sexta-feira, 26 de maio de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 50: Castelo de Malbrouck

 

Interior do Castelo de Malbrouck.
Foto: F Cardigos

Os erros continuam a encantar-me. Atenção, eu não estou a afirmar que gosto de me enganar ou que outros se enganem. Nada disso. Simplesmente, depois do erro feito, eu aprecio realmente tentar entender a sua génese, rir-me da sua imprevisibilidade, deleitar-me com as suas inesperadas consequências positivas, se existirem claro está, e, se nada de mais relevante houver, tentar entender como se podem evitar futuras situações equivalentes.

Sou um aficionado do planeamento e profissionalmente totalmente dependente do cumprimento de objetivos. Por isso, na realidade, tenho pavor aos erros antes de eles acontecerem. Algo que, de forma inesperada, se intrometa entre o percurso definido e a conclusão da tarefa pode implicar falhar aquela meta que ajudará a pagar as contas ao final do mês. No entanto, vezes demais, tenho notado que muitos erros são “velhacos”, tal como o “Caracol” do cancioneiro açoriano.

Pausa no artigo e no seu fluxo racional para informar que quem não entender a referência anterior precisa de um refrescante curso de cultura popular açoriana. De qualquer forma, todos podem, devem e têm de escutar a versão do “Caracol” pelo O Experimentar Não M’Incomoda, cantado por Miguel Machete, com arranjos e criação de Pedro Lucas e inspirado n’ “O Cantar Na M'Incomoda” de Carlos Medeiros. Fim da pausa no artigo e reinício do seu fluxo razoavelmente racional.

Para mim, muitos erros são velhacos porque, numa torção inesperada da realidade, perdem a sua componente penalizadora e se transformam em benignas e enganadoras paródias. Quais trapaceiros, ludibriam-nos, mas dão-nos um sorriso ao mesmo tempo.

E com tudo isto ainda não chegamos ao Castelo de Malbrouck. E não chegámos até porque nem era suposto lá termos chegado! A uma última curva de entrar na cidade de Schengen, o condutor não virou à direita, continuou em frente corrompendo o espaço-tempo. Daí para a frente, o inesperado ir-se-ia suceder com uma cadência que desafia a normalidade.

Tentando encontrar no meu cérebro uma alternativa para o erro (sim, admito, eu era o condutor), uma placa brilhou no meio do meu campo visual: “Château de Malbrouck”. Ao meu lado, talvez tentando salvar-me do meu erro, a Sílvia diz-me: “Dizem que o Castelo de Malbrouck tem muito interesse.”

Pensar depressa: Estamos entre três países, Alemanha, Luxemburgo e França. Dois desses países andaram às turras durante séculos. Um castelo construído nesta zona tem certamente mil histórias para contar. “Abandonemos Schengen, Malbrouck é o nosso destino. Sempre foi! Boa?” “Sim, sim.”, responde generosamente a Sílvia.

O Castelo de Malbrouck nem sempre teve esse nome. Construído no século XV com o nome de Meinsberg, tinha por fim dar estatuto ao aristocrata que o mandou construir, dissuadir quaisquer intenções de tomada da área subjacente e resistir a investidas exteriores em caso de necessidade. De tal forma bem-sucedido, o castelo jamais teve uso beligerante até que se deram os eventos que conduziram à mudança de nome.

O nome “Malbrouck”, o castelo herdou-o de um importantíssimo general inglês que jamais se chamou Malbrouck, mas sim Malbrough. Para se ter uma ideia da importância de Malbrough, talvez baste dizer que o famoso Duque de Wellington se referiu a Malbrough como o melhor. Simplesmente, os francófonos não são muito dotados para as línguas (dito pelos próprios) e Malbrough passou a Malbrouck. De certa forma até é bom porque o que ali sucedeu não é muito digno.

À frente de uma coligação internacional em 1705, Malbrough tentava invadir a França. Enquanto aguardava por reforços, fez base no castelo Meinsberg e estacionou o seu exército de 100 mil homens ali à volta.

O exército que deveria resistir à investida era comandado pelo marechal Villars e tinha apenas 50 mil homens. No entanto, entre o respeito pelo marechal Villars e o medo, Malbrough preferiu esperar por reforços. Esperou tempo demais e, em vez de ter reforços, viu o seu próprio exército começar a desertar. Constatando que estava enfraquecido, Malbrough acabou por se retirar durante a escuridão de uma das noites seguintes.

