quinta-feira, 26 de outubro de 2000

Entrevista dada à Revista Mundo Submerso

Não considero que os mergulhos longe de terra possam ser apelidados de mergulhos no azul. 
O verdadeiro mergulho no azul, para mim, é um mergulho em que não se veja o fundo desde o início até ao final da imersão e em que haja a utilização de ajudas à respiração. 
Este tipo de mergulho serve para observar cetáceos ou grandes pelágicos. 
Claro que não li isto num livro, nem nada disso, é apenas a minha opinião. 
Penso que até escrevi um pequeno artigo para a revista sobre o mergulho no azul nos Açores, mas depois fiquei a matutar sobre isso. 
Sendo assim, o verdadeiro mergulho no azul é algo muito mais complexo. 
É um tipo de mergulho que desafia todas as regras de segurança e para o qual não há mitigação possível, apenas adrenalina. 

Mundo Submerso - Quais os pontos fundamentais que um mergulhador deverá ter bem presente quando mergulha num local bem longe de terra?

1. A grande dificuldade neste tipo de mergulho é encontrar um mergulhador que, por qualquer razão, não tenha seguido o plano de mergulho e emirja fora do local combinado.
2. É necessário ter consciência que se está a mergulhar num sítio perigoso, o mergulhador e a equipa que o acompanha deverão ter consciência que os níveis de perigo estão ampliados.
3. É fundamental ter mergulhadores experientes na equipa. Tenho a preocupação de, quando mergulho num local novo, tentar fazer-me acompanhar por mergulhadores que já conheçam o local. Por outro lado, não mergulho com mergulhadores inexperientes em mar aberto. Considero isso demasiado perigoso para todos. Só levo um mergulhador para mar aberto quando conheço o mergulhador ou quando este trás boas referências de colegas de mergulho em quem confio. Mas mesmo que conheça o mergulhador gosto de fazer um mergulho de teste de equipamento e treino de procedimentos antes de ir para um banco off-shore.

M.S. - Que peças de equipamento extra, recomenda para este tipo de mergulho? (tipo: boia de patamar, apito, buzina, etc.).

Tudo o que ajude a localizar um mergulhador é bem-vindo. Uma bóia de patamar por mergulhador é imprescindível, o apito ajuda e a buzina também (é pena serem tão dispendiosas). Uma lanterna de flashes pode ser fundamental no caso das coisas darem mesmo para o torto e se tiver de passar uma noite no mar.
Uma peça de equipamento fundamental para mergulhos longe da costa é o kit de oxigénio. Este equipamento pode ajudar a mitigar situações de grande apuro. Não irei falar aqui das situações e o modo como este equipamento deve ser utilizado porque seria leviano, mas defendo que as empresas de mergulho deviam possuir este equipamento a bordo e os dive-master deveriam ter habilitações para os utilizar. Atenção, para a administração de Oxigénio funcionar é imprescindível que o administrador saiba o que está a fazer! Uma forma complementar de avaliar o grau de preparação que um determinado mergulhador tem para fazer um mergulho deste género é averiguar se este sabe administrar Oxigénio. Um dos actos fundamentais na preparação do mergulho no azul é ensaiar a utilização do kit de oxigénio.

Por vezes levo scooters para baixo de água. Em cada equipa de dois uma scooter pode ajudar bastante. Principalmente para recuperar a posição de emersão depois de inadvertidamente ter, por exemplo, largado o cabo (o segundo mergulhador deverá agarrar-se à ponta das barbatanas do mergulhador que tem a scooter). Não é um remédio infalível, em muitas situações uma scooter com dois mergulhadores não vence uma corrente .

M.S. - Como deve ser feito um patamar de descompressão se existir ondulação.

