sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 59: Divagações sobre a natureza humana

Tudo começou quando li que os seres humanos são das poucas espécies em que os elementos do género feminino vivem para além do período fértil. Ou seja, a menopausa não acontece vulgarmente no mundo natural. “Interessante… Qual será a razão desta singularidade?”, perguntei-me…

Um dos artigos defendia que no caso das orcas, uma das outras espécies que vive para lá do período fértil, essa sobrevivência permite salvaguardar o património genético. Dizia-se no artigo que essas fêmeas mais idosas e em período pós-fértil defendem os seus filhos de uma forma particularmente feroz. Curiosamente, segundo a autora, as orcas defendem os filhos, mas não demonstram o mesmo interesse pelas filhas. Aparentemente, isso resulta do facto de os machos terem a capacidade de acasalar rapidamente com muitas parceiras diferentes e o contrário não se aplicar. Noutro artigo, um autor, defendia que as orcas deixam de se reproduzir porque, jamais abandonando a prole, acumulam demasiados filhos para se poderem reproduzir continuamente. Ainda outro cientista referia que as orcas mais idosas perdem a competitividade reprodutiva relativamente às fêmeas mais jovens. Atenção, estes trabalhos aplicam-se exclusivamente às orcas e não a qualquer outra das espécies que vive para além do período fértil.

Depois, de forma independente, li que os seres humanos têm uma diferença entre gestações inferior à maioria dos restantes primatas. Ou seja, em média, uma mulher tem a capacidade natural de ter um filho a cada três anos e isso é cerca de metade dos nossos primos genéticos.

Por que razão têm os restantes primatas de passar tanto tempo entre gerações? Por exemplo, uma mãe chimpanzé que deixe o seu filhote entregue à família estará a reduzir a sua capacidade de sucesso. O filhote não aprenderá ao mesmo ritmo e terá menores probabilidades de crescer saudável. Posto isto, os chimpanzés têm um período natural entre gestações que chega aos cinco anos. A mãe chimpanzé tem de se ocupar da cria a tempo inteiro e durante muito tempo…

Nos humanos não é assim. A vida social intensa, próxima e solidária permitiu que a confiança na família alargada se tornasse numa ferramenta evolutiva. Desde há centenas de milhares de anos que os hominídeos podem deixar os seus filhos bem entregues à família próxima.

Estarão estes dois factos relacionados? Será que a longevidade após o términus do período fértil nos humanos está relacionada com a capacidade de nos reproduzirmos com uma maior cadência? Uma mulher que pode confiar no apoio da família ficará mais disponível para se voltar a reproduzir. O uso da família alargada não reprodutiva, permite uma educação infantil também alicerçada na experiência dos mais idosos. Terá sido esta combinação entre maior cadência reprodutiva e o maior contacto com os mais experientes a vantagem adaptativa que nos distanciou dos primatas não-humanos?

Será que o ápex da evolução no planeta Terra é precisamente esta faculdade de incluir os mais idosos de forma dedicada no tecido social complexo que se verifica nos humanos? Se assim for, deveremos olhar para os outros animais que terminam prematuramente o período fértil com atenção e respeito acrescido.

Por último. Hoje, vemos as famílias modernas cada vez mais distanciadas dos idosos, por vezes mesmo vetando-os ao abandono. Pelo explicado atrás, parece-me claro que é, no mínimo, uma atitude insensata e, até por razões evolutivas como vimos atrás, inumana.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 58: “La Grande Confrontation”

Abaixo menciono alguns países e, porque me parece útil, à frente de cada um deles coloco o valor de índice de democracia correspondente, segundo uma Unidade especializada do Grupo The Economist. A escala vai de 1 (mínimo) a 10 (máximo).

Num artigo anterior, mencionei um livro da autoria de Raphael Glucksmann recentemente publicado. O eurodeputado, jornalista e ativista Raphael Glucksmann vale por si mesmo, mas é impossível não referir que ele é filho de um dos mais relevantes pensadores da segunda metade do século XX, André Glucksmann.  

Volto ao livro de Raphael para escalpelizar um pouco mais o seu conteúdo. “La Grande Confrontation” trata da invasão russa (2,28) da Ucrânia (5,42) e como, na perspetiva do autor, isso resultou em parte de corrupção, de laxismo e da desatenção dos Estados da União Europeia. Considero este um livro obrigatório para quem se preocupa com a democracia, embora me pareça não estar ainda disponível em português (apenas no original, em francês).

Ainda mais que a extensa justificação para o estado das coisas, interessou-me a parte final, em que o autor aponta caminhos para possíveis soluções. Um dos pontos cruciais que Glucksmann defende é a impossibilidade de a democracia sobreviver à desatenção. Há que criar pressão e motivação a todo o momento porque os perigos exteriores à democracia existem e existirão sempre. Nunca baixar a guarda! Sobreviverão as democracias que estiverem dispostas a se defender. Quem o escreve é também coordenador da Comissão Especial sobre Ingerência Externa do Parlamento Europeu. E, acrescento agora eu, mesmo com ações de defesa da democracia, o sucesso não é garantido. Que o digam os cidadãos da Região Administrativa Especial de Hong Kong (5,28) e da Bielorrússia (1,99), esmagados por sistemas antidemocráticos.

Um dos pontos defendidos por Glucksmann é a necessidade de privilegiar as relações económicas com os países amigos. No fundo, explica ele de forma exemplar, há apenas que garantir que as ações estabelecidas a nível diplomático têm eco nas relações comerciais. Justificando pelo absurdo, que sensatez tem repudiar os sistemas autoritários russo e chinês (1,94) e, ao mesmo tempo, privilegiar a dependência energética com a Rússia e dar a gestão dos nossos portos marítimos à China. Não faz qualquer sentido. E, claro, as relações comerciais da União Europeia com a Noruega (9,81) e com o Canadá (8,88), democracias livres, não podem ser postas no mesmo plano que as nossas relações com o Irão (1,96) ou a Coreia do Norte (1,08). Por muito que a Organização Mundial do Comércio o queira impor, não pode ser igual.

