sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 61: A cama da loja que vende móveis para montar em casa

Vamos receber uma visita açoriana que nos merece toda a estima e isso obriga a algumas adaptações no domicílio. Uma destas adaptações é montar uma cama que há muito pedia para voltar a ser colocada no ativo. Como somos pessoas organizadas, certamente que todas as peças estão juntas e o processo de construção será rápido e expedito…

O primeiro item ausente, como notámos rapidamente, era o próprio manual de instruções. “Não há problema, procuramos na internet o respetivo PDF.”. De tão simples, devíamos ter desconfiado, mas a ingenuidade…

Esta cama da loja que vende móveis para montar em casa tem o modelo correspondente a uma pouco conhecida cidade da Escandinávia. Rapidamente encontrámos o manual e começámos a juntar as peças... Das 94 peças, tínhamos à nossa frente uma dezena. “Uiii… Começa mal”. Onde estariam as outras? Certamente por perto.

Depois de muito procurar, tivemos de ir ao alguidar de plástico que tem tudo. Sabem, aqueles baldes onde vamos colocando as coisas que um dia poderão ser úteis, mas não sabemos bem porquê. Penso que todas as casas têm um destes recipientes. Aí encontrámos as peças necessárias ou umas que pareciam poder fazer o serviço equivalente.

Iniciámos o procedimento colocando uma, depois duas e chegámos às três peças. Três em 94. Não está mau para a primeira hora. A este ritmo teremos cama dentro num dia!

Encravámos quando percebemos que quatro peças redondas não estavam no alguidar de plástico nem em lado nenhum. O mistério adensava-se porque o manual referia serem necessárias oito peças redondas e, na realidade, só encontrava local para colocar quatro. Certamente, uma limitação minha.

Uma das vantagens em residir na Europa continental é que há uma destas lojas que vende móveis para montar em casa a, praticamente, cada esquina. Metemo-nos no carro e, passados poucos minutos, estávamos na fila da assistência da loja. Para ser mais preciso, na enorme fila da assistência da loja, daquelas filas que se veem apenas num Sábado à tarde. Ainda por cima, sem certeza se aquelas eram as peças certas (oito peças para quatro ranhuras dava para desconfiar…) ou sequer se aquela era a fila adequada.

Havia que improvisar. À portuguesa, aproveitamos a passagem de uma funcionária mais solícita que ali estava por engano e perguntámos. “Estas peças, fazem sentido?”, disse no francês emigrante simpático que nos caracteriza e apontando para o PDF que tinha impresso. “Um momento!” e desapareceu. Muito lá ao fundo, voltei a ver a senhora. Estava a mexer num armário e, depois de dez curtos segundos estava a regressar com as peças na mão. Deu-me as peças sem uma palavra. “Ah, muito obrigado. Como fazer para pagar?”. Mãos à frente em posição defensiva, leve rodar da cabeça e algo incompreensível em flamengo. “Acho que nos ofereceram as peças”, disse eu muito admirado, quando a funcionária já partia para um outro corredor infinito e as dezenas de pessoas que aguardavam na fila nos amaldiçoavam com um olhar pouco amigável.

Entendendo a fragilidade da nossa situação, saímos em surdina. Em menos de cinco minutos, tínhamos as peças! Penso que este foi um record do mundo de uma ida à loja que vende móveis para montar em casa. Ainda por cima num Sábado à tarde. Inacreditável! Pois era…

Chegámos a casa e imediatamente notámos que as peças não só falhavam em número como falhavam em forma. De volta ao manual, percebemos que a cama mantinha o mesmo nome da cidade escandinava, mas tinha uma segunda versão, que não era a nossa. “Oh, voltámos à estaca zero…”, disse a Sílvia. “À estaca zero, nem pensar! Já temos três peças montadas e passaram apenas quatro horas. A este ritmo, nos próximos quinze dias temos cama!”. Há que manter o otimismo. “Já estão colocadas três peças, apenas faltam 91. Vamos em frente!”


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

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