Eu tenho uma técnica que é muito simples e que aconselho a todos: "não mergulhar se as condições meteorológicas não forem ideias". Claro que não a cumpro, mas evitaria utilizar a segunda técnica que é fazer o patamar ao contrário. Em vez de ficar pendurado na bóia de patamar, ficar suspenso no peso que se encontra no fundo. Atenção que para utilizar esta técnica é necessário perder o amor ao cabo e peso de patamar e encravá-los solidamente no fundo. Nos patamares mais profundos (9 e 6 metros) ajuda muito, mas para fazer o dos três metros é mais complicado principalmente por causa do efeito da diferença de pressão nos ouvidos. Aí o conselho é concentrar a descompressão nos patamares inferiores e depois fazer a emersão tão pausadamente quanto possível... Isto não deve fazer muito bem à saúde, mas não se pode ter tudo...

M.S. - Que requisitos deverá ter o barqueiro, ou quem ficar responsável pelas pessoas que estão na água?

Em relação ao pessoal de apoio para mergulhos arriscados, começo por indicar que mais importante que o barqueiro é ter um mergulhador de apoio a bordo. Este mergulhador deverá estar equipado com o fato e relativamente bem preparado para entrar dentro de água. A utilidade dele não está tão relacionada com entrar dentro de água, mas mais com a detecção e ajuda na aproximação aos mergulhadores que vão emergindo.

Uma vez, dei apoio como mergulhador a um amigo barqueiro. Estava mal preparado e mais preocupado em bronzear-me do que em verificar a posição dos mergulhadores, admito. A certo passo um mergulhador, completamente fora de tempo, emergiu. Apesar de novato compreendi que ele estava sub-lastrado. Peguei em dois pesos e nadei até ele. Apenas quando cheguei perto compreendi que este estava em pânico. Estando eu de fato de banho com um kilo e meio nas mãos pouco pude fazer para além de o agarrar pelas costas e falar com ele (o que já não é mau de todo). Mas o barqueiro é que salvou realmente a situação trazendo uma bóia circular (sim, aquelas tenebrosas que nos parecem inúteis) até ao nosso mergulhador e puxando-o para bordo. Se estivesse de fato ou com qualquer outro sistema de flutuação poderia ter eu resolvido a situação, mas...

A minha experiência indica que o barqueiro em si deve ter conhecimentos de mergulho e proceder de forma adequada se as coisas correrem mal. Há barqueiros que conseguem seguir as bolhas dos mergulhadores e claro que esses dão muito jeito. Outra característica que pessoalmente muito aprecio é os barqueiros que se sabem aproximar dos mergulhadores. É terrível ter alguém sempre por cima dos mergulhadores com receio de os perder e, por outro lado, sabe muito bem chegar à superfície e ver de imediato o sorriso seguro de um bom companheiro.

Há barqueiros fantásticos! Uma vez a mergulhar no Dolabarat tive a sorte de estar acompanhado por dois excelentes barqueiros (embora apenas um barco). Tínhamos duas equipas de mergulho e estavam umas condições fantásticas para a prática do mergulho com escafandro autónomo. Como costumam dizer os marinheiros quando as condições ideias estão reunidas: "tudo pode acontecer..." De facto uma das equipas saiu da zona da coroa e foi imediatamente colhida por uma corrente intransponível. Os nossos barqueiros (um antigo pescador e um mergulhador profissional) marcaram de imediato a posição dos mergulhadores que permaneciam na coroa. Quando reparámos na fateixa a descer sobre a nossa posição percebemos que a situação não era boa e iniciámos a emersão cumprindo todos os preceitos do bom mergulho. Os nossos colegas de mergulho foram entretanto recolhidos em segurança. Se o barco tivesse partido em busca dos mergulhadores transviados sem marcar a nossa posição poderia ter-nos perdido e ficaríamos em maus lençóis. Graças à resposta pronta e eficaz de uma boa equipa de apoio evitou-se o pior.

M.S. - Prefere ter o barco fundeado, ou à deriva (com motores a funcionar) ?

