sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Voo do Cagarro - 19: Uma tempestade sobre Zaventem

Escada improvisada no aeroporto de Zaventem.
Foto: F Cardigos
 

Em Lisboa, os prognósticos para a viagem de avião não eram bons. “Vamos lá ver se dá…”, dizia a hospedeira de terra, sem grande confiança que o voo corresse bem.

A tempestade Eunice tinha fechado diversos aeroportos n
o Reino Unido e no norte do continente europeu. Quando o avião levantou, o meu aeroporto de destino, Bruxelas, era um deles. O aeroporto estava fechado. Tinha tudo para correr mal…

Ao meu lado sentou-se uma simpática senhora septuagenária. Compreendemos rapidamente que éramos ambos dos Açores e, por isso, o mau tempo não ensombrava as nossas viagens de avião. “Mau tempo no continente é brisa nos Açores!” disse a minha interlocutora.

A senhora, da qual não sei o nome, vivia há meio século na Bélgica e voltava aos Açores, pelo menos, duas vezes por ano. “Não consigo deixar de regressar…” disse com o belo sotaque de sílabas explicadas que usam na ilha verde.

Lamentámos já não haver voo da Tui direto de Bruxelas para Ponta Delgada e de outras mazelas de que sofrem os passageiros frequentes. Do mau tempo, pouco notávamos ainda.

Ao aproximarmo-nos de Zaventem, o município onde se situa o Aeroporto Nacional de Bruxelas, o avião começou a balançar mais e mais, até ter testado todas as capacidades do Airbus 321-neo. Uma criança chorava no meio do pesado silêncio dos adultos. Pumba, pumba, catrapumba, e mais uma forte agitação no exterior, agora acompanhada de grande comoção dentro do pássaro de metal e um susto que calou o infante durante alguns segundos. Mais vira para um lado, sobe, vira para o outro, abana, agita, sobe outra vez, desce depressa, desce devagar, alinha com a pista, desce.

No meu conta quilómetros pessoal, verifico que o avião pouco passa dos 200 km/h. Normalmente, o avião toca no chão aos 250. Imagino que os restantes 50 km/h estejam diluídos na tentativa de domar a besta.

Finalmente, tráz! O avião toca no chão, agarra-se, trava, crava, imagino que vá fazer um pião, mas não faz. A pista cola-se às rodas ou o contrário e zica, trica! Está feito.

Nunca tive dúvidas... Nem eu, nem a senhora septuagenária ao meu lado. Olhamos um para o outro e imaginamos a tatuagem “Tanya 95” cravada sobre o ombro esquerdo e que encabeça uma longa lista de tempestades a sério. E o break dance sobre a pista das Lajes da Terceira com ventos cruzados?! Eles sabem lá! Nem sequer borregámos…! Uma aprendiz de tempestade, claramente.

Pensamos tudo isto sem palavra dizer ao mesmo tempo que os continentais no avião irrompem num aliviado bater de palmas. Alguém grita, “vivam os pilotos!”. É apenas uma aragem sobre Zaventem…

Aterramos e estranho... Em vez de ir para as mangas, o avião detém-se longe do terminal. Esperamos, esperamos... até que o próprio piloto admite não saber bem o que se passa.

A certo passo, parecendo sair de uma cena cómica, vemos umas escadas a passar perto de nós. Os operadores testam as manetes, sobem as escadas, descem, empurram um pouco mais as ditas, voltam atrás, à frente e lá encostam. A senhora septuagenária, diz “amadores” e tem alguma razão.

Ao sairmos, explicam que é a escada de emergência da Lufthansa e os operadores, simples funcionários de pista, tinham-se voluntariado para resgatar os passageiros que estavam presos nos aviões. As mangas do aeroporto tinham-se avariado com a tempestade e não havia plano B. Todos agradecem aos funcionários de pista, abnegados seres humanos e dignos desse nome.

No autocarro, todos sorriem. Uns aliviados pelo susto que passaram, outros agradecidos aos pilotos, outros ainda por terem visto a bonita face de humanos a ajudar humanos sem razão acrescida e, todos eles, por terem estórias para contar.

Chegamos aos tapetes de distribuição de bagagem. Não costumo andar de mala de porão, mas a necessidade de trazer muitos livros de trabalho a isso obrigou.

Esperamos, esperamos, esperamos… Passado uma hora, uma voz acalma-nos, “a bagagem será distribuída dentro de momentos”. Esperamos, esperamos, esperamos… Passada mais meia hora, quando o relógio já batia a uma e meia da manhã, aparece um grupo de funcionários das operações de bagagem. Trazem o suor, o cansaço e o desespero estampado na face. Todos compreendemos que devem estar numa situação ainda pior que a nossa e ninguém se queixa. Começam a tirar do tapete as centenas de malas que já lá estavam amontoadas. Pela rádio walkie talkie, alguém lhes diz “já tiraram malas suficientes? Já podemos meter o tapete a andar?”

