Muitas pessoas têm aquilo
que se chamam de sonhos recorrentes. Um sonho torna-se “recorrente”, tal como
os pesadelos nos casos mais aborrecidos, quando se repete com o mesmo mote em noites
diferentes.
Num dos meus sonhos
recorrentes, estou a sair da Vila do Corvo, a caminhar para Leste sobre o rolo
da Baía do Porto da Casa, indo, portanto, na direção da Ponta do Pesqueiro. Até
aqui nada de novo. Tudo isto existe e tudo isto faz parte das minhas paisagens e
atividades que guardo nas tranquilas memórias de infância e juventude. Nos
verões entre os meus 9 e 16 anos, eu andaria certamente por ali, no mundo real
a explorar o lixo que dava à costa ou a tentar apanhar caranguejos. Mas é aqui
que termina a realidade e se entra em terras oníricas.
Passando a Ponta do
Pesqueiro para o lado de lá tem início um caminho de pé posto que, após meio
quilómetro, desagua numa fajã costeira que apenas começou a ser explorada no
século XIX. Exposta às tempestades marítimas, tsunamis e a servir de abrigo a piratas
desavindos, esta fajã foi sendo esquecida até ficar apagada da memória
coletiva.
No final do século XIX,
com a falta de madeira para cozinhar e aquecer, as pessoas tentaram voltar novamente
à fajã. A ideia era explorar aquele recanto, mas a pequenez, a distância, a
dificuldade do caminho, as intempéries e o nevoeiro garantiram que nunca fosse
realmente extraído seja o que for. Apesar disso, declararam-se posses e, mesmo
que sem qualquer usufruto útil, a área é propriedade privada.
À entrada da fajã, o
caminho divide-se em dois e, nesse cruzamento, podemos ver a única casa. O
caminho para a esquerda leva a uma velha lagoa costeira, assemelhando-se mesmo
a um pântano envolto de plantas. Digamos que é similar à Lagoa de Santo Cristo em
São Jorge, mas com vegetação inexplicavelmente luxuriante, quase tropical.
O caminho para a direita,
aquele que continuaria pela zona costeira, é-me desconhecido. Talvez termine
logo ali à frente, não sei. Vejo umas vidálias junto à costa, mas o sonho nunca
me levou mais longe...
A casa situada onde o
caminho se divide tem dono, mas ele não vive lá. Como poderia?
Porque gosto muito
daquele local, tentei comprar a casa. Infelizmente, o dono pede 45 mil euros e
eu considero que apenas vale dois e, com isso, nunca chegamos a fechar negócio.
Sonho após sonho e eu lá estou a falar com ele sem sucesso...
Penso que o maior temor do
dono é que alguém considere que fez uma má opção ao investir numa casa num
sítio tão remoto, esquecido e propenso às intempéries. Ele precisa de
reconforto psico-financeiro…
Entre a casa e o pântano
há um espaço com urzes de bom porte e umas enormes pedras com inscrições
misteriosas. Pena ninguém as ter estudado ainda. No entanto, não admira, este é
um local demasiado esquecido.
Dou a volta à lagoa. Na
zona mais interior, junto à falésia, restam uns blocos justapostos que, consigo
adivinhar, pertenceram aos primeiros povoadores e a uma primeira tentativa
frustrada de ocupar o espaço.
Ao voltar, novamente pelo
caminho de pé posto, e depois pelo rolo da Baía do Porto da Casa, fiquei com
dúvidas que o local existisse mesmo. No meu próprio sonho, a dúvida existia.
Felizmente, encontrei o Sr.
carteiro. Estes encontros inesperados e convenientes não acontecem no mundo
real, mas são inevitáveis nos meus sonhos. Cá estava a pessoa que me poderia
esclarecer.
Prontamente, o Sr.
carteiro assegura sem margem para dúvidas: “Claro que sim! Estás louco ou quê?!
Apesar de não ter nome, até tem código postal.”. Pergunto-lhe ainda se já lá
levou alguma correspondência. Encolhe os ombros, quase enfastiado, e
responde-me com enfado que apenas leva correspondência a sítios que existam.
Viro-me, ajusto os
lençóis, fecho os olhos e adormeço perguntando-me se a próxima paragem
continuará a ser em 9981-000 CORVO… O melhor é ir até lá…
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