sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 86: Peixe-rei e rainhas em tempos incertos

 

Peixe-rei limpa boga.
Foto: F Cardigos

Num estudo liderado por um cientista português em colaboração com colegas da Alemanha, Estados Unidos da América, Hungria, Itália e Suíça foi explorada a dinâmica de caça coletiva entre polvos e diversas espécies de peixes. O trabalho foi recentemente publicado numa revista do grupo Nature e é intitulado "Multidimensional social influence drives leadership and composition-dependent success in octopus-fish hunting groups". Nele examina-se como a complexidade social multidimensional influencia a liderança e o sucesso do grupo. Através de técnicas de rastreamento tridimensional no mar e em experiências controladas, os investigadores descobriram que estes grupos apresentam dinâmicas funcionais complexas e propriedades dependentes da composição específica dos membros. A influência social é distribuída de forma hierárquica em múltiplas escalas, reflectindo as respetivas especializações: o polvo decide “se” e “quando” o grupo se desloca e os peixes lideram a exploração do meio, decidindo “para onde” o grupo se move. É um trabalho muito interessante e é acompanhado por vídeos ilustrativos. Vale a pena espreitar.

Ao ler o artigo não pude deixar de pensar em organismos marinhos que se especializam na cooperação. Por exemplo, os peixes-piloto e as rémoras que acompanham os tubarões e as jamantas num bailado de aparente eterna sincronia.

No entanto, os que mais me fascinam, até porque são muito simples de observar, são os peixes-rei e as rainhas. São duas espécies diferentes que se ocupam a limpar outros peixes de parasitas externos. Aqui, neste mar dos Açores, a vassalagem é prestada por suas altezas que, desta forma, obtêm uma refeição gratuita. Os outros peixes, aqueles que são limpos, livram-se de incómodos parasitas.

Não se pense por um instante que a aristocracia piscícola rouba os parasitas. Nada disso. Como poderá observar facilmente, os peixes que são limpos entram em algo que parece hipnotismo, letargia ou levitação, parando na coluna de água com as barbatanas bem esticadas permitindo assim que o trabalho fique bem feito. Quero vincar, portanto, que não é apenas oportunismo por parte da aqua-nobreza, é mesmo cooperação de que resultam dois beneficiários. Esta é apenas uma das milhares de histórias de que pode usufruir quem se atrever a meter a cabeça debaixo de água nos Açores. É simples.

Infelizmente, tudo isto está em risco. Como pudemos observar nestas últimas semanas, muitos meros têm morrido de algo que os cientistas do DOP/Okeanos tendem a relacionar com as alterações climáticas. De facto, mergulhei no Corvo este Verão e a água estava notoriamente quente, como nunca tinha sentido nos Açores.

Enquanto sociedade, andámos demasiado tempo a fingir que as alterações climáticas não existiam. Quando estas se tornaram evidentes, enquanto sociedade, tentámos inventar que não era culpa dos humanos. Agora, os meros começam a aparecer à superfície do mar, como bolhas numa panela de água a ferver, passe o exagero.

Nós, os seres humanos, temos uma responsabilidade significativa na intensificação das alterações climáticas porque atividades como a queima de combustíveis fósseis e a desflorestação contribuem para o aquecimento global. As consequências dessas alterações incluem o aumento do nível do mar, a intensificação de fenómenos meteorológicos extremos, como tempestades e secas, e a perda de biodiversidade, que podem ter impactos devastadores nas sociedades humanas e nos ecossistemas.

Que desculpa iremos inventar a seguir?! Era mais simples e mais eficaz agir. Cada um de nós, seja por ações, por sensibilização ou como lhe parecer bem, agir. Entre outras ações, é preciso escolher melhor, optando sempre por soluções que pressionem menos a natureza planetária, e compensar ambientalmente as inevitáveis viagens de avião. Os nossos filhos e netos merecem ter a oportunidade de ficar fascinados com a natureza que nos envolve. Nós não temos o direito de, por inacção, lhes estragar o futuro.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

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