As centenas de pessoas que estavam à espera das bagagens de vários voos acumulados, percebem finalmente o que está a acontecer. O tapete está bloqueado! Atiramo-nos às bagagens e, menos de 3 segundos depois, o tapete está limpo. Missão cumprida.

O tapete começa a rolar. Aí estão as bagagens de Milão, Munique, Madrid, Geneva, Tenerife, Eskişehir e Lisboa!

São duas da manhã. Mais do que exasperado ou cheio de sono, estou contente. Vi a coragem de uma septuagenária de São Miguel, vi a competência e a abnegação de gente boa e vi humanos a colaborarem repentinamente pelo bem comum. Lindo! Oxalá todas as tempestades terminassem nesta boa bonança.


sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Voo do Cagarro - 18: As piscinas naturais de Santa Cruz das Flores, Açores

Piscinas naturais de Santa Cruz das Flores.
Foto: F Cardigos
 

Nunca gostei particularmente de andar descalço sobre a areia da praia. Ficar deitado a apanhar Sol ou a nadar no mar, sim. O interminável percurso entre os dois sempre me pareceu aborrecido e, por vezes, doloroso. Aquela dor da areia a escaldar que se sente nas palmas dos pés nas praias do Algarve é, para mim, terrível.

Quando descobri as piscinas naturais de Santa Cruz das Flores, no início dos anos 80, compreendi o que era a perfeição. Uma distância curta entre o espaço em que se está a falar com os amigos, a ler um livro ou simplesmente a ganhar vitamina D e a água salgada cheia de vida natural. Que podia ser melhor?

No caso das “piscinas dos franceses”, como alguns lhes chamavam nesse tempo, havia ainda a sublime virtude de haver várias “poças”. Umas eram mais acessíveis e com muita alegria e confusão e outras, mais recatadas, onde podia, calmamente, ficar a olhar para um polvo que se movimentava pelo fundo, temer uma moreia que “sorria” no comando do seu buraco, observar os cardumes de salemas pastando ou, simplesmente, ficar hipnotizado com o suave dançar das algas ao sabor da quase inexistente corrente.

Por fora de todas as poças, o mar aberto. A água mais fria, selvagem e com um azul profundo até perder de vista preenchia a minha curiosidade, mas fugia do meu alcance de miúdo. Queria compreender, mas ainda não estava preparado para me aventurar naquelas profundezas e ondulação.

Uma vez, um tubarão aproximou-se e corremos todos por cima das pedras até o podermos ver com detalhe. Nadava calmamente ignorando ostensivamente os nossos olhos fascinados. Aproximou-se, afastou-se… movimentando lentamente o seu corpo majestoso pelo cimo da água estanhada do Oceano Atlântico. Ficámos o resto da tarde a contar histórias mais ou menos verídicas de outros tubarões que tinham comido pessoas inteiras e de uma só vez!

Nos dias de tempestade, com outros amigos igualmente mínimos como eu, descíamos parte das escadas e ficávamos siderados a olhar para a vagas que se quebravam nas pedras de fora e espumavam até perto de nós. A razão do movimento da água, a importância do arejamento para a vida subaquática e a abrasão marinha eram tudo mistérios que viria a desvendar mais tarde, mas as perguntas foram-me ali plantadas.

Mais do que na Universidade, tornei-me biólogo-marinho nas piscinas naturais de Santa Cruz das Flores. Na Universidade aprendi o nome das espécies, os conceitos que unem os processos moleculares até aos sistemas complexos, o funcionamento dos ecossistemas e tantas outras coisas... No entanto, vendo em retrospetiva, muito do que aprendi limitou-se a preencher os espaços de curiosidade que cultivei naquelas maravilhosas poças.

Ao viajar por esse mundo, ao pisar outros sítios esplendorosos, ao falar com amigos e compreendendo as suas maravilhosas experiências, volto sempre às piscinas naturais de Santa Cruz das Flores como um dos pontos de comparação para a perfeição. Ali entendi o valor da contemplação em paz, compreendi a importância da tranquilidade para a boa reflexão e descobri a beleza da amizade juvenil e sorridente.

Ao longo do tempo, propositadamente, tenho evitado voltar a meter o pé nas piscinas naturais de Santa Cruz das Flores. Desde os anos 90 que não dou ali um mergulho, apesar de ir às Flores regularmente. Acredito que a memória dos espaços é também resultado do tempo cronológico. Eu não sou o mesmo e aquele espaço, com as melhorias que, entretanto, lhe fizeram, não é o mesmo. Prefiro manter a memória daquilo que ambos éramos nos anos 80.

Quando regresso a Santa Cruz, passo na marginal, olho lá para baixo, para as piscinas, e deixo-me levar para outros tempos, quando corríamos pelo Código desde o Hotel dos franceses até às Piscinas, como escolhíamos um sítio para deixar as tolhas e nos mandávamos para dentro de água, como nadávamos, mergulhávamos, brincávamos e nos cansávamos. À noite, depois de tudo isto, caía imediatamente num sono profundo do qual só regressava com o despontar do Sol e a certeza que iria ter início mais um dia de enormes aventuras!