sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 65: A opinião robusta e o debate sério são pilares da democracia

Muitas civilizações antigas, incluindo a etrusca e a romana, utilizavam a inspeção dos órgãos internos dos animais para antecipar eventos futuros. Essa prática cruel até tinha nome, “extispício”. A plebe tranquilizava-se com o vislumbre dos sonhos dos deuses expressos nas entranhas dos pobres animais e a decisão era tomada. Não sei se o presságio apareceu nalguma mancha de fígado, mas todas essas civilizações se esfumaram com o passar do tempo...

Quando hoje oiço os monólogos semanais dos fazedores de opinião, fico recorrentemente com uma sensação estranha. Explicando: Sempre que falam de algo que é da minha área de conhecimento, eu deteto fragilidades na argumentação e, por vezes, mesmo conclusões erradas. Comecei a perguntar a especialistas se tinham uma perceção parecida com a minha e a resposta foi muitas vezes positiva.

Ou seja, os especialistas em generalidades são apenas isso mesmo. Ouvi-los pode ser um legítimo ponto de partida para compreender um assunto, até porque falam bem e de forma articulada e podem chamar a atenção para temas e perspetivas que nos tinham escapado, mas ouvi-los jamais pode ser o ponto de chegada. Por exemplo, eu gosto das formas de pensar e de se expressarem o Miguel Sousa Tavares, o Ricardo Araújo Pereira, a Teresa de Sousa, o Pedro Tadeu e o Jaime Nogueira Pinto. Semanalmente, lá estou à espera de ler ou de ouvir as suas crónicas. Cada um no seu estilo, com as suas convicções e com as suas ferramentas, vão expondo ou passando as atualidades pelo crivo da história, do bom senso ou do humor. Eu vou tomando notas mentais sobre o que me interessa e a verdade é que estou muitas vezes em desacordo com as suas opiniões. Nalguns casos, o estudo ou o tempo dão-me razão. Noutros, mais, dão-lhes a eles. Faz parte.

Há um outro tipo de fazedores de opinião. Pessoas que nada sabem sobre o que falam e que nem têm a humildade de colocar essa hipótese. Militares a opinar sobre a igreja, médicos a opinar sobre a guerra, e sacerdotes a opinar sobre medicina ou, mais tipicamente agora, pessoas sem especialidade conhecida a opinar sobre tudo e ao mesmo tempo. Passados vinte séculos, por vezes, sinto que pouco mudou. Autênticos arúspices são colocados em frente das câmaras e discorrem em monólogos ou diálogos simplistas, populistas, intolerantes, antipáticos e agressivos. De vez em quando, parece apenas ficar a faltar ver manchas sobre um fígado esventrado...

Num qualquer debate de ideias é muito comum colocarem-se perspetivas opostas no mesmo plano. Numa sociedade democrática, a tolerância pela diferença e a liberdade de expressão a isso obrigam. É desse confronto de ideias que nasce a opinião e, com o seu fortalecimento, a decisão. No entanto, esta abordagem que considero essencialmente natural e justa, tem um aspecto perverso. É que coloca em pé de igualdade o cientista e o ignorante.

Durante os anos recentes, cientistas tiveram de lutar contra o obscurantismo e negacionismo relativamente à existência das alterações climáticas e à eficácia das vacinas porque, nalguns casos deliberadamente e com dolo, foram colocadas em confronto ideias com géneses e propósitos diametralmente opostos. Por um lado, cientistas, com ideias baseadas no conhecimento e expostas por bem, e, do outro, ignorantes, com ideias baseadas no facilitismo e na popularidade. Fico espantado ao ver a eficácia da passagem de mensagens erradas, em que o sucesso e a decisão são baseados em níveis de popularidade e não no bom senso. Quem grita mais alto vence, por vezes parece-me…

O nosso modelo de sociedade, apesar de ser o melhor e mais avançado, está em crise. Há várias razões para isso. Uma delas é o tempo de antena que irresponsavelmente é dado a pessoas que nada sabem. É nossa responsabilidade, dos que ouvimos, escolher e apoiar quem opina bem.

