quarta-feira, 10 de maio de 2023

Reflexões sobre a conservação da natureza na Ilha do Corvo

 
Mero no Caneiro dos Meros.
Foto: F Cardigos

Deixo aqui algumas impressões pessoais sobre a natureza e a importância ambiental da ilha do Corvo. Sendo uma perspectiva vinda da minh’alma, é livremente acompanhada da emoção que, ao correr da pena, me saiu.

Locais secretos

Lembro-me da tristeza, da desilusão e do desalento que senti nesse ano como se fosse hoje. Esperava repetir a emoção de ver um cardume de magníficos lírios a regressar às águas menos profundas. Naquela época do ano, sempre no mesmo local e sempre à mesma hora, do azul infinito, diariamente apareciam como fantasmas. Depois de darem umas voltas de quem ali estivesse, voltavam a partir, mas agora na direção das baías abrigadas. Para os ver, era apenas necessário encher os olhos com um dos maiores espetáculos que o mundo já deu aos homens e mulheres de bem.

Nesse ano, esperava encontrar novamente este magnífico cardume de lírios, mas não encontrei. Depois compreendi que nos meses anteriores, sistematicamente, alguém havia usado armas de caça submarina para dizimar aquilo que, neste momento, poderia ser um dos grandes cartazes turísticos da ilha do Corvo. Sobre isto escrevi e publiquei então, sem grande consequência, diga-se (Ver, “A nova frota branca” na revista Mundo Submerso de Agosto de 2006).

Começo este artigo com uma história pouco edificante porque é importantíssimo ter a noção que a natureza tem de ser respeitada. São questões de simples moralidade, de bom senso e de responsabilidade. Não é preciso chegar às temáticas relacionadas com a intensificação das alterações climáticas globais para que o mundo natural mereça a nossa preocupação. Em todos os detalhes das nossas vidas, há sempre a atitude correta e a errada naquilo que diz respeito aos seres vivos que nos rodeiam.

A caça-submarina praticada com respeito pelas presas, pelo ambiente e pelos restantes seres humanos que também merecem usufruir do mesmo mar é um desporto lindo, exigente e arriscado e que tem a mesma dignidade que qualquer outra atividade extrativa sustentável. Pessoalmente, aborrece-me matar animais, mas compreendo que esta é uma sensibilidade que apenas a mim diz respeito. Aliás, se contasse os animais que matei “para os estudos”, como dizíamos no Corvo, devia ter um pouco de contenção no que estou a escrever. “Águas passadas”, posso-me tentar desculpar, mas elas correram…

A perda dos lírios serviu de aviso e ajuda a justificar que, ainda hoje, existam locais secretos na ilha do Corvo e um pouco por todo o arquipélago. Tanto em terra como no mar, o Corvo tem alguns sítios que, pela sua singularidade e sensibilidade, não devem ser partilhados.

Mergulhador deixa-se envolver por cardume de lírios.
Foto: F Cardigos

Por exemplo, há uma flor que, em todo o mudo selvagem, apenas foi vista na Caldeira do Faial (de onde desapareceu), em 16 locais da ilha das Flores e 2 da ilha do Corvo, segundo os cientistas. Trata-se da Veronica dabneyi. Repare-se que se um japonês, um australiano ou um esquimó quiser ver esta planta no seu meio natural terá de se deslocar até ao grupo Ocidental dos Açores. Para ver as joias da coroa real britânica, vá à Torre de Londres, mas, para ver a delicada verónica terá que voar até às Flores ou ao Corvo. Não tem outra hipótese e, este facto, dá uma ideia da preciosidade desta planta. Como ela, há mais umas quantas espécies nos Açores.

Nas Flores, na época certa do ano, eu sei encontrar facilmente a verónica. Já no Corvo, apenas poucas pessoas a sabem localizar e eu não sou uma delas. Esses zeladores têm a enorme responsabilidade de garantir que nada lhes acontece e que não partilham a posição com alguém que seja menos do que estritamente respeitador da natureza.

Para ser rigoroso, há na realidade um outro local em que é possível ver esta planta. Trata-se do Jardim Botânico do Faial, na Horta, onde a verónica foi cultivada e é mantida por redundância e segurança ambiental. No entanto, as plantas que crescem no jardim botânico não têm a mesma beleza que os exemplares selvagens. Porque será? Talvez não tenham o solo ideal, talvez não tenham a companhia das espécies certas ou, talvez, simplesmente não gostem da vedação em volta do jardim… Precisam de liberdade! Quem sabe…?

Veronica dabneyi na ilha das Flores.
Foto: F Cardigos

Reserva Voluntária do Caneiro dos Meros

Era dezembro avançado na Ilha do Corvo e estava tanto frio que acabava de chover granizo. Apesar da minha missão ser clara, ir para o mar e recolher imagens para serem usadas no Pavilhão dos Açores na Expo 98, nesse dia isso seria impossível. Senti um arrepio apenas por pensar em vestir o fato de mergulho ainda molhado do dia anterior. Sim, os últimos dias tinham corrido bem, podia de consciência tranquila descansar por uma vez.

Com um grito que tentei ser simpático, do alpendre de casa, convido um amigo pescador a entrar. Digo-lhe que o que vai ver é apenas para ele. Juras feitas, coloco no vídeo uma cassete e inicia-se aquilo que, tanto quanto tenho conhecimento, foi a primeira projeção de imagens do Caneiro dos Meros. Um após outro, os enormes meros aproximam-se da câmara, tentando um deles, o maior, morder o regulador de um dos mergulhadores.

