sexta-feira, 23 de junho de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 52: Lacuna musical ou empolgante oportunidade de descoberta?

Num destes dias, num convívio com colegas de trabalho, fiquei ainda mais perplexo com a distância cultural existente entre as diferentes pessoas. No contexto laboral das instituições europeias, a distância geográfica do local de origem é uma determinante que condiciona a língua, os valores e as referências culturais. Até aqui, tudo normal e, como já várias vezes o escrevi neste espaço, estas diferenças fascinam-me. O que não estava à espera, eventualmente apenas porque nunca tinha pensado nisso, foi na distância cultural motivada pela diferença geracional.

Estando encarregue da seleção musical deste convívio em particular, pedi aos colegas que me enviassem sugestões. A maioria, como resultava da minha solicitação, enviaram-me propostas que espelhavam a sua origem, as suas tradições e os seus costumes. Os mais jovens, por outro lado, detiveram-se mais nas músicas da moda que, apesar de não apreciar particularmente, respeitei. Tanto um conjunto como o outro, integrando as músicas do meu próprio gosto ou as que considerava adequadas para motivar a alegria e o convívio, constituíram a seleção final. Passámos uma tarde bem engraçada, entre conversa, gargalhadas e dança. Foi bom.

No final, enquanto se arrumava e limpava o espaço, tropecei num conjunto de músicas que tinha selecionado para um outro fim. Eram melodias rock e pop dos anos 70 e 80, aquelas que fizeram a transição entre a geração dos meus pais e a minha. Cure, Talking Heads e Elvis Costello eram alguns dos protagonistas das músicas que agora, em fim de festa, eram apreciadas pelos mais idosos (como eu…) e ouvidas com curiosidade pelos mais jovens.

Foi então que entendi! Estes jovens não faziam a menor ideia de quem estava a tocar. Não conheciam as músicas, as suas histórias, a sua beleza, o seu contexto e, nalguns casos, nem os nomes dos grupos ou dos artistas. Nada lhes diziam. São pessoas espetaculares em termos de valores e competência, mas, em termos de música “antiga”, sabem muito pouco.

Eu lembro-me que, no meu tempo, conhecíamos os ídolos musicais dos nossos pais e, gostando ou não, tínhamos de ouvir. Jamais alguma das pessoas da minha geração pensou ser possível não reconhecer de imediato e aos primeiros acordes as músicas dos anglófonos Beatles, Janis Joplin ou Buddy Halley, dos francófonos Edith Piaf ou Jacques Brel (que muito apreciava o Faial) ou dos grandes nomes da música erudita. Conhecíamos porque gostávamos, é certo, mas também porque, caso falhássemos na sua identificação, seríamos benevolamente humilhados nos jantares de família e acariciados com mimos do tipo “Estes jovens, não sabem o que é bom…”. E, na realidade, com um percalço ou outro, conhecíamos muito razoavelmente o contexto musical dos nossos pais.

Hoje não é assim. Seja o resultado de um maior distanciamento entre os novos jovens e os seus pais (vítimas dos jogos de vídeo, redes sociais ou outros), o que é certo é que pouco sabem. Coloquei uma das faixas mais conhecidas do álbum Dark Side of the Moon dos Pink Floyd e nada. Não lhes dizia nada! O “Money for Nothing” dos Dire Straits é, para estes jovens, uma sonoridade absolutamente nova. Como é possível?!

Mais do que ter alguma pena ou desgosto, no entanto, o meu sentimento prevalecente é uma certa inveja, admito. Para eles, é tudo novo! Lembro-me de ser miúdo e ouvir nas escadas da entrada do meu ciclo preparatório as músicas de Rock Português que então despontavam. A nossa curiosidade, perplexidade e satisfação coletiva perante cada lançamento enchia-nos de uma alegria sem dimensão e que, ainda hoje, vou procurando em cada música que me chega aos ouvidos. Estes jovens de hoje têm um enorme mundo para descobrir a partir do momento em que se aventurem a ouvir tantas coisas bonitas. Ou será que estes novos jovens serão os primeiros a contrariar a Elis Regina quando cantava “Ainda somos os mesmos e vivemos, Como os nossos pais”?