Na preparação atempada do mergulho considero ideal ter a bordo pelo menos três conjuntos de fateixas, cabos com 50 metros de algodão (ou uma mistura suave) e bóias. O cabo deve ter uma espessura e suavidade adequada para nos podermos agarrar, ou seja, aquele cabo verde de polietileno é horrível porque escorrega e é, normalmente, demasiado fino.

Dependendo do barqueiro e restante equipa de apoio, das condições meteorológicas (incluindo correntes, marés reais, etc.) e dos equipamentos disponíveis a bordo equaciono qual a melhor forma de proceder durante o mergulho.

Quando estou a liderar o mergulho tento integrar todas as opiniões e tomar a decisão mais eficaz. Não sinto que o meu papel seja diminuído quando não estou a liderar. Nessa situação tento, quando solicitado, dar a minha opinião de uma forma tão sucinta e explícita quanto possível. Só considero estarem reunidas as condições para mergulhar depois de ter feito entender ou entendido qual será a missão de cada mergulhador.

Penso que a situação ideal permitiria tomar decisões antes de chegar ao local, mas infelizmente isso ainda não me aconteceu. Há sempre uma variável que impede que o mergulho se realize exactamente conforme planeado.

Basicamente, diria que prefiro ter o barco ancorado se tiver bom tempo e que prefiro ter o barco à deriva se as condições meteorológicas forem instáveis. É necessário ter o barco disponível para socorrer um mergulhador se este se soltar do cabo guia, mas por outro lado com o barco à deriva é necessário ter uma bóia de imersão. Ora acontece que a partir desse momento a maioria dos barqueiros tomam mais atenção à bóia que aos mergulhadores. Infelizmente, não é impossível que a fateixa da bóia garre (i.e. se solte do fundo) e lá vão os nossos mergulhadores ficar sozinhos até que o barqueiro perceba.

Imaginemos a situação ideal e perfeita: chegados ao Banco Princesa Alice, depois de três horas de viagem, estamos todos bem dispostos e encontramos de imediato a coroa. O GPS e a sonda parecem uns autênticos aparelhos de relojoeiro e esta tarefa foi muito facilitada.
Como tudo corre bem, chegámos no momento da mudança da maré que coincide com o meio da manhã - apenas porque esta história é prefeita. É necessário mergulhar a meio da manhã para que, depois do almoço ligeiro, se possa realizar um segundo mergulho. Isto nunca acontece porque aquele dia em que não há mau tempo, presente ou previsto, e em que a lua é de quarto tem uma probabilidade baixa de coincidir com uma mudança de maré a meio da manhã. Atenção que não aconselho um segundo mergulho de garrafa, visto a profundidade ser elevada neste local, mas um pequeno passeio com poucas apneias e ligeiras pode ser altamente compensador: jamantas, wahoos ou espadins-brancos, tudo é possível e provável.
Depois colocamos a primeira bóia de localização na coroa. Como tudo corre bem, não temos de tentar mais que duas vezes para que a fateixa deixe de garrar. A seguir apoitamos a embarcação. Enquanto os mergulhadores vestem os coletes - o resto do equipamento já estava vestido e as garrafas colocadas nos coletes, visto este ser um mundo perfeito - o barqueiro, descontraidamente, coloca um cabo na popa da embarcação com 25 a 50 metros que termina num balão laranja. Para complementar a operação coloca um cabo que une o cabo da poita à popa da embarcação. Claro que nada disto será verdadeiramente necessário porque estamos a mergulhar no estofo da maré e o trajecto entre a popa da embarcação e o cabo de poita, por onde iremos submergir, se faz facilmente sem qualquer tipo de corrente a contrariar os movimentos.

