Deixo aqui algumas
impressões pessoais sobre a natureza e a importância ambiental da ilha do
Corvo. Sendo uma perspectiva vinda da minh’alma, é livremente acompanhada da
emoção que, ao correr da pena, me saiu.
Locais secretos
Lembro-me da tristeza, da
desilusão e do desalento que senti nesse ano como se fosse hoje. Esperava
repetir a emoção de ver um cardume de magníficos lírios a regressar às águas
menos profundas. Naquela época do ano, sempre no mesmo local e sempre à mesma
hora, do azul infinito, diariamente apareciam como fantasmas. Depois de darem
umas voltas de quem ali estivesse, voltavam a partir, mas agora na direção das
baías abrigadas. Para os ver, era apenas necessário encher os olhos com um dos
maiores espetáculos que o mundo já deu aos homens e mulheres de bem.
Nesse ano, esperava
encontrar novamente este magnífico cardume de lírios, mas não encontrei. Depois
compreendi que nos meses anteriores, sistematicamente, alguém havia usado armas
de caça submarina para dizimar aquilo que, neste momento, poderia ser um dos
grandes cartazes turísticos da ilha do Corvo. Sobre isto escrevi e publiquei
então, sem grande consequência, diga-se (Ver, “A nova frota branca” na revista
Mundo Submerso de Agosto de 2006).
Começo este artigo com uma
história pouco edificante porque é importantíssimo ter a noção que a natureza
tem de ser respeitada. São questões de simples moralidade, de bom senso e de
responsabilidade. Não é preciso chegar às temáticas relacionadas com a
intensificação das alterações climáticas globais para que o mundo natural
mereça a nossa preocupação. Em todos os detalhes das nossas vidas, há sempre a
atitude correta e a errada naquilo que diz respeito aos seres vivos que nos
rodeiam.
A caça-submarina
praticada com respeito pelas presas, pelo ambiente e pelos restantes seres
humanos que também merecem usufruir do mesmo mar é um desporto lindo, exigente
e arriscado e que tem a mesma dignidade que qualquer outra atividade extrativa
sustentável. Pessoalmente, aborrece-me matar animais, mas compreendo que esta é
uma sensibilidade que apenas a mim diz respeito. Aliás, se contasse os animais
que matei “para os estudos”, como dizíamos no Corvo, devia ter um pouco de
contenção no que estou a escrever. “Águas passadas”, posso-me tentar desculpar,
mas elas correram…
A perda dos lírios serviu
de aviso e ajuda a justificar que, ainda hoje, existam locais secretos na ilha
do Corvo e um pouco por todo o arquipélago. Tanto em terra como no mar, o Corvo
tem alguns sítios que, pela sua singularidade e sensibilidade, não devem ser
partilhados.
Foto: F Cardigos
Nas Flores, na época
certa do ano, eu sei encontrar facilmente a verónica. Já no Corvo, apenas poucas
pessoas a sabem localizar e eu não sou uma delas. Esses zeladores têm a enorme
responsabilidade de garantir que nada lhes acontece e que não partilham a
posição com alguém que seja menos do que estritamente respeitador da natureza.
Para ser rigoroso, há na
realidade um outro local em que é possível ver esta planta. Trata-se do Jardim
Botânico do Faial, na Horta, onde a verónica foi cultivada e é mantida por redundância
e segurança ambiental. No entanto, as plantas que crescem no jardim botânico
não têm a mesma beleza que os exemplares selvagens. Porque será? Talvez não
tenham o solo ideal, talvez não tenham a companhia das espécies certas ou,
talvez, simplesmente não gostem da vedação em volta do jardim… Precisam de
liberdade! Quem sabe…?
Foto: F Cardigos
Reserva Voluntária do Caneiro dos Meros
Era dezembro avançado na
Ilha do Corvo e estava tanto frio que acabava de chover granizo. Apesar da minha
missão ser clara, ir para o mar e recolher imagens para serem usadas no
Pavilhão dos Açores na Expo 98, nesse dia isso seria impossível. Senti um
arrepio apenas por pensar em vestir o fato de mergulho ainda molhado do dia
anterior. Sim, os últimos dias tinham corrido bem, podia de consciência
tranquila descansar por uma vez.
Com um grito que tentei
ser simpático, do alpendre de casa, convido um amigo pescador a entrar.
Digo-lhe que o que vai ver é apenas para ele. Juras feitas, coloco no vídeo uma
cassete e inicia-se aquilo que, tanto quanto tenho conhecimento, foi a primeira
projeção de imagens do Caneiro dos Meros. Um após outro, os enormes meros
aproximam-se da câmara, tentando um deles, o maior, morder o regulador de um
dos mergulhadores.
Acabada a projeção,
viro-me para o pescador e pergunto-lhe “e agora?”. Ele responde-me sem
hesitação, “Agora?! Agora, tenho um problema. Como vou poder pescar aqueles
animais depois de os ter visto vivos?”.