Acabada a projeção, viro-me para o pescador e pergunto-lhe “e agora?”. Ele responde-me sem hesitação, “Agora?! Agora, tenho um problema. Como vou poder pescar aqueles animais depois de os ter visto vivos?”.

O trabalho feito de seguida pela saudosa Nauticorvo, pelo Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores (então DOP, hoje Okeanos) e por aquilo que viria a ser a Associação de Pescadores da Ilha do Corvo foi fundamental e meritório, mas, no meu coração, a Reserva Voluntária do Caneiro dos Meros nasceu no momento em que as imagens daqueles belos e imponentes meros nadando por entre os corais-negros e sobre a areia nos majestosos corredores de basalto entraram nas pupilas do meu amigo pescador. Ainda hoje, quando falo com este homem de pele curtida pelo mar, recordo aquele dia, passados mais de 20 anos…

Depois disso, o meu amigo pescador defendeu o respeito pelo Caneiro dos Meros, tendo aparecido mesmo em reportagens televisivas da época. Utilizou os argumentos que transcrevo de memória quando respondia à jornalista que o impelia para ali pescar, até porque era “um ano fraco de peixe”: “Ali?! Nem pensar!” respondeu com indignação e complementou, “Temos que defender aquele local para ter alguma coisa para mostrar a quem nos visita e para os nossos filhos.”. As palavras dele são melhores que as minhas e, portanto, nada acrescento.

Campanha SOS Cagarro

Historicamente, no Corvo respeitaram-se regras ambientais desde que aqui há seres humanos. O uso de quotas para a apanha de aves, o respeito pelas épocas de nidificação e o combate ativo à entrada de ratos na ilha são algumas das regras que foram implementadas pelos primeiros povoadores. Penso que a originalidade histórica e a importância efetiva de cada um destes aspetos ainda não foram estudadas, descritas e publicitadas como deve ser. Parece-me que há aqui uma oportunidade, mas deixo isso para os historiadores.

Depois há o caso mais emblemático, a Campanha SOS Cagarro. Sim, a Campanha SOS Cagarro começou na ilha do Corvo! No início dos anos 90 do século passado, um feliz conjunto de acontecimentos trouxeram para a ilha do Corvo pessoas que emprestaram a sensibilidade e o conhecimento necessários para que a iniciativa pudesse despontar.

Foi em São Miguel, pela mão dos Amigos dos Açores e de um dos seus membros mais ativos, o Professor Teófilo Braga, que, no final dos anos 80, se realizaram as primeiras ações de sensibilização ambiental. Com o apoio do Governo Regional, a ideia era que as escolas informassem os seus alunos sobre a complexidade e a delicadeza dos cagarros.

No entanto, aquilo que tem de original a Campanha SOS Cagarro é a componente de ação: diminuir a iluminação pública em sítios sensíveis e a organização de brigadas ambientais para a recolha de jovens cagarros caídos. Isso nasceu na ilha do Corvo. Como se pode ler na acta da reunião da Câmara Municipal do Corvo de 3 de outubro de 1991, o Sr. José Maria Mendonça apresentou e foi aceite uma proposta para a redução da iluminação pública durante o período de saída dos ninhos da pardela-de-patas-amarelas ou, como é conhecido nos Açores, o cagarro!

Com o apoio científico do DOP, o suporte financeiro da Comissão Europeia e a organização do Governo Regional, a campanha estendeu-se a todo o arquipélago e foi um sucesso quase imediato. Em toda a Região acabaram-se os cagarros atropelados e as caçadas. Sim, nos anos 90 ainda se caçavam cagarros. Tempos passados, felizmente!

Há uns parágrafos atrás mencionei a importância de pessoas que chegaram então ao Corvo e que foram fundamentais para que a Campanha SOS Cagarro acontecesse. Não sendo exaustivo, menciono o mais importante: o Doutor Luís Monteiro.

Tenho indiscritíveis saudades do meu amigo Luís. Talvez por isso seja um pouco enviesada a minha perspetiva, mas, pergunto-me quando haverá uma rua na ilha do Corvo com o seu nome? Ou qualquer outra homenagem pública? É que foi o Luís que inspirou a mudança e foi ele que lutou e obteve os financiamentos necessários para que a Campanha SOS Cagarro descolasse. Mas mais, foi o Luís que obteve os financiamentos para os projetos que vieram a permitir a descoberta da ilha por parte dos ornitólogos que esgotam a capacidade hoteleira da ilha durante os últimos meses de cada outono. Todos os que então estavam na ilha do Corvo se lembram como ele irradiava conhecimento e simpatia. Eu lembro-me! É certo que, para além de bom amigo, era meu colega no DOP e o seu trágico desaparecimento ainda me magoa cada vez que penso nele.

Na ilha, este legado é hoje transportado pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, pela Câmara Municipal do Corvo e, essencialmente, pelos corvinos. Em termos ambientais, é o expoente máximo de uma ilha que, com altos e baixos, soube desde cedo que a sua própria sobrevivência, ou pelo menos a sua felicidade, dependia muito deste ambiente que nos rodeia de uma forma tão fascinante e tão sensível.

Epílogo

Ao longo do tempo, os corvinos entenderam as suas limitações ambientais, económicas e sociais e, com sagacidade, transformaram-nas em singularidades culturais. Ou seja, “A Ilha da Sabedoria”, como lhe chamaram o Fernando Dacosta e o Jorge de Barros. Hoje, a preservação da natureza na Ilha do Corvo tem grande importância para a comunidade local e também para a salvaguarda da biodiversidade a nível mundial. Esta base ambiental sui generis associada ao engenho dos corvinos é a garantia de que o futuro é promissor. Basta apenas, todos os dias, transformá-lo em realidade!


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