Até o extispício pode ter sido útil no antigamente. Naqueles idos tempos, por exemplo, uma futura alteração no clima podia ser prematuramente detetada em modificações nos sensíveis órgãos internos dos animais e, com isso, tomar melhores decisões sobre culturas agrícolas, por exemplo. Adicionalmente, os extispícios modernos, chamados biópsias, são usados para detetar alterações de saúde e são essenciais na prevenção em tempo de algumas doenças gravíssimas. O erro ocorre quando da ciência se passa à panaceia e se usam extispícios e biópsias para decidir em quem votar ou prever em que dia vai o Homem voltar à Lua.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 64: As flores, sempre as flores


Uma flor.
Foto: F Cardigos

A partilha periódica de conhecimentos gerais ou do resultado da exploração de um tema específico é uma boa prática que tenho observado nos melhores locais onde já trabalhei. Com esta postura e num intervalo de tempo que pode variar entre o semanal e o bimestral, os colegas expõem e explicam o que estão a fazer em termos de trabalho e recebem em troca conselhos ou informações complementares que resultam do trabalho dos restantes colegas. Para além destes óbvios benefícios, também aumenta as sinergias humanas, fortalece a solidariedade laboral e, portanto, há uma nítida melhoria do ambiente de trabalho. 

Neste dia, o colega que estava encarregue de palestrar entrou na sala de reunião uns minutos antes dos restantes. Quando eu lá cheguei já havia um conjunto de pequenos frascos de medicamentos em cima da mesa. “Que tens aí dentro?!” Disse eu entre o admirado e o meio perdido visto o tema da palestra estar bem longe de produtos farmacêuticos, vacinas ou cosméticos que pudessem justificar aquela parafernália. 

Sabes, tudo isto que aqui falamos é muito importante, mas há guerras lá fora. Há tanto sofrimento... As nossas palestras são importantes, sem dúvida, mas há algo maior e que exige ação em todos os momentos. Aqui, dentro de cada frasco, estão sementes de flores que colhi no jardim de casa. Agora espalho as sementes pelas pessoas de bem, para que possam plantar algumas flores por aí. Que as guerras sejam também contrariadas por flores. É pouco, mas é o que está ao meu alcance. Tentar contrariar a loucura...”  

O meu espírito pragmático e analítico impede-me de apreciar a partilha de “pedaços de plantas” (uma forma pouco polida de dizer “ramos de flores”) como um gesto de conforto, amor ou paz. Compreendo a bondade do gesto e, por isso, também o faço, mas... fica-me sempre um certo sabor a contradição paradoxal. O meu colega, sábio, resolveu esse problema com a oferta de flores potenciais dentro de frascos reutilizados.  

De qualquer forma, admito e concordo: As flores, em todas as suas formas, têm o poder de orientar o cérebro dos humanos para pensamentos pacíficos e harmoniosos. Portanto, sejam juntas ou separadas do restante organismo, as flores acompanham alguns dos momentos mais dignos e solidários da humanidade, pelo menos, já desde o tempo de Inês de Castro... 

Em São Francisco, no final dos anos 60, as flores povoavam os cabelos de quem cantava a necessidade do amor e da beleza. O movimento “flower power” estava no seu auge e hoje tão distante… Lembro-me de como os cravos invadiram a cidade de Lisboa em abril de 1974. Eram flores de esperança e de revolução pacífica.  

Sinto que o nosso planeta precisa de flores, mais flores, e aprender com elas, como o Pequeno Príncipe aprendeu com a rosa e como todos podemos aprender com a “Desert Rose” do Sting. Do outro lado do espectro do amor, como os lusófonos se emocionaram com a “Rosa de Hiroxima” de Vinícius de Moraes cantada pela voz maior de Ney Matogrosso... 

As flores aí estão! Basta voltar a olhar para elas e partilhar a beleza da sua fragância e da sua estética. Tirar os olhos da violência, recusá-la, recusar quem a quer impor ou vender e olhar para as flores, olhar pelas flores. Aprender a beleza, a harmonia, a fraternidade e como podem estas ser tão agradáveis e compensadoras.  

No formato da ilha mais linda ou na esperança do meu colega. As flores e, se possível, as flores nas Flores… 

 

* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.