Muitas civilizações antigas, incluindo a etrusca e a romana, utilizavam a inspeção dos órgãos internos dos animais para antecipar eventos futuros. Essa prática cruel até tinha nome, “extispício”. A plebe tranquilizava-se com o vislumbre dos sonhos dos deuses expressos nas entranhas dos pobres animais e a decisão era tomada. Não sei se o presságio apareceu nalguma mancha de fígado, mas todas essas civilizações se esfumaram com o passar do tempo...
Quando hoje oiço os monólogos semanais dos fazedores de opinião, fico
recorrentemente com uma sensação estranha. Explicando: Sempre que falam de algo
que é da minha área de conhecimento, eu deteto fragilidades na argumentação e,
por vezes, mesmo conclusões erradas. Comecei a perguntar a especialistas se
tinham uma perceção parecida com a minha e a resposta foi muitas vezes positiva.
Ou seja, os especialistas em generalidades são apenas isso mesmo. Ouvi-los
pode ser um legítimo ponto de partida para compreender um assunto, até porque
falam bem e de forma articulada e podem chamar a atenção para temas e
perspetivas que nos tinham escapado, mas ouvi-los jamais pode ser o ponto de
chegada. Por exemplo, eu gosto das formas de pensar e de se expressarem o
Miguel Sousa Tavares, o Ricardo Araújo Pereira, a Teresa de Sousa, o Pedro
Tadeu e o Jaime Nogueira Pinto. Semanalmente, lá estou à espera de ler ou de
ouvir as suas crónicas. Cada um no seu estilo, com as suas convicções e com as
suas ferramentas, vão expondo ou passando as atualidades pelo crivo da
história, do bom senso ou do humor. Eu vou tomando notas mentais sobre o que me
interessa e a verdade é que estou muitas vezes em desacordo com as suas
opiniões. Nalguns casos, o estudo ou o tempo dão-me razão. Noutros, mais,
dão-lhes a eles. Faz parte.
Há um outro tipo de fazedores de opinião. Pessoas que nada sabem sobre o
que falam e que nem têm a humildade de colocar essa hipótese. Militares a
opinar sobre a igreja, médicos a opinar sobre a guerra, e sacerdotes a opinar
sobre medicina ou, mais tipicamente agora, pessoas sem especialidade conhecida
a opinar sobre tudo e ao mesmo tempo. Passados vinte séculos, por vezes, sinto
que pouco mudou. Autênticos arúspices são colocados em frente das câmaras e
discorrem em monólogos ou diálogos simplistas, populistas, intolerantes,
antipáticos e agressivos. De vez em quando, parece apenas ficar a faltar ver
manchas sobre um fígado esventrado...
Num qualquer debate de ideias é muito comum colocarem-se perspetivas
opostas no mesmo plano. Numa sociedade democrática, a tolerância pela diferença
e a liberdade de expressão a isso obrigam. É desse confronto de ideias que
nasce a opinião e, com o seu fortalecimento, a decisão. No entanto, esta
abordagem que considero essencialmente natural e justa, tem um aspecto perverso.
É que coloca em pé de igualdade o cientista e o ignorante.
Durante os anos recentes, cientistas tiveram de lutar contra o
obscurantismo e negacionismo relativamente à existência das alterações
climáticas e à eficácia das vacinas porque, nalguns casos deliberadamente e com
dolo, foram colocadas em confronto ideias com géneses e propósitos
diametralmente opostos. Por um lado, cientistas, com ideias baseadas no
conhecimento e expostas por bem, e, do outro, ignorantes, com ideias baseadas
no facilitismo e na popularidade. Fico espantado ao ver a eficácia da passagem
de mensagens erradas, em que o sucesso e a decisão são baseados em níveis de
popularidade e não no bom senso. Quem grita mais alto vence, por vezes
parece-me…
O nosso modelo de sociedade, apesar de ser o melhor e mais avançado, está
em crise. Há várias razões para isso. Uma delas é o tempo de antena que
irresponsavelmente é dado a pessoas que nada sabem. É nossa responsabilidade,
dos que ouvimos, escolher e apoiar quem opina bem.
Até o extispício pode ter sido útil no antigamente. Naqueles idos tempos,
por exemplo, uma futura alteração no clima podia ser prematuramente detetada em
modificações nos sensíveis órgãos internos dos animais e, com isso, tomar
melhores decisões sobre culturas agrícolas, por exemplo. Adicionalmente, os
extispícios modernos, chamados biópsias, são usados para detetar alterações de
saúde e são essenciais na prevenção em tempo de algumas doenças gravíssimas. O
erro ocorre quando da ciência se passa à panaceia e se usam extispícios e
biópsias para decidir em quem votar ou prever em que dia vai o Homem voltar à
Lua.
* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.
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