sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 56: Trabalhando para o público

Nunca fui “funcionário público” na acepção portuguesa da expressão. Ou seja, nunca tive um contrato permanente com organizações públicas, apesar de ter sempre trabalhado em serviços públicos. Ao longo da vida, tive contratos baseados em bolsas de investigação ou a termo. Isto significou que, no final de cada ciclo, tive de provar o sucesso anterior e candidatar-me a novas posições. Esta sequência apenas foi quebrada quando me convidaram para desempenhar funções oficiais.

A grande vantagem deste rodopio laboral é que sempre pude escolher o que mais me convinha entre o que estava disponível (em termos de objetivos profissionais, de remuneração e de outras condições), mas com a enorme desvantagem de nunca ter tido estabilidade. Assim sendo, sempre que estive sob contrato ganhei mais e fiz essencialmente o que gostava, mas o máximo que pude planear à frente foram três anos. Digamos que é péssimo para obter um crédito para comprar uma casa ou um carro e um pouco deprimente nos períodos entre contratos.

A diversidade de posições e a alternância de organizações para que trabalhei deram-me uma perspectiva abrangente das diferentes realidades e o privilégio de poder dar alguns contributos para reflexão. Devo começar por dizer que o sistema português é, comparativamente, pouco versátil, cheio de privilégios inquestionados e com o progresso na carreira assente quase totalmente na antiguidade. O resultado é que os funcionários públicos em Portugal tendem a fazer apenas o necessário. Fazem-no bem, mesmo muito bem, mas o mínimo necessário e sem nunca dar nas vistas.

No Parlamento Europeu fui assistente parlamentar acreditado de um membro eleito. Os assistentes não têm lugares permanentes e têm de “lutar” para permanecer ou melhorar a sua posição. Ganha-se bem, mas um mau assistente é despedido sem misericórdia ou compensação. É o preço a pagar. Tipicamente, o assistente especializa-se na respetiva área de competência e, em princípio, vai acedendo a novos contratos, por vezes trocando de eurodeputado para melhorar a sua situação financeira ou aceder a uma maior longevidade contratual. Os melhores eurodeputados tendem a atrair os melhores assistentes e vice-versa.

Na Comissão Europeia, onde trabalho atualmente, há dois níveis de progressão. A progressão horizontal, por escalão, é totalmente assente no tempo de serviço. São pequenos saltos, até atingir o escalão máximo dentro de um grau, mas que, apesar de pequenos, estimulam a permanência na instituição.

A progressão vertical, faz parte de um processo mais geral que começa pela avaliação anual do funcionário. Com base nesta avaliação, que segue também um processo bem formalizado, é a hierarquia que, por entre os seus funcionários, escolhe os melhores para propor para promoção. Estas propostas são depois discutidas pelos níveis hierárquicos superiores até haver uma lista estabelecida por cada Direção Geral. Sendo o número de promovidos limitado, esta lista não contém todos os propostos pela hierarquia imediata.

Quando um funcionário se sente mal ou injustiçado pela sua chefia ou pelo resultado final do exercício das promoções pode lançar um recurso ou, simplesmente, pedir para ser deslocado de unidade. Pelo que pude verificar, a maioria das pessoas que é competente e não está confortável com a classificação pede para ser deslocado de unidade o que, tipicamente, acontece rapidamente e sem qualquer conflito.

O processo de progressão é acompanhado por sindicatos e por estruturas oficiais que verificam e auditam o sistema. Isso garante que não há privilégios imerecidos ou outras regalias fantasmas. Portanto, está tudo montado para que seja promotor da competência e desmobilizador do conflito.

 Um funcionário que queira avançar mais rápido na carreira e saltar mais de um nível pode sempre concorrer a um dos variados concursos lançados pelas Instituições europeias. Por exemplo, um colega meu com contrato permanente na Comissão Europeia descobriu recentemente que havia concurso para dois níveis acima do dele e para o qual era elegível. Começou de imediato a estudar e, caso tenha sucesso, vai ganhar mais mil euros por mês! Terá que fazer os exames necessários para provar que tem realmente competência para assumir as novas responsabilidades, mas, em caso de sucesso, será altamente recompensado. O serviço também fica a ganhar porque seleciona a melhor pessoa de entre as dezenas de milhar que tem nos seus quadros.

Um enorme contraste com o caso português, preso numa teia de burocracia, desconfiança e com recompensas difíceis de discernir. Por exemplo, há pouco tempo reparei que os melhores funcionários públicos portugueses podem ser agraciados com um dia suplementar de férias anual. Para isso, terão de ser avaliados e auditados num interminável procedimento. Eu, que nem sou funcionário do quadro da Comissão, estou hoje a usufruir de um dia suplementar de férias (aqui chamado de “recuperação”) apenas porque nos registos diários se concluiu que tenho trabalhado mais tempo do que era suposto. Depois de uma confirmação sumária segue-se uma autorização quase imediata por parte da hierarquia. Claro que, quando amanhã voltar ao trabalho, irei muito mais satisfeito e cheio de vontade de produzir porque sei que o sistema está montado para olhar descomplicadamente por quem se dedica. Isso é espetacular.

Para terminar quero referir um exemplo de que tive conhecimento através de um livro publicado este ano. Apesar de ter sido escrito por um eurodeputado, Raphael Glucksmann, a passagem em causa refere-se aos funcionários públicos de Taiwan e, parece-me, poderia facilmente ser aplicado em Portugal.

