Foto: F Cardigos
Os erros continuam a
encantar-me. Atenção, eu não estou a afirmar que gosto de me enganar ou que
outros se enganem. Nada disso. Simplesmente, depois do erro feito, eu aprecio
realmente tentar entender a sua génese, rir-me da sua imprevisibilidade,
deleitar-me com as suas inesperadas consequências positivas, se existirem claro
está, e, se nada de mais relevante houver, tentar entender como se podem evitar
futuras situações equivalentes.
Sou um aficionado do
planeamento e profissionalmente totalmente dependente do cumprimento de
objetivos. Por isso, na realidade, tenho pavor aos erros antes de eles
acontecerem. Algo que, de forma inesperada, se intrometa entre o percurso
definido e a conclusão da tarefa pode implicar falhar aquela meta que ajudará a
pagar as contas ao final do mês. No entanto, vezes demais, tenho notado que muitos
erros são “velhacos”, tal como o “Caracol” do cancioneiro açoriano.
Pausa no artigo e no seu
fluxo racional para informar que quem não entender a referência anterior precisa
de um refrescante curso de cultura popular açoriana. De qualquer forma, todos
podem, devem e têm de escutar a versão do “Caracol” pelo O Experimentar Não
M’Incomoda, cantado por Miguel Machete, com arranjos e criação de Pedro Lucas e
inspirado n’ “O Cantar Na M'Incomoda” de Carlos Medeiros. Fim da pausa no
artigo e reinício do seu fluxo razoavelmente racional.
Para mim, muitos erros
são velhacos porque, numa torção inesperada da realidade, perdem a sua
componente penalizadora e se transformam em benignas e enganadoras paródias. Quais
trapaceiros, ludibriam-nos, mas dão-nos um sorriso ao mesmo tempo.
E com tudo isto ainda não
chegamos ao Castelo de Malbrouck. E não chegámos até porque nem era suposto lá termos
chegado! A uma última curva de entrar na cidade de Schengen, o condutor não
virou à direita, continuou em frente corrompendo o espaço-tempo. Daí para a
frente, o inesperado ir-se-ia suceder com uma cadência que desafia a
normalidade.
Tentando encontrar no meu
cérebro uma alternativa para o erro (sim, admito, eu era o condutor), uma placa
brilhou no meio do meu campo visual: “Château de Malbrouck”. Ao meu lado,
talvez tentando salvar-me do meu erro, a Sílvia diz-me: “Dizem que o Castelo de
Malbrouck tem muito interesse.”
Pensar depressa: Estamos entre
três países, Alemanha, Luxemburgo e França. Dois desses países andaram às
turras durante séculos. Um castelo construído nesta zona tem certamente mil
histórias para contar. “Abandonemos Schengen, Malbrouck é o nosso destino. Sempre
foi! Boa?” “Sim, sim.”, responde generosamente a Sílvia.
O Castelo de Malbrouck
nem sempre teve esse nome. Construído no século XV com o nome de Meinsberg,
tinha por fim dar estatuto ao aristocrata que o mandou construir, dissuadir quaisquer
intenções de tomada da área subjacente e resistir a investidas exteriores em
caso de necessidade. De tal forma bem-sucedido, o castelo jamais teve uso
beligerante até que se deram os eventos que conduziram à mudança de nome.
O nome “Malbrouck”, o
castelo herdou-o de um importantíssimo general inglês que jamais se chamou
Malbrouck, mas sim Malbrough. Para se ter uma ideia da importância de
Malbrough, talvez baste dizer que o famoso Duque de Wellington se referiu a
Malbrough como o melhor. Simplesmente, os francófonos não são muito dotados
para as línguas (dito pelos próprios) e Malbrough passou a Malbrouck. De certa
forma até é bom porque o que ali sucedeu não é muito digno.
À frente de uma coligação
internacional em 1705, Malbrough tentava invadir a França. Enquanto aguardava
por reforços, fez base no castelo Meinsberg e estacionou o seu exército de 100
mil homens ali à volta.
O exército que deveria
resistir à investida era comandado pelo marechal Villars e tinha apenas 50 mil
homens. No entanto, entre o respeito pelo marechal Villars e o medo, Malbrough
preferiu esperar por reforços. Esperou tempo demais e, em vez de ter reforços,
viu o seu próprio exército começar a desertar. Constatando que estava enfraquecido,
Malbrough acabou por se retirar durante a escuridão de uma das noites seguintes.
Imaginem a surpresa do
marechal Villars quando numa manhã ao levantar-se descobriu que tinha ganho uma
batalha contra um exército muito mais forte que o seu e sem sequer ter um único
ferido. Deve ter sido um dia bem feliz!
A História é madrasta e
Malbrough, esquecido de todas as suas vitórias e glórias, é hoje apenas
lembrado pelo castelo de onde fugiu e pela música “Malbrough s'en va-t-en
guerre” que celebra a sua morte numa batalha em 1709 onde nem sequer morreu… Talvez
para tentar fazer esquecer a letra trocista francesa e a sua versão irmã espanhola,
os ingleses adaptaram o texto para o “For He's a Jolly Good Fellow” (“Ele é um
bom companheiro”, na versão portuguesa).
E assim, impoluto,
continuou o castelo, agora com o nome de Malbrouck, sem qualquer baixa no seu
historial. O mesmo aconteceu daí para a frente, de tal forma que o castro foi
decaindo por falta de propósito. Quando finalmente, no segundo quartel do
século XX, o castelo mereceu atenção por razões puramente culturais e começou a
ser recuperado, foi inutilmente bombardeado e totalmente desfeito durante a
segunda guerra mundial. Mais uma vez, nem um ferido.
A seguir à II Grande
Guerra, o castelo foi recuperado pelas autoridades francesas e hoje é um
belíssimo centro de exposições particularmente orientado para a banda
desenhada. No dia que visitámos o Castelo de Malbrouck estava em exibição uma
exposição sobre as mulheres da Resistência que era simplesmente soberba.
Responsabilizo os deuses
pelo encadear de erros que nos deixam de esmagados pelo pasmo e pela surpresa.
De uma curva que não se fez, um castelo sem propósito, uma guerra que não
aconteceu, um nome mal pronunciado, uma música que celebra a morte de quem não
morreu, outra guerra que errou no alvo… Agradeço aos deuses terem-me enganado e
me colocado no encalço destes deliciosos erros que pontuam a existência do
Castelo de Malbrouck.
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