Isto é num mundo perfeito, a realidade é outra:

Chegamos ao Banco Princesa Alice depois de quatro horas de viagem. Ao contrário do que se previa o vento mudou de quadrante e apanhamos com aragem pela proa. Devido ao bater do barco metade dos mergulhadores enjoaram e decidiram não efectuar o mergulho.
O GPS - por aquelas razões que apenas o exército dos Estados Unidos sabe - está com um erro grande. A sonda está a funcionar a meio gás porque é velha e como a termoclina está muito pronunciada não conseguimos distinguir entre o fundo e aquele eco estranho. Acabamos por ter de utilizar o dispositivo humano de detecção de baixas (mais conhecido por mergulhador em apneia).
Colocamos a bóia de localização da coroa depois de cinco tentativas extenuantes. Com isto tudo já perdemos a maré da manhã e para não perder tudo entramos dentro de água para observar a coluna de água. O banco é lindo. Tirando a parte por cima da coroa, onde as correntes são imensas, o Princesa Alice até é calmo e as jamantas que insistem em nos vir observar são umas perfeitas bailarinas que - como toda a gente sabe - dançam ao som do tema "As Ilhas dos Açores" dos Madredeus.
Quando entramos dentro de água e depois de termos esperado cinco horas pela nova mudança de maré, por qualquer razão misteriosa, a corrente não amainou (i.e. não ficou mais fraca). Lutamos como bravos mergulhadores para alcançar o cabo da poita, o regulador entra em débito todas as vezes que voltamos a cara para verificar se os nossos companheiros ainda estão connosco, mas conseguimos!
Como as condições estão longe se ser as ideias o nosso barqueiro colocou uma segunda embarcação dentro de água. O semi-rígido de apoio da nossa embarcação está pronto para socorrer qualquer mergulhador que se solte do cabo de mergulho. Atenção: isso já me aconteceu e nesses momentos é necessário que o mergulhador tenha calma e que confie no seu barqueiro e no vigilante de mergulho. Ele irá buscá-lo em menos de nada. Pânico é a última coisa necessária numa situação deste género. Para facilitar a sua localização encha o colete com algum ar, isso irá projectar o seu corpo um pouco para fora de água, sem se cansar coloque uma mão sobre a cabeça (escusa de fazer aquele sinal ridículo que nos ensinam nas aulas de mergulho), mas aumente tanto quanto possível a área de contraste entre o seu corpo e o mar. Neste dia felizmente isso não aconteceu. O mergulho é estrondoso! O Banco Princesa Alice é a verdadeira pérola do Atlântico, tão selvagem que nos faz lembrar o pântano assombrado de Avalon, com um azulão tão escuro e profundo que nos fomenta um respeito pela imensidão universal, como se aqui se reunissem os deuses quando desejam ter todas as emoções. É um mergulho a não perder.
Apesar de contentes sentimos uma certa frustração por não ter aproveitado as duas marés, por isso e contrariando todas as regras de segurança, entramos na água ao final da tarde para um último olhar a este azul. É nessa altura que começa a aparecer um cardume de chicharros e depois cavalas e depois... espadins ! Como são lindos os espadins-brancos...

Por vezes, quando há tempo ou quando o trabalho assim o obriga, marcamos o local de mergulho com diversas objectos. No Banco D. João de Castro chegámos a colocar cinco bóias todas ligadas entre si em profundidade (para não implicar com a navegação) e com dois barcos de apoio para fazer um trabalho de geolocalização. Claro que nesse caso, mesmo emersos, para onde quer que olhássemos tínhamos sempre uma bengala visual. Infelizmente, este tipo de planeamento é moroso e tira um pouco da poesia de mergulhar longe de tudo. Fica um mergulho demasiado humanizado.

Seja qual for a situação no local, tenha ciente que só deve mergulhar quando, em consciência, considerar estarem reunidas as condições para um óptimo mergulho. Decidir não realizar um mergulho, por mais tentador que este pareça, não é qualquer vergonha é apenas uma decisão individual que qualquer mergulhador responsável compreende, aprova, respeita e admira.

Entrevista dada à Revista Mundo Submerso