Imaginem a surpresa do marechal Villars quando numa manhã ao levantar-se descobriu que tinha ganho uma batalha contra um exército muito mais forte que o seu e sem sequer ter um único ferido. Deve ter sido um dia bem feliz!

A História é madrasta e Malbrough, esquecido de todas as suas vitórias e glórias, é hoje apenas lembrado pelo castelo de onde fugiu e pela música “Malbrough s'en va-t-en guerre” que celebra a sua morte numa batalha em 1709 onde nem sequer morreu… Talvez para tentar fazer esquecer a letra trocista francesa e a sua versão irmã espanhola, os ingleses adaptaram o texto para o “For He's a Jolly Good Fellow” (“Ele é um bom companheiro”, na versão portuguesa).

E assim, impoluto, continuou o castelo, agora com o nome de Malbrouck, sem qualquer baixa no seu historial. O mesmo aconteceu daí para a frente, de tal forma que o castro foi decaindo por falta de propósito. Quando finalmente, no segundo quartel do século XX, o castelo mereceu atenção por razões puramente culturais e começou a ser recuperado, foi inutilmente bombardeado e totalmente desfeito durante a segunda guerra mundial. Mais uma vez, nem um ferido.

A seguir à II Grande Guerra, o castelo foi recuperado pelas autoridades francesas e hoje é um belíssimo centro de exposições particularmente orientado para a banda desenhada. No dia que visitámos o Castelo de Malbrouck estava em exibição uma exposição sobre as mulheres da Resistência que era simplesmente soberba.

Responsabilizo os deuses pelo encadear de erros que nos deixam de esmagados pelo pasmo e pela surpresa. De uma curva que não se fez, um castelo sem propósito, uma guerra que não aconteceu, um nome mal pronunciado, uma música que celebra a morte de quem não morreu, outra guerra que errou no alvo… Agradeço aos deuses terem-me enganado e me colocado no encalço destes deliciosos erros que pontuam a existência do Castelo de Malbrouck.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sábado, 13 de maio de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 49: Javalis em Bruxelas: Uma Oportunidade para Explorar a Vida Selvagem

 


Corvos a brincar na neve, Luxemburgo.
Foto: F Cardigos

A notícia chegou-nos através da rede social de proximidade mais utilizada em Bruxelas. Era imperativa e estava acompanhada por uma fotografia de buracos na relva. Podia-se ler: “Encontrei estes buracos feitos por javalis no meu jardim. Já chegaram a Bruxelas!”

Entenda-se que os arredores de Bruxelas são conhecidos por terem uma vida selvagem interessante. Para além das inúmeras espécies de aves, as raposas são visitas habituais. Mais difícil é ver veados, mas, até eu, já por uma vez tive essa sorte.

Ao contrário dos demais vizinhos, que estavam preocupados em como defender a sua relva imaculada ou as tulipas e afins da ameaça dos suínos selvagens, eu preocupei-me em arquitetar uma estratégia para fotografar os ditos animais. Isso é que era!

Penso que, enquanto jovem, fui positivamente contaminado pelos programas televisivos de vida selvagem do Gerald Durrell. Nele, o autor e apresentador defendia que em cada canto do nosso planeta podíamos encontrar vida selvagem, desde que procurássemos. As palavras dele eram qualquer coisa como “o jovem naturalista apenas tem que estar atento aos sinais que o levarão à vida selvagem”. As palavras eram acompanhadas por imagens do deserto, onde o autor inesperadamente encontrava aranhas e escorpiões.

Talvez imbuído por esse espírito, alegram-me detalhes eventualmente secundários para a maioria. Por exemplo, no pico do inverno, “descobri” que os corvos adoram brincar com a neve que cai mesmo em frente do meu gabinete no Luxemburgo. Fiquei deliciado a fotografar e a filmar, distraindo-me irresponsavelmente do trabalho por alguns instantes.

Portanto, os javalis são o máximo e, um dia, hei-de conseguir fotografá-los. “Javalis em Bruxelas!” Tenho de conseguir. Para já, os javalis parecem ter recuado, visto que ninguém mais, incluindo eu, os viu.

