A notícia chegou-nos através da rede social de proximidade
mais utilizada em Bruxelas. Era imperativa e estava acompanhada por uma
fotografia de buracos na relva. Podia-se ler: “Encontrei estes buracos feitos
por javalis no meu jardim. Já chegaram a Bruxelas!”
Entenda-se que os arredores de Bruxelas são conhecidos por
terem uma vida selvagem interessante. Para além das inúmeras espécies de aves,
as raposas são visitas habituais. Mais difícil é ver veados, mas, até eu, já
por uma vez tive essa sorte.
Ao contrário dos demais vizinhos, que estavam preocupados em
como defender a sua relva imaculada ou as tulipas e afins da ameaça dos suínos
selvagens, eu preocupei-me em arquitetar uma estratégia para fotografar os
ditos animais. Isso é que era!
Penso que, enquanto jovem, fui positivamente contaminado
pelos programas televisivos de vida selvagem do Gerald Durrell. Nele, o autor e
apresentador defendia que em cada canto do nosso planeta podíamos encontrar
vida selvagem, desde que procurássemos. As palavras dele eram qualquer coisa
como “o jovem naturalista apenas tem que estar atento aos sinais que o levarão à
vida selvagem”. As palavras eram acompanhadas por imagens do deserto, onde o
autor inesperadamente encontrava aranhas e escorpiões.
Talvez imbuído por esse espírito, alegram-me detalhes
eventualmente secundários para a maioria. Por exemplo, no pico do inverno,
“descobri” que os corvos adoram brincar com a neve que cai mesmo em frente do
meu gabinete no Luxemburgo. Fiquei deliciado a fotografar e a filmar,
distraindo-me irresponsavelmente do trabalho por alguns instantes.
Portanto, os javalis são o máximo e, um dia, hei-de
conseguir fotografá-los. “Javalis em Bruxelas!” Tenho de conseguir. Para já, os
javalis parecem ter recuado, visto que ninguém mais, incluindo eu, os viu.
Na conversa com colegas que entendem de comportamento animal
terrestre, explicaram-me o que fazer e não fazer quando se encontra um javali.
Disseram-me que os javalis ficam tão assustados quanto os humanos e, por
definição, tentarão evitar o encontro. Exceptuam-se, explicaram-me, as fêmeas
acompanhadas por crias. Estas, para protegerem a prole, apenas fugirão depois
dos humanos e, portanto, visto serem animais possantes, será melhor ir andando…
Nisto, empolgados com a conversa, começámos a argumentar que
o nível individual de adaptação à vida selvagem terrestre pode ser aferida pelo
número de ataques que sofremos. Os meus colegas “mostraram” as feridas de
guerra e eram imbatíveis em termos terrestres. Já no mar, as mazelas eram
minhas, apesar das ameaças serem muito relativas… Começando pelas mordidelas de
peixe-porco, passando pelas pequenas castanhetas em defesa dos ninhos e
terminando pouco depois pelas picadas de águas-vivas, a verdade é que no mar
não encontramos animais que nos queiram verdadeiramente mal. Gostava de ter
histórias de lutas pela vida contra moreias, polvos gigantes e tubarões, mas, na
realidade, foram muitas mais as que imaginei do que as que vivenciei no mar dos
Açores.
Depois de animada conversa, chegamos à conclusão que, cada
um no seu meio, tínhamos as cicatrizes suficientes para podermos afirmar que
sabíamos viver a vida, mas, felizmente, nenhuma que nos tivesse feito temer por
ela.
Por fim, começámos à procura de espécies que tínhamos em comum. Todos tinham sido arranhados por gatos, mas concluímos que os gatos não eram animais selvagens. Quase todos tinham sido picados por abelhas, mas estas não reuniam a unanimidade das vítimas e também geraram discussão quanto ao seu nível de “selvagem”. A única terrível espécie que a todos, sem excepção, tinha incomodado eram os… momento de silêncio em enorme expectativa… os mosquitos!
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