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 51: Imprevistos da evolução tecnológica colocada ao serviço do cidadão

Há uns anos, alguém me dizia que os carros elétricos eram um perigo porque as pessoas invisuais não os conseguiam detetar. Era necessário o barulho dos motores para que conseguissem identificar o risco. Como tinha um carro híbrido que se limitava ao motor elétrico em parte da circulação citadina, passei a ter atenção redobrada com os peões. Para ser verdadeiro, durante os dez anos que esse carro me acompanhou, não tive qualquer problema com cidadãos invisuais.

No entanto, registei a tentativa de introdução de ruídos artificiais nos carros elétricos que se deslocam em cidade como uma atenção para com um conjunto de pessoas que merece o nosso particular cuidado dadas as suas limitações neste aspeto específico. Ao mesmo tempo, pensei que seria apenas uma questão de tempo até que a maioria dos carros se tornassem silenciosos e aí, com menor ruído em geral, seria possível eliminar o ruído artificialmente introduzido. Não sei o que aconteceu depois, até porque agora me desloco de bicicleta e apenas conduzo carros emprestados ou alugados.

Tudo isto significa que a introdução de uma mais-valia tecnológica, como os automóveis sem emissões, pode acarretar alterações ao quotidiano como o conhecemos e de formas que, pelo menos eu, não antecipei. E isso voltou a repetir-se…

Aqui no Luxemburgo, as pessoas são estimuladas pelo rendimento e pelas regras fiscais estabelecidas a trocar de carro com uma frequência mais elevada do que em qualquer outro sítio onde eu tenha estado. Isso significa que o parque automóvel, em todas as gamas, é muito recente e tem, por isso, todas as novidades tecnológicas que estejam a despontar.

Uma dessas novidades é a deteção automática de peões e bicicletas. Descobri isso da pior forma. Talvez não da pior, visto que ninguém se magoou, mas, pelo menos, de uma forma nada simpática.

Num parque de estacionamento, resolvi passar muito perto da frente de um carro que estava a recuar. Estando com as luzes de recuo acesas, eu sabia que a minha bicicleta poderia passar à frente do carro sem qualquer problema de segurança. Apenas o carro não o sabia e disparou os alarmes internos. A senhora idosa que conduzia a viatura, resultado do enorme susto e consequente irritação, apitou imenso. Desconhecendo o que tinha sucedido dentro do veículo e pensando que estava aflita, voltei atrás e tentei ajudar. Para minha surpresa, fui brindado com um conjunto de insultos que desconhecia dado estarem a ser ditos em luxemburguês. Depois de perceber o que tinha acontecido, pedi desculpa e tentei acalmar a senhora. Penso que ficámos bem…

Esta mesma situação voltou a acontecer, novamente num parque de estacionamento, mas dessa vez eu estava apenas próximo do automóvel. Os carros estão a ficar muito suscetíveis, pensei eu… Mais uma vez, “as minhas desculpas” e ala que andar.

Recentemente, descobri que há uma nova e muito mais perigosa evolução. Os novos modelos de automóveis bloqueiam quando uma bicicleta se aproxima a alta velocidade. Tendo uma bicicleta elétrica com travões de disco, não hesitava em entrar dentro das rotundas como se não houvesse amanhã. Da última vez que o fiz, o carro que ficou à minha frente, e que eu pretendia passar por trás, bloqueou as rodas e ia provocando um acidente, sendo eu um dos potenciais envolvidos e, de certa forma, responsável. Fiquei meio desconcertado de tanto pasmo e, mais uma vez, fui brindado com um conjunto de palavrões que, progressivamente, começo a reconhecer… Depois de acalmar, o condutor explicou-me o que tinha acontecido e acabamos por nos rir um pouco da situação, particularmente por causa da minha cara de total espanto.

Sou o mais possível a favor do desenvolvimento tecnológico, da sua colocação ao serviço do cidadão e, particularmente, daquelas inovações que aumentam a segurança na estrada. No entanto, devia haver um género de curso ou, no mínimo, uma circular para que os ciclistas se preparassem e se precavessem para este mundo em constante mudança. Seria meio estranho que acabasse vítima de um dispositivo desenvolvido para me proteger!


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.