Na conversa com colegas que entendem de comportamento animal terrestre, explicaram-me o que fazer e não fazer quando se encontra um javali. Disseram-me que os javalis ficam tão assustados quanto os humanos e, por definição, tentarão evitar o encontro. Exceptuam-se, explicaram-me, as fêmeas acompanhadas por crias. Estas, para protegerem a prole, apenas fugirão depois dos humanos e, portanto, visto serem animais possantes, será melhor ir andando…

Nisto, empolgados com a conversa, começámos a argumentar que o nível individual de adaptação à vida selvagem terrestre pode ser aferida pelo número de ataques que sofremos. Os meus colegas “mostraram” as feridas de guerra e eram imbatíveis em termos terrestres. Já no mar, as mazelas eram minhas, apesar das ameaças serem muito relativas… Começando pelas mordidelas de peixe-porco, passando pelas pequenas castanhetas em defesa dos ninhos e terminando pouco depois pelas picadas de águas-vivas, a verdade é que no mar não encontramos animais que nos queiram verdadeiramente mal. Gostava de ter histórias de lutas pela vida contra moreias, polvos gigantes e tubarões, mas, na realidade, foram muitas mais as que imaginei do que as que vivenciei no mar dos Açores.

Depois de animada conversa, chegamos à conclusão que, cada um no seu meio, tínhamos as cicatrizes suficientes para podermos afirmar que sabíamos viver a vida, mas, felizmente, nenhuma que nos tivesse feito temer por ela.

Por fim, começámos à procura de espécies que tínhamos em comum. Todos tinham sido arranhados por gatos, mas concluímos que os gatos não eram animais selvagens. Quase todos tinham sido picados por abelhas, mas estas não reuniam a unanimidade das vítimas e também geraram discussão quanto ao seu nível de “selvagem”. A única terrível espécie que a todos, sem excepção, tinha incomodado eram os… momento de silêncio em enorme expectativa… os mosquitos!



* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Reflexões sobre a conservação da natureza na Ilha do Corvo

 
Mero no Caneiro dos Meros.
Foto: F Cardigos

Deixo aqui algumas impressões pessoais sobre a natureza e a importância ambiental da ilha do Corvo. Sendo uma perspectiva vinda da minh’alma, é livremente acompanhada da emoção que, ao correr da pena, me saiu.

Locais secretos

Lembro-me da tristeza, da desilusão e do desalento que senti nesse ano como se fosse hoje. Esperava repetir a emoção de ver um cardume de magníficos lírios a regressar às águas menos profundas. Naquela época do ano, sempre no mesmo local e sempre à mesma hora, do azul infinito, diariamente apareciam como fantasmas. Depois de darem umas voltas de quem ali estivesse, voltavam a partir, mas agora na direção das baías abrigadas. Para os ver, era apenas necessário encher os olhos com um dos maiores espetáculos que o mundo já deu aos homens e mulheres de bem.

Nesse ano, esperava encontrar novamente este magnífico cardume de lírios, mas não encontrei. Depois compreendi que nos meses anteriores, sistematicamente, alguém havia usado armas de caça submarina para dizimar aquilo que, neste momento, poderia ser um dos grandes cartazes turísticos da ilha do Corvo. Sobre isto escrevi e publiquei então, sem grande consequência, diga-se (Ver, “A nova frota branca” na revista Mundo Submerso de Agosto de 2006).

Começo este artigo com uma história pouco edificante porque é importantíssimo ter a noção que a natureza tem de ser respeitada. São questões de simples moralidade, de bom senso e de responsabilidade. Não é preciso chegar às temáticas relacionadas com a intensificação das alterações climáticas globais para que o mundo natural mereça a nossa preocupação. Em todos os detalhes das nossas vidas, há sempre a atitude correta e a errada naquilo que diz respeito aos seres vivos que nos rodeiam.

A caça-submarina praticada com respeito pelas presas, pelo ambiente e pelos restantes seres humanos que também merecem usufruir do mesmo mar é um desporto lindo, exigente e arriscado e que tem a mesma dignidade que qualquer outra atividade extrativa sustentável. Pessoalmente, aborrece-me matar animais, mas compreendo que esta é uma sensibilidade que apenas a mim diz respeito. Aliás, se contasse os animais que matei “para os estudos”, como dizíamos no Corvo, devia ter um pouco de contenção no que estou a escrever. “Águas passadas”, posso-me tentar desculpar, mas elas correram…

A perda dos lírios serviu de aviso e ajuda a justificar que, ainda hoje, existam locais secretos na ilha do Corvo e um pouco por todo o arquipélago. Tanto em terra como no mar, o Corvo tem alguns sítios que, pela sua singularidade e sensibilidade, não devem ser partilhados.

