quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 87: Três vivas pelo Parque Marinho dos Açores!

 
Lírios no Parque Marinho dos Açores.
Foto: F Cardigos

Desde que isso é possível, e já é possível há muitos anos, recebo diariamente um aviso sempre que na comunicação social internacional escrita são publicadas as palavras “sea”, “marine” ou “ocean” em conjunto com a palavra “Azores”. Para além de obter uma seleção das notícias que sobrevivem à distância, o que deve ter uma relação com a sua relevância, tem a enorme vantagem de me permitir facilmente compreender o que se passa no Mar dos Açores que tem impacto lá fora.

As notícias chegam-me por esta via oriundas da América do Norte, do Reino-Unido ou de qualquer outro ponto em que se comunique em língua inglesa. O filtro e a seleção permitem-me ter acesso a notícias muito precisas. Por exemplo, foi através deste sistema que fui informado sobre um artigo científico em que se descreviam novas marcas com transmissão via satélite para tartarugas e que permitirão clarificar o papel dos Açores no ciclo biológico destes animais pré-históricos.

Penso, mas estou a falar de memória, o evento que mais registos gerou foi a tempestade “Lorenzo” que destruiu o porto das Lajes das Flores em 2019. Esta era a realidade até à semana passada. Agora essa realidade mudou.

Sob proposta do Governo Regional na sequência de um trabalho de longo prazo realizado pela Universidade dos Açores e, mais recentemente, catalisado pelo projecto Blue Azores, a Assembleia Legislativa aprovou a classificação de 30% do Mar dos Açores como área protegida. Incluídos nestes 30%, metade terão acesso restrito e extração zero. A aprovação desta ampliação tornou-se, sem dúvida, no mais citado evento da história recente do Mar dos Açores.

De acordo com a Agência Europeia para o Ambiente, “a conservação das zonas costeiras e marinhas é importante para manter a biodiversidade e assegurar o pleno funcionamento dos ecossistemas e dos seus serviços. As áreas marinhas protegidas desempenham um papel fundamental na conservação dos ecossistemas costeiros e marinhos, proporcionando benefícios económicos e sociais significativos e apoiando os meios de subsistência locais.

Criado a 11 de Novembro de 2011, o Parque Marinho dos Açores tinha os mesmos objectivos gerais que hoje, mas a sua dimensão dentro da sub-área regional da Zona Económica Exclusiva de Portugal ainda não tinha expressão significativa. A partir da semana passada isso mudou e, espero eu, para sempre.

O actual Secretário Regional com o pelouro do Mar, o meu amigo Mário Rui Pinho, está naturalmente de parabéns. Saliento, com confiança, que lhe cabe evitar que estas novas áreas protegidas se tornem naquilo que ele próprio nomeou como “O Mar de Papel”. Num artigo publicado na Revista Mundo Submerso há precisamente 20 anos, o agora político e o seu co-autor referiam o perigo de classificar áreas marinhas que não tivessem uma tradução efetiva dos objectivos para que foram criadas no mundo real. Ou seja, se é para proteger, agora há que proteger efetivamente. Tenho a certeza que vai correr bem.

Como se refere na plataforma de media para o desenvolvimento Devdiscourse da Índia, “Abrangendo cerca de 300 mil quilómetros quadrados, esta iniciativa visa cumprir os objectivos da ONU para 2030, preservando os diversos ecossistemas subaquáticos e restringindo as actividades de pesca e de turismo.” Há agora que dar forma às intenções. Com adequada implementação, a proteção destes locais poderá catapultar a riqueza nos sítios explorados numa sinergia exemplar e para a qual o mundo olha com atenção e entusiasmo. Apenas para nomear alguns órgãos de comunicação social em que esta decisão foi referida, destaco a Reuters (a partir de Lisboa), a BBC (Londres), a Euronews (Bruxelas), a National Geographic (EUA), Cyprus Mail (Chipre), Royal Gazette (Bermudas), a Swissinfo (Suíça), Taiwan News, China Daily e sítios internet mais especializados como o Divernet e o DeeperBlue.