O trabalho feito de
seguida pela saudosa Nauticorvo, pelo Departamento de Oceanografia e Pescas da
Universidade dos Açores (então DOP, hoje Okeanos) e por aquilo que viria a ser
a Associação de Pescadores da Ilha do Corvo foi fundamental e meritório, mas,
no meu coração, a Reserva Voluntária do Caneiro dos Meros nasceu no momento em
que as imagens daqueles belos e imponentes meros nadando por entre os
corais-negros e sobre a areia nos majestosos corredores de basalto entraram nas
pupilas do meu amigo pescador. Ainda hoje, quando falo com este homem de pele
curtida pelo mar, recordo aquele dia, passados mais de 20 anos…
Depois disso, o meu amigo
pescador defendeu o respeito pelo Caneiro dos Meros, tendo aparecido mesmo em reportagens
televisivas da época. Utilizou os argumentos que transcrevo de memória quando
respondia à jornalista que o impelia para ali pescar, até porque era “um ano
fraco de peixe”: “Ali?! Nem pensar!” respondeu com indignação e complementou,
“Temos que defender aquele local para ter alguma coisa para mostrar a quem nos
visita e para os nossos filhos.”. As palavras dele são melhores que as minhas
e, portanto, nada acrescento.
Campanha SOS Cagarro
Historicamente, no Corvo
respeitaram-se regras ambientais desde que aqui há seres humanos. O uso de
quotas para a apanha de aves, o respeito pelas épocas de nidificação e o
combate ativo à entrada de ratos na ilha são algumas das regras que foram
implementadas pelos primeiros povoadores. Penso que a originalidade histórica e
a importância efetiva de cada um destes aspetos ainda não foram estudadas, descritas
e publicitadas como deve ser. Parece-me que há aqui uma oportunidade, mas deixo
isso para os historiadores.
Depois há o caso mais emblemático,
a Campanha SOS Cagarro. Sim, a Campanha SOS Cagarro começou na ilha do Corvo! No
início dos anos 90 do século passado, um feliz conjunto de acontecimentos
trouxeram para a ilha do Corvo pessoas que emprestaram a sensibilidade e o
conhecimento necessários para que a iniciativa pudesse despontar.
Foi em São Miguel, pela
mão dos Amigos dos Açores e de um dos seus membros mais ativos, o Professor
Teófilo Braga, que, no final dos anos 80, se realizaram as primeiras ações de
sensibilização ambiental. Com o apoio do Governo Regional, a ideia era que as
escolas informassem os seus alunos sobre a complexidade e a delicadeza dos
cagarros.
No entanto, aquilo que
tem de original a Campanha SOS Cagarro é a componente de ação: diminuir a
iluminação pública em sítios sensíveis e a organização de brigadas ambientais
para a recolha de jovens cagarros caídos. Isso nasceu na ilha do Corvo. Como se
pode ler na acta da reunião da Câmara Municipal do Corvo de 3 de outubro de
1991, o Sr. José Maria Mendonça apresentou e foi aceite uma proposta para a
redução da iluminação pública durante o período de saída dos ninhos da
pardela-de-patas-amarelas ou, como é conhecido nos Açores, o cagarro!
Com o apoio científico do
DOP, o suporte financeiro da Comissão Europeia e a organização do Governo
Regional, a campanha estendeu-se a todo o arquipélago e foi um sucesso quase
imediato. Em toda a Região acabaram-se os cagarros atropelados e as caçadas.
Sim, nos anos 90 ainda se caçavam cagarros. Tempos passados, felizmente!
Há uns parágrafos atrás
mencionei a importância de pessoas que chegaram então ao Corvo e que foram
fundamentais para que a Campanha SOS Cagarro acontecesse. Não sendo exaustivo,
menciono o mais importante: o Doutor Luís Monteiro.
Tenho indiscritíveis saudades
do meu amigo Luís. Talvez por isso seja um pouco enviesada a minha perspetiva,
mas, pergunto-me quando haverá uma rua na ilha do Corvo com o seu nome? Ou
qualquer outra homenagem pública? É que foi o Luís que inspirou a mudança e foi
ele que lutou e obteve os financiamentos necessários para que a Campanha SOS
Cagarro descolasse. Mas mais, foi o Luís que obteve os financiamentos para os
projetos que vieram a permitir a descoberta da ilha por parte dos ornitólogos
que esgotam a capacidade hoteleira da ilha durante os últimos meses de cada
outono. Todos os que então estavam na ilha do Corvo se lembram como ele
irradiava conhecimento e simpatia. Eu lembro-me! É certo que, para além de bom
amigo, era meu colega no DOP e o seu trágico desaparecimento ainda me magoa
cada vez que penso nele.
Na ilha, este legado é
hoje transportado pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, pela Câmara
Municipal do Corvo e, essencialmente, pelos corvinos. Em termos ambientais, é o
expoente máximo de uma ilha que, com altos e baixos, soube desde cedo que a sua
própria sobrevivência, ou pelo menos a sua felicidade, dependia muito deste
ambiente que nos rodeia de uma forma tão fascinante e tão sensível.
Epílogo
Ao longo do tempo, os
corvinos entenderam as suas limitações ambientais, económicas e sociais e, com
sagacidade, transformaram-nas em singularidades culturais. Ou seja, “A Ilha da
Sabedoria”, como lhe chamaram o Fernando Dacosta e o Jorge de Barros. Hoje, a
preservação da natureza na Ilha do Corvo tem grande importância para a
comunidade local e também para a salvaguarda da biodiversidade a nível mundial.
Esta base ambiental sui generis associada ao engenho dos corvinos é a garantia
de que o futuro é promissor. Basta apenas, todos os dias, transformá-lo em
realidade!
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