O outro ponto fundamental defendido pelo autor é a ecologia. Para ele, membro do Grupo Socialista do Parlamento Europeu, a ecologia é o único caminho para a Europa. De uma só vez, a Europa poder-se-á livrar de dependências de energias fósseis oriundas de países terceiros e colocar-se na vanguarda tecnológica se investir seriamente na inovação científica. No entanto, Glucksmann refere que os Verdes europeus não são, em muitos casos, verdadeiros ecologistas, visto estarem presos a dogmas e a soluções que a história já provou não serem sensatas. A título de exemplo, proponho eu, veja-se o repúdio da pesca elétrica (“pulse fishing”), repúdio este apoiado também pelos Verdes no Parlamento Europeu. Seria uma pesca muito mais ecológica do que os pesados, poluentes e destruidores arrastões. Segundo Glucksmann, e volto a repetir que ele é do Grupo Socialista, o movimento Verde poderá ser o porta-estandarte desta necessária revolução se se libertar de preconceitos e aceitar a melhor ciência.

O melhor mesmo é ler o livro. Fica clarinho que mais importante do que tentar impor as soluções democráticas a quem não as quer ou não tem condições para as aceitar, o melhor caminho é demonstrar em permanência e para todo o mundo ver que a democracia, no modelo ocidental, é a solução governativa que mais promove a felicidade individual e coletiva. Ecologia, liberdade e democracia!


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 57: Pinceladas sobre arte no Faial e no Corvo

 

Mero de Bordalo II na Ilha do Corvo.
Foto: F Cardigos

Segundo a wikipedia, arte efémera é o nome dado a toda a expressão artística concebida sob um conceito de transitoriedade no tempo e de não permanência como obra de arte material e conservável. Nos Açores há diversos exemplos de arte efémera. O mais espetacular é, sem dúvida, o conjunto das pinturas murais na marina da Horta. Tanto quanto sei, e deixo no ar o desafio de ser contrariado, este enorme mural é a maior obra de arte efémera coletiva e voluntária do mundo. Desde que iates passam pelo porto da Horta, portanto muito antes da construção da marina e da sua ampliação, há pinturas que aí são deixadas por velejadores de todas as culturas. É um enorme prazer passear pela marina da Horta e, na minha opinião, é um motivo de grande orgulho para a cidade.

Vem-me a arte efémera à memória não por causa da Horta e da ilha do Faial, admito, mas sim por causa da ilha do Corvo. Durante estas férias de Verão, estive algumas semanas no Corvo e, apesar de conhecer muitíssimo bem aquela ilha desde os anos 80 do século passado, consegue sempre dar-me novidades.

O artista Bordalo II, em 2021, compôs um extraordinário “cagarro” em homenagem ao empenho dos corvinos em proteger esta e outras aves marinhas. O “cagarro”, como é hábito em Bordalo II, é composto a partir de resíduos e ficou instalado na porta do pavilhão desportivo da Vila do Corvo. Esta peça nasceu do desafio laçado pelo projeto “OceanLit” da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves e contou com o apoio da Comissão Europeia através do programa Interreg, da Câmara Municipal do Corvo, da Direção Regional do Turismo e da EDA.

Este ano, poucos dias antes de chegar, li no jornal que a Câmara Municipal do Corvo tinha tomado a iniciativa de contratar uma segunda peça. Quando finalmente aterrámos na ilha, eu e a Sílvia não nos contivemos enquanto não encontramos o “mero” do Bordalo II. Esta peça é uma homenagem à proteção voluntária que os corvinos fazem a uma população visitável de meros e, em simultâneo, pretende “alertar e provocar um olhar diferente sobre o desperdício”. A instalação teve o apoio da Comissão Europeia através do Programa Mar 2020.

Foi inteligente não colocar esta obra propriamente à vista. Dentro da Reserva Biológica é necessário procurar até que, por entre o pasmo e a alegria, quase como se estivéssemos a mergulhar no Caneiro dos Meros, lá encontramos o peixe saindo do casco de um antigo barco. Brilhante!

Aquilo que me deixou absolutamente espantado é que há uma terceira peça de Bordalo II na ilha. Ao que me contaram, de forma abnegada e voluntária, o artista resolveu compor esta peça que é, de momento, considerada um esboço efémero. No entanto, o resultado é, na realidade, uma emblemática e divertida “vaca”. Dito assim pode parecer ligeiro. Não é. Vale mesmo a pena ver, mas será necessário procurar e ainda bem. Tal como no caso do “mero”, a procura e a descoberta fazem parte do prazer.

Ou seja, imagine-se, na ilha do Corvo há três peças públicas de Bordalo II. Mas não é apenas isso. O interior da Câmara Municipal do Corvo tem as paredes cheias de obras magníficas de Martins Pereira e tantos outros.

Aqui chegado, penso que há dois desafios. Talvez melhor do que a palavra “desafios” seja pensar em “oportunidades”... Primeiro, há que tirar a “vaca” de Bordalo II da lista das obras efémeras dos Açores, responsabilizando uma entidade pela sua manutenção. Em segundo lugar, há que criar um circuito de arte da ilha, que aponte a localização das principais obras que o Corvo foi conquistando ao longo do tempo. Eu gostei muito, mas mesmo muito de encontrar todo este espólio e penso que outras pessoas poderão pensar e sentir da mesma forma.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.