sábado, 13 de maio de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 49: Javalis em Bruxelas: Uma Oportunidade para Explorar a Vida Selvagem

 


Corvos a brincar na neve, Luxemburgo.
Foto: F Cardigos

A notícia chegou-nos através da rede social de proximidade mais utilizada em Bruxelas. Era imperativa e estava acompanhada por uma fotografia de buracos na relva. Podia-se ler: “Encontrei estes buracos feitos por javalis no meu jardim. Já chegaram a Bruxelas!”

Entenda-se que os arredores de Bruxelas são conhecidos por terem uma vida selvagem interessante. Para além das inúmeras espécies de aves, as raposas são visitas habituais. Mais difícil é ver veados, mas, até eu, já por uma vez tive essa sorte.

Ao contrário dos demais vizinhos, que estavam preocupados em como defender a sua relva imaculada ou as tulipas e afins da ameaça dos suínos selvagens, eu preocupei-me em arquitetar uma estratégia para fotografar os ditos animais. Isso é que era!

Penso que, enquanto jovem, fui positivamente contaminado pelos programas televisivos de vida selvagem do Gerald Durrell. Nele, o autor e apresentador defendia que em cada canto do nosso planeta podíamos encontrar vida selvagem, desde que procurássemos. As palavras dele eram qualquer coisa como “o jovem naturalista apenas tem que estar atento aos sinais que o levarão à vida selvagem”. As palavras eram acompanhadas por imagens do deserto, onde o autor inesperadamente encontrava aranhas e escorpiões.

Talvez imbuído por esse espírito, alegram-me detalhes eventualmente secundários para a maioria. Por exemplo, no pico do inverno, “descobri” que os corvos adoram brincar com a neve que cai mesmo em frente do meu gabinete no Luxemburgo. Fiquei deliciado a fotografar e a filmar, distraindo-me irresponsavelmente do trabalho por alguns instantes.

Portanto, os javalis são o máximo e, um dia, hei-de conseguir fotografá-los. “Javalis em Bruxelas!” Tenho de conseguir. Para já, os javalis parecem ter recuado, visto que ninguém mais, incluindo eu, os viu.

Na conversa com colegas que entendem de comportamento animal terrestre, explicaram-me o que fazer e não fazer quando se encontra um javali. Disseram-me que os javalis ficam tão assustados quanto os humanos e, por definição, tentarão evitar o encontro. Exceptuam-se, explicaram-me, as fêmeas acompanhadas por crias. Estas, para protegerem a prole, apenas fugirão depois dos humanos e, portanto, visto serem animais possantes, será melhor ir andando…

Nisto, empolgados com a conversa, começámos a argumentar que o nível individual de adaptação à vida selvagem terrestre pode ser aferida pelo número de ataques que sofremos. Os meus colegas “mostraram” as feridas de guerra e eram imbatíveis em termos terrestres. Já no mar, as mazelas eram minhas, apesar das ameaças serem muito relativas… Começando pelas mordidelas de peixe-porco, passando pelas pequenas castanhetas em defesa dos ninhos e terminando pouco depois pelas picadas de águas-vivas, a verdade é que no mar não encontramos animais que nos queiram verdadeiramente mal. Gostava de ter histórias de lutas pela vida contra moreias, polvos gigantes e tubarões, mas, na realidade, foram muitas mais as que imaginei do que as que vivenciei no mar dos Açores.

Depois de animada conversa, chegamos à conclusão que, cada um no seu meio, tínhamos as cicatrizes suficientes para podermos afirmar que sabíamos viver a vida, mas, felizmente, nenhuma que nos tivesse feito temer por ela.

Por fim, começámos à procura de espécies que tínhamos em comum. Todos tinham sido arranhados por gatos, mas concluímos que os gatos não eram animais selvagens. Quase todos tinham sido picados por abelhas, mas estas não reuniam a unanimidade das vítimas e também geraram discussão quanto ao seu nível de “selvagem”. A única terrível espécie que a todos, sem excepção, tinha incomodado eram os… momento de silêncio em enorme expectativa… os mosquitos!



* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

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