Mergulhador deixa-se envolver por cardume de lírios.
Foto: F Cardigos

Por exemplo, há uma flor que, em todo o mudo selvagem, apenas foi vista na Caldeira do Faial (de onde desapareceu), em 16 locais da ilha das Flores e 2 da ilha do Corvo, segundo os cientistas. Trata-se da Veronica dabneyi. Repare-se que se um japonês, um australiano ou um esquimó quiser ver esta planta no seu meio natural terá de se deslocar até ao grupo Ocidental dos Açores. Para ver as joias da coroa real britânica, vá à Torre de Londres, mas, para ver a delicada verónica terá que voar até às Flores ou ao Corvo. Não tem outra hipótese e, este facto, dá uma ideia da preciosidade desta planta. Como ela, há mais umas quantas espécies nos Açores.

Nas Flores, na época certa do ano, eu sei encontrar facilmente a verónica. Já no Corvo, apenas poucas pessoas a sabem localizar e eu não sou uma delas. Esses zeladores têm a enorme responsabilidade de garantir que nada lhes acontece e que não partilham a posição com alguém que seja menos do que estritamente respeitador da natureza.

Para ser rigoroso, há na realidade um outro local em que é possível ver esta planta. Trata-se do Jardim Botânico do Faial, na Horta, onde a verónica foi cultivada e é mantida por redundância e segurança ambiental. No entanto, as plantas que crescem no jardim botânico não têm a mesma beleza que os exemplares selvagens. Porque será? Talvez não tenham o solo ideal, talvez não tenham a companhia das espécies certas ou, talvez, simplesmente não gostem da vedação em volta do jardim… Precisam de liberdade! Quem sabe…?

Veronica dabneyi na ilha das Flores.
Foto: F Cardigos

Reserva Voluntária do Caneiro dos Meros

Era dezembro avançado na Ilha do Corvo e estava tanto frio que acabava de chover granizo. Apesar da minha missão ser clara, ir para o mar e recolher imagens para serem usadas no Pavilhão dos Açores na Expo 98, nesse dia isso seria impossível. Senti um arrepio apenas por pensar em vestir o fato de mergulho ainda molhado do dia anterior. Sim, os últimos dias tinham corrido bem, podia de consciência tranquila descansar por uma vez.

Com um grito que tentei ser simpático, do alpendre de casa, convido um amigo pescador a entrar. Digo-lhe que o que vai ver é apenas para ele. Juras feitas, coloco no vídeo uma cassete e inicia-se aquilo que, tanto quanto tenho conhecimento, foi a primeira projeção de imagens do Caneiro dos Meros. Um após outro, os enormes meros aproximam-se da câmara, tentando um deles, o maior, morder o regulador de um dos mergulhadores.

Acabada a projeção, viro-me para o pescador e pergunto-lhe “e agora?”. Ele responde-me sem hesitação, “Agora?! Agora, tenho um problema. Como vou poder pescar aqueles animais depois de os ter visto vivos?”.

O trabalho feito de seguida pela saudosa Nauticorvo, pelo Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores (então DOP, hoje Okeanos) e por aquilo que viria a ser a Associação de Pescadores da Ilha do Corvo foi fundamental e meritório, mas, no meu coração, a Reserva Voluntária do Caneiro dos Meros nasceu no momento em que as imagens daqueles belos e imponentes meros nadando por entre os corais-negros e sobre a areia nos majestosos corredores de basalto entraram nas pupilas do meu amigo pescador. Ainda hoje, quando falo com este homem de pele curtida pelo mar, recordo aquele dia, passados mais de 20 anos…

Depois disso, o meu amigo pescador defendeu o respeito pelo Caneiro dos Meros, tendo aparecido mesmo em reportagens televisivas da época. Utilizou os argumentos que transcrevo de memória quando respondia à jornalista que o impelia para ali pescar, até porque era “um ano fraco de peixe”: “Ali?! Nem pensar!” respondeu com indignação e complementou, “Temos que defender aquele local para ter alguma coisa para mostrar a quem nos visita e para os nossos filhos.”. As palavras dele são melhores que as minhas e, portanto, nada acrescento.