Portanto, o Mar dos Açores ficou mais protegido, com isso será mais eficaz a cumprir todos os seus serviços ambientais e, como consequência inesperada, tornou-se num farol que levou o bom nome dos Açores aos quatro cantos deste nosso planeta com uma mensagem de esperança e alento no que diz respeito à proteção e uso sustentável do Oceano. Três vivas para o Parque Marinho dos Açores!



* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 86: Peixe-rei e rainhas em tempos incertos

 

Peixe-rei limpa boga.
Foto: F Cardigos

Num estudo liderado por um cientista português em colaboração com colegas da Alemanha, Estados Unidos da América, Hungria, Itália e Suíça foi explorada a dinâmica de caça coletiva entre polvos e diversas espécies de peixes. O trabalho foi recentemente publicado numa revista do grupo Nature e é intitulado "Multidimensional social influence drives leadership and composition-dependent success in octopus-fish hunting groups". Nele examina-se como a complexidade social multidimensional influencia a liderança e o sucesso do grupo. Através de técnicas de rastreamento tridimensional no mar e em experiências controladas, os investigadores descobriram que estes grupos apresentam dinâmicas funcionais complexas e propriedades dependentes da composição específica dos membros. A influência social é distribuída de forma hierárquica em múltiplas escalas, reflectindo as respetivas especializações: o polvo decide “se” e “quando” o grupo se desloca e os peixes lideram a exploração do meio, decidindo “para onde” o grupo se move. É um trabalho muito interessante e é acompanhado por vídeos ilustrativos. Vale a pena espreitar.

Ao ler o artigo não pude deixar de pensar em organismos marinhos que se especializam na cooperação. Por exemplo, os peixes-piloto e as rémoras que acompanham os tubarões e as jamantas num bailado de aparente eterna sincronia.

No entanto, os que mais me fascinam, até porque são muito simples de observar, são os peixes-rei e as rainhas. São duas espécies diferentes que se ocupam a limpar outros peixes de parasitas externos. Aqui, neste mar dos Açores, a vassalagem é prestada por suas altezas que, desta forma, obtêm uma refeição gratuita. Os outros peixes, aqueles que são limpos, livram-se de incómodos parasitas.

Não se pense por um instante que a aristocracia piscícola rouba os parasitas. Nada disso. Como poderá observar facilmente, os peixes que são limpos entram em algo que parece hipnotismo, letargia ou levitação, parando na coluna de água com as barbatanas bem esticadas permitindo assim que o trabalho fique bem feito. Quero vincar, portanto, que não é apenas oportunismo por parte da aqua-nobreza, é mesmo cooperação de que resultam dois beneficiários. Esta é apenas uma das milhares de histórias de que pode usufruir quem se atrever a meter a cabeça debaixo de água nos Açores. É simples.

Infelizmente, tudo isto está em risco. Como pudemos observar nestas últimas semanas, muitos meros têm morrido de algo que os cientistas do DOP/Okeanos tendem a relacionar com as alterações climáticas. De facto, mergulhei no Corvo este Verão e a água estava notoriamente quente, como nunca tinha sentido nos Açores.

Enquanto sociedade, andámos demasiado tempo a fingir que as alterações climáticas não existiam. Quando estas se tornaram evidentes, enquanto sociedade, tentámos inventar que não era culpa dos humanos. Agora, os meros começam a aparecer à superfície do mar, como bolhas numa panela de água a ferver, passe o exagero.

Nós, os seres humanos, temos uma responsabilidade significativa na intensificação das alterações climáticas porque atividades como a queima de combustíveis fósseis e a desflorestação contribuem para o aquecimento global. As consequências dessas alterações incluem o aumento do nível do mar, a intensificação de fenómenos meteorológicos extremos, como tempestades e secas, e a perda de biodiversidade, que podem ter impactos devastadores nas sociedades humanas e nos ecossistemas.