Trata-se de um sistema que avalia as propostas anualmente sugeridas pelos milhares de funcionários públicos para a melhoria do seu próprio serviço. Depois de avaliadas, as propostas meritórias são colocadas em prática e os autores são automaticamente promovidos sem qualquer intervenção das chefias. Isto faz com que as pessoas que têm melhores ideias e maior capacidade de gerar a mudança positiva sejam altamente estimuladas e, se for caso disso, rapidamente colocadas em posição de implementar essa mesma mudança.

Com um somatório de atitudes como estas, o certo é que Taiwan (República da China, de seu nome oficial) continua a resistir. Uma enorme prova de sucesso.



* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 55: Pára tudo!

Proposta de Áreas Marinhas Protegidas no Mar dos Açores.


Pára tudo! Assim mesmo, em português do antigo e do bom!

Pára tudo, já! Isto é mesmo importante para todos os que gostam de mar. Aquele mar gigante, grande, largo, azul, útil, venturoso, profundo, misterioso e inspirador? Sim, precisamente!

O Governo dos Açores lançou um processo de consulta pública para todos os cidadãos interessados se pronunciarem sobre a nova proposta de Rede de Áreas Marinhas Protegidas do arquipélago. Este processo de consulta pública inclui as áreas propriamente ditas (expostas em mapas) e o enquadramento jurídico para a gestão da nova rede.

Em termos científicos, este processo assenta em muito no trabalho iniciado pelo Doutor Ricardo Serrão Santos e hoje protagonizado pelos cientistas do Okeanos, antigo DOP. Aliás, um dos relatórios deste instituto, denominado “Cenários de planeamento sistemático de conservação do mar profundo dos Açores”, faz parte do próprio processo de consulta. O relatório é coordenado pelo Doutor Telmo Morato e a sua equipa está, neste momento, a terminar a visita à centena e meia de montes submarinos dos Açores que se localizam até aos mil metros de profundidade. É um trabalho gigantesco, nunca antes feito e que usa muita tecnologia desenvolvida no próprio arquipélago.

Sendo a investigação científica do mar profundo um trabalho que exige enormes esforços, merece também menção o multilateralismo e a cooperação científica internacional. Ao longo dos anos, investigadores do Okeanos, como a Doutora Ana Colaço, também Comissária da Comissão do Mar dos Sargaços (baseada na Declaração da Hamilton), vêm reforçando as parcerias com os melhores institutos de investigação do mundo que permitem, progressivamente, ir conhecendo o Mar dos Açores, aquele que agora queremos proteger ainda melhor.

Não irei aqui repetir o anúncio da consulta pública que pode ser encontrado na internet com uma simples pesquisa, mas tenho de enfatizar alguns detalhes. Em primeiro lugar, esta proposta permitirá proteger 30% do mar alto dos Açores. Todos os cientistas sérios referem vezes sem conta que este é um factor essencial para a recuperação e preservação dos Oceanos. É necessário proteger, pelo menos, 30% dos oceanos globais. Ao apontar para este número, os Açores estão a responder coerentemente ao repto internacional.

Em simultâneo, os mesmos cientistas referem que é necessário interditar à extração cerca de 15% dos Oceanos. Mais uma vez, a proposta aponta para este número. Portanto, se podemos e devemos questionar alguns dos detalhes expostos na consulta pública, estes números, para mim, são realmente importantes e urge não os colocar em risco.

Alguns poderão dizer que interditar à extração 15% do Mar dos Açores pode ter custos. Realisticamente, não me parece. Certamente, algumas áreas significativas para as pescas ficarão agora interditas. No entanto, estas áreas, os tais 15%, servirão de base a diversos serviços ecológicos que beneficiarão todas as atividades, incluindo as pescas. Por exemplo, estas áreas protegidas podem funcionar como zona de reprodução, como zona de crescimento, como zona de refúgio ou como zona para outros processos ecológicos de recuperação e resiliência ambiental.

Não me parece que esta Rede de Áreas Marinhas Protegidas prejudique as pescas ou outras atividades extractivas que decorrem nos Açores, mas mesmo que prejudicasse, há zonas que, pelo seu elevado valor em termos de biodiversidade, em termos de geodiversidade ou de património arqueológico têm que ficar em paz. Não podemos estar preocupados com o ambiente, com a natureza e com a cultura às terças e quintas e destruí-las no resto da semana. Há ações que custam, mas que temos de fazer. Felizmente, não me parece que esta Rede seja um peso. Os benefícios ultrapassam em muito os custos associados.

Como referia, há certamente ainda alguns aspectos a melhorar na proposta. Na minha opinião, há que restringir o uso em zonas adicionais. Por exemplo, é imprescindível que zonas vulneráveis da Dorsal Médio-Atlântica, como as fontes hidrotermais “Menez Gwen” e “Luso” e os montes submarinos particularmente ricos em esponjas e corais do mar profundo, sejam incluídas nas zonas não extractivas. São locais com uma enorme biodiversidade e espécies que não existem em mais lado nenhum. Que irresponsabilidade seria não as proteger. Felizmente, temos este processo de consulta pública para expressarmos estas e outras opiniões e daqui nascer uma Rede de Áreas Marinhas Protegidas do mar alto que seja um exemplo a nível mundial.

Atrás, refiro o “mar alto” porque a revisão das zonas marinhas costeiras, aquelas que integram os Parques Naturais de Ilha dos Açores, ficarão para um segundo momento. Está a decorrer um processo participativo paralelo de definição e que, certamente, estará em breve em consulta pública. Por essas áreas costeiras, aguardemos.

É mesmo importante ler os documentos associados à nova Rede de Áreas Marinhas Protegidas do mar alto dos Açores, refletir e participar. Até 15 de setembro, os nossos governantes têm de sentir que o Mar dos Açores é mesmo relevante para os açorianos e para todos os que têm o sangue polvilhado de maresia. Este é o momento de o demonstrar!


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.