Vamos receber uma visita açoriana que nos merece toda a estima e isso obriga a algumas adaptações no domicílio. Uma destas adaptações é montar uma cama que há muito pedia para voltar a ser colocada no ativo. Como somos pessoas organizadas, certamente que todas as peças estão juntas e o processo de construção será rápido e expedito…
O primeiro item ausente, como notámos rapidamente, era o próprio manual de
instruções. “Não há problema, procuramos na internet o respetivo PDF.”. De tão
simples, devíamos ter desconfiado, mas a ingenuidade…
Esta cama da loja que vende móveis para montar em casa tem o modelo
correspondente a uma pouco conhecida cidade da Escandinávia. Rapidamente
encontrámos o manual e começámos a juntar as peças... Das 94 peças, tínhamos à
nossa frente uma dezena. “Uiii… Começa mal”. Onde estariam as outras?
Certamente por perto.
Depois de muito procurar, tivemos de ir ao alguidar de plástico que tem
tudo. Sabem, aqueles baldes onde vamos colocando as coisas que um dia poderão
ser úteis, mas não sabemos bem porquê. Penso que todas as casas têm um destes
recipientes. Aí encontrámos as peças necessárias ou umas que pareciam poder
fazer o serviço equivalente.
Iniciámos o procedimento colocando uma, depois duas e chegámos às três
peças. Três em 94. Não está mau para a primeira hora. A este ritmo teremos cama
dentro num dia!
Encravámos quando percebemos que quatro peças redondas não estavam no
alguidar de plástico nem em lado nenhum. O mistério adensava-se porque o manual
referia serem necessárias oito peças redondas e, na realidade, só encontrava
local para colocar quatro. Certamente, uma limitação minha.
Uma das vantagens em residir na Europa continental é que há uma destas
lojas que vende móveis para montar em casa a, praticamente, cada esquina.
Metemo-nos no carro e, passados poucos minutos, estávamos na fila da
assistência da loja. Para ser mais preciso, na enorme fila da assistência da
loja, daquelas filas que se veem apenas num Sábado à tarde. Ainda por cima, sem
certeza se aquelas eram as peças certas (oito peças para quatro ranhuras dava
para desconfiar…) ou sequer se aquela era a fila adequada.
Havia que improvisar. À portuguesa, aproveitamos a passagem de uma
funcionária mais solícita que ali estava por engano e perguntámos. “Estas
peças, fazem sentido?”, disse no francês emigrante simpático que nos
caracteriza e apontando para o PDF que tinha impresso. “Um momento!” e
desapareceu. Muito lá ao fundo, voltei a ver a senhora. Estava a mexer num
armário e, depois de dez curtos segundos estava a regressar com as peças na
mão. Deu-me as peças sem uma palavra. “Ah, muito obrigado. Como fazer para
pagar?”. Mãos à frente em posição defensiva, leve rodar da cabeça e algo
incompreensível em flamengo. “Acho que nos ofereceram as peças”, disse eu muito
admirado, quando a funcionária já partia para um outro corredor infinito e as
dezenas de pessoas que aguardavam na fila nos amaldiçoavam com um olhar pouco
amigável.
Entendendo a fragilidade da nossa situação, saímos em surdina. Em menos de
cinco minutos, tínhamos as peças! Penso que este foi um record do mundo de uma
ida à loja que vende móveis para montar em casa. Ainda por cima num Sábado à
tarde. Inacreditável! Pois era…
Chegámos a casa e imediatamente notámos que as peças não só falhavam em
número como falhavam em forma. De volta ao manual, percebemos que a cama
mantinha o mesmo nome da cidade escandinava, mas tinha uma segunda versão, que
não era a nossa. “Oh, voltámos à estaca zero…”, disse a Sílvia. “À estaca zero,
nem pensar! Já temos três peças montadas e passaram apenas quatro horas. A este
ritmo, nos próximos quinze dias temos cama!”. Há que manter o otimismo. “Já
estão colocadas três peças, apenas faltam 91. Vamos em frente!”
* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.
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