Que desculpa iremos inventar a seguir?! Era mais simples e mais eficaz agir. Cada um de nós, seja por ações, por sensibilização ou como lhe parecer bem, agir. Entre outras ações, é preciso escolher melhor, optando sempre por soluções que pressionem menos a natureza planetária, e compensar ambientalmente as inevitáveis viagens de avião. Os nossos filhos e netos merecem ter a oportunidade de ficar fascinados com a natureza que nos envolve. Nós não temos o direito de, por inacção, lhes estragar o futuro.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 85: Soluções para Oceanos Sustentáveis

Callum Roberts é um daqueles cientistas que qualquer biólogo marinho conhece pelo menos pela fama e prestígio. Recentemente, este cientista liderou um estudo que culminou na publicação na npj Ocean Sustainability, parte do grupo Nature, de um artigo intitulado "Rethinking sustainability of marine fisheries for a fast-changing planet". O estudo foi conduzido por uma equipa internacional de cientistas com contribuições de várias especialidades, instituições e países. Um desses cientistas, o Telmo Morato, está vinculado ao DOP/Okeanos e vive no Faial.

A publicação argumenta que muitos produtos do mar comercializados como "sustentáveis" na verdade não o são. Os autores defendem que são necessários padrões de sustentabilidade mais rigorosos para responder a um mundo em rápida mudança e apoiar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. As futuras pescarias devem operar com base em princípios que minimizem os impactos na vida marinha, se adaptem às mudanças climáticas e permitam a recuperação da biodiversidade, ao mesmo tempo em que apoiam e melhoram a saúde, o bem-estar e a resiliência dos cidadãos e das suas comunidades. O estudo destaca a importância crítica dos oceanos saudáveis para a natureza, o bem-estar humano e a estabilidade planetária, sublinhando que a vida marinha, incluindo as espécies exploradas, é essencial para a saúde dos oceanos.

No entanto, de acordo com as conclusões desta equipa científica de primeira linha, a maioria dos países não está a cumprir as metas do Acordo de Paris e outros compromissos globais relacionados com a proteção ambiental e dos oceanos. Por isso, os autores propõem uma visão para o futuro da exploração oceânica, onde as pescarias são geridas como sistemas socio-ecológicos que reconhecem e respeitam os valores da boa relação entre os humanos e a natureza. Os cientistas apresentam dois princípios centrais e um conjunto de ações-chave para transformar as pescarias para o futuro, incluindo a minimização do dano ambiental, a promoção da recuperação da vida marinha e dos habitats e a adaptação às alterações climáticas.

Em paralelo, e num outro estudo com uma equipe e base completamente diferentes, concluiu-se que o planeta Terra pode estar prestes a ultrapassar sete dos nove limites planetários. O limite que está agora num limiar crítico é a acidificação dos oceanos. A acidificação dos oceanos é o efeito que resulta da absorção de dióxido de carbono da atmosfera. Este efeito prejudica diretamente todos os organismos com concha ou carapaça e, indiretamente, ameaça os ecossistemas marinhos e a sua habitabilidade global.

Entre os nove limites planetários, já foram claramente ultrapassados seis, incluindo alterações climáticas, novos poluentes, biodiversidade e alteração dos fluxos biogeoquímicos. No relatório, o Instituto de Pesquisa de Impacto Climático de Potsdam destaca que os nove limites planetários estão inter-relacionados e que as perturbações humanas infligidas ao ambiente global não podem ser tratadas isoladamente.

Tanto o primeiro estudo como o segundo, apontam para um mesmo cenário global e para a mesma solução: tratar melhor os oceanos. É imperativo agir. Se não soubermos como agir ou se não estiver ao nosso alcance fazê-lo, podemos sempre apoiar aqueles que sabem e podem atuar. Como cidadãos, ao privilegiarmos opções ambientalmente adequadas, mesmo que isso nos custe mais dinheiro ou esforço, estamos a contribuir para criar um mundo melhor.

Sozinhos pouco podemos fazer, mas uma ação conjunta pode fazer autênticos milagres. Que o diga o buraco do Ozono. A humanidade quis e ele está a desaparecer! Há soluções, mas elas têm que ser implementadas.

* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.