Campanha SOS Cagarro

Historicamente, no Corvo respeitaram-se regras ambientais desde que aqui há seres humanos. O uso de quotas para a apanha de aves, o respeito pelas épocas de nidificação e o combate ativo à entrada de ratos na ilha são algumas das regras que foram implementadas pelos primeiros povoadores. Penso que a originalidade histórica e a importância efetiva de cada um destes aspetos ainda não foram estudadas, descritas e publicitadas como deve ser. Parece-me que há aqui uma oportunidade, mas deixo isso para os historiadores.

Depois há o caso mais emblemático, a Campanha SOS Cagarro. Sim, a Campanha SOS Cagarro começou na ilha do Corvo! No início dos anos 90 do século passado, um feliz conjunto de acontecimentos trouxeram para a ilha do Corvo pessoas que emprestaram a sensibilidade e o conhecimento necessários para que a iniciativa pudesse despontar.

Foi em São Miguel, pela mão dos Amigos dos Açores e de um dos seus membros mais ativos, o Professor Teófilo Braga, que, no final dos anos 80, se realizaram as primeiras ações de sensibilização ambiental. Com o apoio do Governo Regional, a ideia era que as escolas informassem os seus alunos sobre a complexidade e a delicadeza dos cagarros.

No entanto, aquilo que tem de original a Campanha SOS Cagarro é a componente de ação: diminuir a iluminação pública em sítios sensíveis e a organização de brigadas ambientais para a recolha de jovens cagarros caídos. Isso nasceu na ilha do Corvo. Como se pode ler na acta da reunião da Câmara Municipal do Corvo de 3 de outubro de 1991, o Sr. José Maria Mendonça apresentou e foi aceite uma proposta para a redução da iluminação pública durante o período de saída dos ninhos da pardela-de-patas-amarelas ou, como é conhecido nos Açores, o cagarro!

Com o apoio científico do DOP, o suporte financeiro da Comissão Europeia e a organização do Governo Regional, a campanha estendeu-se a todo o arquipélago e foi um sucesso quase imediato. Em toda a Região acabaram-se os cagarros atropelados e as caçadas. Sim, nos anos 90 ainda se caçavam cagarros. Tempos passados, felizmente!

Há uns parágrafos atrás mencionei a importância de pessoas que chegaram então ao Corvo e que foram fundamentais para que a Campanha SOS Cagarro acontecesse. Não sendo exaustivo, menciono o mais importante: o Doutor Luís Monteiro.

Tenho indiscritíveis saudades do meu amigo Luís. Talvez por isso seja um pouco enviesada a minha perspetiva, mas, pergunto-me quando haverá uma rua na ilha do Corvo com o seu nome? Ou qualquer outra homenagem pública? É que foi o Luís que inspirou a mudança e foi ele que lutou e obteve os financiamentos necessários para que a Campanha SOS Cagarro descolasse. Mas mais, foi o Luís que obteve os financiamentos para os projetos que vieram a permitir a descoberta da ilha por parte dos ornitólogos que esgotam a capacidade hoteleira da ilha durante os últimos meses de cada outono. Todos os que então estavam na ilha do Corvo se lembram como ele irradiava conhecimento e simpatia. Eu lembro-me! É certo que, para além de bom amigo, era meu colega no DOP e o seu trágico desaparecimento ainda me magoa cada vez que penso nele.

Na ilha, este legado é hoje transportado pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, pela Câmara Municipal do Corvo e, essencialmente, pelos corvinos. Em termos ambientais, é o expoente máximo de uma ilha que, com altos e baixos, soube desde cedo que a sua própria sobrevivência, ou pelo menos a sua felicidade, dependia muito deste ambiente que nos rodeia de uma forma tão fascinante e tão sensível.

Epílogo

Ao longo do tempo, os corvinos entenderam as suas limitações ambientais, económicas e sociais e, com sagacidade, transformaram-nas em singularidades culturais. Ou seja, “A Ilha da Sabedoria”, como lhe chamaram o Fernando Dacosta e o Jorge de Barros. Hoje, a preservação da natureza na Ilha do Corvo tem grande importância para a comunidade local e também para a salvaguarda da biodiversidade a nível mundial. Esta base ambiental sui generis associada ao engenho dos corvinos é a garantia de que o futuro é promissor. Basta apenas, todos os dias, transformá-lo em realidade!