sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Voo do Cagarro - 13: Os negacionistas

 

Vacina!
Foto: F Cardigos


Ainda antes da pandemia de covid-19 já havia algumas pessoas anti-vacinas. Umas por razões religiosas, outras por não acreditarem na ciência e outras por considerarem que o risco não compensa. A este grupo de pessoas chama-se, habitualmente, “os negacionistas”.

Acontece que, com muitas vacinas, não se pretende apenas limitar a probabilidade de apanhar uma determinada doença, mas também evitar que ela se propague. A vacina para o tétano evita contrair uma doença, mas a vacina contra a varíola, enquanto existiu, pretendeu e conseguiu evitar a propagação da doença até à sua erradicação. A varíola, uma terrível doença, deixou de existir porque houve uma ação global de vacinação bem-sucedida. Tal como aconteceu com a varíola, também a peste bovina, neste caso uma doença animal, desapareceu vítima das vacinas.

Ou seja, ao tomar uma vacina, para além de me estar a proteger, eu estou a proteger a minha comunidade. É por estas razões que, por muito que custe a alguns religiosos, negacionistas ou egoístas, a verdade é que há um programa nacional de vacinação que inclui diversas vacinas obrigatórias.

As pessoas que tentam recusar as vacinas por causa do risco têm razão num ponto: ao tomar uma vacina, eu estou a arriscar de forma infinitesimal a minha saúde. Mas esquecem-se que, ao mesmo tempo, ao tomar uma vacina, eu estou a proteger toda a comunidade. Ao recusar algumas vacinas coloca-se em risco a saúde individual de forma igualmente infinitesimal (beneficiando da proteção que me é dada por haver uma maioria da população vacinada) e coloco todos os outros em risco.

Graças a existir uma enorme maioria de seres humanos sensatos, há doenças muitíssimo perigosas que praticamente desapareceram. Assim, não espanta que, entre as nossas obrigações sociais, as vacinas tenham uma relevância particular. Socialmente, há algumas coisas que são obrigatórias e estão prescritas na lei e de uma forma razoavelmente universal: dar acesso à educação aos jovens, pagar impostos e cumprir o respetivo programa nacional de vacinação.

O vírus presente na mais recente pandemia pode ser letal, propaga-se rapidamente e muta com facilidade. Ou seja, apenas se vacinarmos rapidamente uma elevada proporção da comunidade global poderemos deter o vírus.

Portugal é um bom aluno e estamos a usufruir disso, mas pouco poderemos resistir se o resto do mundo não fizer o seu trabalho. O vírus irá mutar e voltará a entrar no nosso país com outro código genético, capaz de escapar à eficiência das vacinas atuais. Isto significa que é crucial que o resto do mundo faça a sua parte, vacinando a esmagadora maioria da população.

Admito que estou muito cansado de usar máscara, limitar a minha mobilidade e manter o distanciamento social por causa da pandemia. Angustia-me ver os negócios, como restaurantes, cafés, hotéis e transportes a falir. Aflige-me ver os artistas a desesperarem e a nossa cultura a ficar mais pobre e fechada. Sofro com o cansaço do nosso pessoal de saúde. Ficava muito mais feliz se isto acabasse. Aposto que, como eu, quase todos nós pensamos o mesmo.

Levar uma pica não é assim tão complicado e protege-nos a todos. Há que explicar isso aos negacionistas por essa Europa fora.


sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Voo do Cagarro - 12: A Boa Disposição

"Veja só, este cara anda no meio do mar a ver peixinho!"
Foto: F Cardigos
 

Advertência: neste artigo escrevo palavras de forma distorcida para tentar captar os belíssimos sotaques brasileiros dos meus interlocutores. As minhas desculpas aos puristas da língua portuguesa escrita.

Fui cortar o cabelo. Nada de especial até aqui. 

Ao entrar, notei que os dois barbeiros de serviço estavam animados. Falavam um com o outro e com um cliente que terminava o corte. Comentando o acidente de avião que, infelizmente, levou a vida da cantora nordestina Marília Mendonça, listavam as celebridades brasileiras que morreram em acidentes de avião. Apesar de o tema ser sério, tentavam realçar as virtudes de cada uma das pessoas, quase como se fosse uma homenagem da vida.

“Como cê quére o corrte?”. “O senhor é o artista, esteja à vontade”. “Mas querr voltá cá daqui a um meis ou só no Natau? É melhore antis ou então vai terr de trazer prenda, né?”

Não entendi porquê, mas a conversa derivou para o roubo de fruta. “Ó ménino qui r
ouba fruta não é ladrão. Ous ménino podem tirar fruta do quintau do vizinho. Não é roubo, não. Nem é probrema.” Ao que o meu barbeiro acrescentou, “excepetô se cê é o vizinho, né?” Riram-se ambos sem contenção e eu fui atrás.

Ao entrar um novo cliente, loiro como o ouro do El Dorado e olhos de azul céu, o barbeiro número dois diz “Welcómi, Sari”. A resposta num português escorreito, “Boa tarde.”, deixou-o desconcertado, mas não o meu barbeiro, que brincou de imediato, acentuando o sotaque: “Ingrêis perrfeito, mas inútiu. Totaumente inútiu. Tanta educação irrelêvante. Nou use!”. “Valeu à tentativa, mê ‘rmão”, tentou ripostar o outro.

No meio da conversa que estava a ter comigo, o meu barbeiro grita para o outro “Veja só, este cara anda no meio do mar a ver peixinho!”. Já tinha ouvido muitas descrições simplificadas para biólogo marinho, mas esta foi particularmente carinhosa. O outro respondeu “Nossa, isso deve ser mesmo boummm! O oceano é tão grande, não deve ter falta de trabalho!”.

Os jovens brasileiros estão a ocupar os empregos privados de serviço direto ao cliente em Lisboa. Ao entrar num qualquer café, tenho a sensação que é mais fácil encontrar um brasileiro do que um português. Talvez esteja a exagerar, mas a probabilidade de ouvir um sotaque português do outro lado do Atlântico é tão elevada que já fico com a dúvida. É um indicador.

Obviamente, isso acontece porque os brasileiros e as brasileiras estão dispostos a desempenhar essas funções pelo pagamento que está a ser oferecido e, na minha opinião, é também pela boa onda que transmitem. Hoje, no barbeiro, senti-me mesmo bem.

Ao terminar o corte, pergunto “ficou bom?”. Um deles diz: “Pô! Com esse cabelo, ninguém lhe pega. Nem a NASA!” e o outro complementa: “A Dona Rute [quem será a D. Rute, pergunto-me] nem vai deixá cê saíre di casa”. Já não sei qual deles, “Uhau, me queimei. Cê tá fogo!”, “Cara, vamos saí daqui k’isto vai encher de pretendente” e continuaram…