho e eu lá estou a falar com ele sem sucesso...

Penso que o maior temor do dono é que alguém considere que fez uma má opção ao investir numa casa num sítio tão remoto, esquecido e propenso às intempéries. Ele precisa de reconforto psico-financeiro…

Entre a casa e o pântano há um espaço com urzes de bom porte e umas enormes pedras com inscrições misteriosas. Pena ninguém as ter estudado ainda. No entanto, não admira, este é um local demasiado esquecido.

Dou a volta à lagoa. Na zona mais interior, junto à falésia, restam uns blocos justapostos que, consigo adivinhar, pertenceram aos primeiros povoadores e a uma primeira tentativa frustrada de ocupar o espaço.

Ao voltar, novamente pelo caminho de pé posto, e depois pelo rolo da Baía do Porto da Casa, fiquei com dúvidas que o local existisse mesmo. No meu próprio sonho, a dúvida existia.

Felizmente, encontrei o Sr. carteiro. Estes encontros inesperados e convenientes não acontecem no mundo real, mas são inevitáveis nos meus sonhos. Cá estava a pessoa que me poderia esclarecer.

Prontamente, o Sr. carteiro assegura sem margem para dúvidas: “Claro que sim! Estás louco ou quê?! Apesar de não ter nome, até tem código postal.”. Pergunto-lhe ainda se já lá levou alguma correspondência. Encolhe os ombros, quase enfastiado, e responde-me com enfado que apenas leva correspondência a sítios que existam.

Viro-me, ajusto os lençóis, fecho os olhos e adormeço perguntando-me se a próxima paragem continuará a ser em 9981-000 CORVO… O melhor é ir até lá…


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 43: Aprendendo nas ruínas em Pompeia

 
Arruamento em Pompeia.
Foto: F Cardigos

Não é possível enumerar a quantidade de vezes que disse as palavras “estrada” e “piscina”. Em todas elas, nunca me ocorreu perguntar de onde vêm. Sinto-me até um pouco envergonhado com isso, mas é verdade.

No caso do português, habitualmente as palavras têm origem no galego, no latim, no grego, no árabe, no castelhano, no francês ou numa fusão das anteriores. Algumas palavras, poucas, são mais antigas e derivam do lusitano e muitas, cada vez mais e mais recentes, são importações da língua franca dominante, o inglês.

Para cada palavra é engraçado verificar a origem e a sua razão de ser. A parte da gramática que trata disso, a origem e a formação das palavras, tem o nome de “etimologia”, como é referido no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. 

Por exemplo, “alameda” (já que a seguir vou falar de estrada) significa uma rua orlada de árvores, normalmente álamos. “Alameda” tem mais uma curiosidade: é uma das palavras que, apesar de começar por “al”, não tem origem árabe, mas, aparentemente, latina. A primeira parte parece ter origem em “ulmus”, álamo, e, a segunda parte, talvez em “eda”, que indiretamente significa onde está a raiz.

Reparem que, no parágrafo anterior, fui cauteloso quanto à origem e à decomposição da palavra. É que, em muitos casos, há grandes dúvidas quanto à verdadeira história de cada palavra. No caso de “alameda”, numa curta pesquisa na internet, encontrei três possibilidades.

Mas eu quero é falar na “estrada” e na “piscina”!

Normalmente, quando visito um museu ou afim, antecipadamente, costumo ler um pouco sobre o local. No dia da visita, e se estiver disponível, alugo uns equipamentos de audiodescrição.

Assim não aconteceu nas ruínas de Pompeia que visitei no final do ano passado. Por entre a emoção e a excitação de estar a entrar num local que queria visitar desde que me lembro, esqueci-me de todo de verificar se havia áudio-guias disponíveis. Quando dei por ela, era tarde.

A visita ficou certamente a perder por isso, mas, mesmo assim, foi um dos locais mais fascinantes em que já estive. Entre o drama vulcânico latente e bem lembrado pelo sobranceiro Vesúvio, a quantidade de informação disponível e a qualidade da recuperação do sítio, a sensação é de imersão no passado romano. Para quem visitou Conímbriga, é o mesmo só que muito melhor. E Conímbriga já é espetacular!

A espaços, involuntariamente, aqui e ali, estive próximo de guias que explicavam aos seus clientes o funcionamento da cidade. Tão próximo que não pude deixar de ouvir o que diziam. Entre muitas outras coisas, todas elas pertinentes, detive-me quando o guia disse “o nome estrada vem do latim porque os caminhos eram feitos com diversas camadas, strata”. Evidentemente! Como nunca me tinha ocorrido? As estradas “modernas”, ao contrário dos caminhos de pé posto da antiguidade, têm camadas de solidificação, de escorrência e de pisoteio. “Estrada” vem de strata.

Ao passar na zona do antigo mercado, um espaço circular, no meio, intrigava os turistas. Aproximei-me e ouvi o guia a perguntar “como acham que era a melhor forma de conservar os peixes nas cidades ribeirinhas da antiguidade?”. “Salgado”, pensei eu para com os meus botões. Tão depressa pensei como tão depressa asneei. “Vivos, claro, como é evidente”, disse o guia com um grande sorriso e acrescentando, “Este espaço era uma piscina onde os peixes e outros organismos marinhos eram mantidos vivos até serem vendidos. Piscina vem de piscis e esta é uma das piscinas originais”.

Pompeia é muito mais do que duas palavras. Pompeia é História, é drama, é educação e é tantas outras coisas que merecem ser recordadas. Aprendi imenso naquele dia em Pompeia. No entanto, fiquei com plena consciência que, com o planeamento e enquadramento adequados, poderia ter aproveitado muito melhor. Resta uma solução: Um dia, hei-de voltar!

Vesúvio sobranceiro a Pompeia.
Foto: F Cardigos

* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.