sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 60: Sobre distopias

Para mim, as redes sociais são um dos grandes desafios contemporâneos. Não irei ainda ao ponto de lhes chamar o ópio do povo no século XXI, mas olho com preocupação. Fortaleci esta opinião depois de sair dessa ficção e ao contemplar o nível de intoxicação e dependência de alguns dos que ficaram. Concordo que há aspetos positivos, mas os engodos e enganos propositados, alguns acabando em roubo ou pior, as discussões, as arrelias escusadas e inúteis e a desinformação que vou observando agora à distância levam-me a não ter grandes dúvidas que, em termos gerais, o uso de redes sociais é prejudicial.

Infelizmente, alguns programas de rádio passaram a ter ferramentas de comunicação com os seus ouvintes e extensão de conteúdos assentes nas redes sociais. É uma tendência que tenho observado e é precisamente o que acontece com um dos programas que costumo escutar com gosto. Dada a minha convicção, dado o meu ativismo e tendo em consideração o apreço que tenho pela minha sanidade mental, estou excluído desse outro lado da minha rádio.

Foi isso que me fez refletir sobre a possibilidade de estar a entrar voluntariamente num mundo alternativo. Passo a explicar. Se a nova realidade se passa também num conjunto de plataformas das quais estou excluído, até que ponto tenho uma perceção errada do mundo? É uma perceção certamente limitada.

Claro que, talvez com um travo de arrogância e certamente com preocupação, considero que muito pior do que eu estão as pessoas que se mantêm ativamente nas redes sociais. Aí, pior que a realidade limitada é a sociedade propositadamente disfuncional criada pelo algoritmo.

O certo é que o metaverso e o mundo palpável estão a partir para lados diferentes. De um lado estarão os que se mantêm dentro das redes sociais e que, em breve, começarão a usar óculos virtuais de realidade aumentada e, depois, implantes no cérebro. Boa sorte! Do outro lado, os restantes.

Haverá então dois grandes países – o Real e o Virtual. Em momentos ocasionais, os habitantes atravessarão a fronteira e olharão com curiosidade para o outro lado. Com sobranceria, classificarão os restantes com adjetivos entre o curioso e o depreciativo.

No outro dia, encontrei um desses potenciais futuros habitantes do país virtual através de uma rede social que espreitei por cima do ombro de um comparsa. Este virtuaguês enviava um “live” (diz-se “laife”, penso eu) dum navio de cruzeiro em que celebrava a sua felicidade. Na minha perspetiva, ele não percebia completamente a situação. Ele não entendia que estava perdido numa monótona cabine e preso num poluente hotel flutuante. Era uma felicidade tão forçada, tão ignorante e tão irresponsável que me arrepiou.

“É pá!”, exclamava abundantemente, “vocês não vão acreditar, malta! A felicidade enorme que estou a sentir! Não há crianças e quase não há idosos neste cruzeiro! Isto é que é vida, pá! Estou no paraíso!” Provavelmente, estava mesmo, mas num paraíso só dele. Uma bolha virtual que só ele podia compreender e com consequências danosas para os restantes. É mesmo possível perdermo-nos atrás dos estímulos imbuídos pelos cartazes publicitários e, como se não fosse já suficiente, defendê-los e propalá-los publicamente.

Penso que já é tarde demais. Os reguladores permitiram que as grandes redes sociais investissem de forma irreversível em novas tecnologias de espaços virtuais. Permitiram que se agisse primeiro, antes de refletir coletivamente. Portanto, ao contrário do que deveria ser, faltou planeamento. Acabaremos com estupefacientes com o beneplácito dos Estados, digo eu.

Claro que quem, no futuro, estiver do lado de lá, por trás dos implantes cerebrais numa sala às escuras, sentindo o maior prazer de que se pode usufruir e em perpétuo circuito repetitivo, olhará para a minha realidade, e sem hesitação, irá apelidá-la de distópica. Não é fácil contrariar esta cena que antes apenas víamos nos filmes. Com todo o sofrimento em que, por vezes, tropeçamos, com toda a maldade, avidez e egoísmo que resulta em guerras e com as convulsões sociais que arriscam a limitar a ação climática, podemo-nos interrogar sobre qual dos países é mais distópico.

A resposta, no entanto, está nos sorrisos dos outros. Aqueles sorrisos que enchem os nossos corações de luz, amor e esperança. São sorrisos que se constroem, que se conquistam, que se disseminam e que se ganham. Felizmente, mesmo entre azedumes e escondidos nos dias mais cinzentos, vislumbramos destes sorrisos que trazem em si todas as respostas necessárias. Estes sorrisos construídos com respeito e simbiose, que são merecidos e que são genuínos, estes não existem senão no país Real.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

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