sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Crónicas de Bruxelas - 86: Ponto de situação sobre o orçamento de longo prazo da União Europeia

 
Conselho da União Europeia, edifícios Justus Lipsius e Europa.
Foto: F Cardigos

O processo que leva à determinação do orçamento de longo prazo da União Europeia é longo, demorado e, por vezes, segue percursos complexos, sinuosos e inesperados. No entanto, é um processo transparente, permitindo que qualquer cidadão o acompanhe em detalhe.

Em termos muito simplificados, tal como acontece com a maioria dos processos legislativos da União Europeia, o orçamento é proposto pela Comissão, discutido pelos colegisladores, ou seja, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, e adotado quando chegam a um entendimento. Ou seja, ainda mais simplificadamente, a Comissão Europeia propõe e o Parlamento e o Conselho decidem. Reforço a sequência do processo legal para que seja claro o ponto de situação que a seguir exponho.

A Comissão Europeia apresentou a sua proposta de orçamento plurianual para o período 2021 a 2027 em 2018. Esta proposta era constituída por diversos documentos. Por um lado, estão o orçamento geral e os recursos próprios, que obedecem ao processo legislativo especial, e, por outro lado, as declinações destes dois em diversos regulamentos conforme a temática, que obedecem ao processo legislativo ordinário. A diferença entre um e outro processo legislativo jaz na decisão. Sem entrar em detalhes, no “processo especial”, o Parlamento Europeu apenas pode aceitar ou rejeitar e o Conselho tem de decidir por unanimidade, por vezes tendo de recorrer mesmo aos parlamentos nacionais. No “processo ordinário”, o Parlamento e o Conselho estão em pé de igualdade na capacidade de alteração dos conteúdos propostos pela Comissão.

Desde 2018, houve um desafio adicional resultante da pandemia de covid-19 que resultou em diversas alterações da proposta da Comissão e o reforço do orçamento com 750 mil milhões de euros oriundos do “Next Generation EU”, o instrumento da recuperação da União Europeia pós-covid-19. Por falar em números gigantes, o orçamento base tem um valor de 1,1 biliões de euros. Ou seja, no total, o valor é de quase 2 biliões de euros a serem despendidos nos sete anos de duração do quadro financeiro.

O orçamento e cada uma das suas declinações, tanto por resultado da pandemia como por consequência das discussões internas e externas, tem sido alterado em pequenos e grandes detalhes. Por exemplo, um dos problemas identificados inicialmente na proposta da Comissão tinha implicações dramáticas para as regiões ultraperiféricas (RUP). Segundo a proposta da Comissão, integrada numa das tais declinações, no caso o Regulamento das Disposições Comuns, as RUP passariam a fazer um esforço próprio de 30% para poderem aceder aos fundos estruturais e de investimento, como o FEDER e o FSE, entre outros. Se parece generoso um cofinanciamento de 70% a fundo perdido, não é menos verdade que o cofinanciamento anterior era de 85%. Esta passagem de 85 para 70% implicava a duplicação do esforço próprio (de 15 para 30%). Felizmente, os colegisladores entenderam os argumentos apresentados pelas forças vivas das RUP e reverteram a proposta da Comissão.

Portanto, com mais de dois anos de antecedência, a Comissão Europeia fez um conjunto de propostas que, desde então, têm estado em discussão dentro-portas por parte de cada um dos dois colegisladores, para tomarem posição, e, mais recentemente, fora-portas nos chamados trílogos. Os trílogos são discussões informais entre os colegisladores em presença da Comissão Europeia.

Apesar de ser uma discussão informal, os colegisladores levam o resultado destas discussões para as respetivas instituições que, quase invariavelmente, o aceitam, tornando-se assim uma decisão formal e legal, pronta para publicação em jornal oficial.

Evidentemente, a forma como estas propostas saem da Comissão e entram no Parlamento e no Conselho, como aí são discutidas internamente, como saem para os trílogos, como são realizadas as discussões em trílogo, como regressam aos colegisladores e como são aprovadas formalmente é fascinante e, mais importante, descortinável por qualquer cidadão.

Neste processo, pós apresentação da proposta da Comissão Europeia, os Açores e as restantes regiões ultraperiféricas conseguiram algumas vitórias interessantes. Por exemplo, para os fundos de cooperação entre regiões (interreg) há agora uma verba de 270 milhões de euros para uso exclusivo das RUP, o que poderá resultar em 2 milhões por ano para os Açores, ficando apenas dependentes das forças vivas produzirem bons projectos que captem estes recursos. Há que estar atentos aos convites à apresentação de propostas que a Comissão irá publicar e concorrer com competência.

No POSEI, um programa dedicado à agricultura das RUP, após uma luta intensa e demorada, conseguiu-se reverter a decisão da Comissão, que propunha um corte avultado. Com isso, os agricultores ficaram a ganhar mais 3 milhões de euros por ano, aumentando a segurança alimentar de todos os açorianos.

No REACT-EU, a iniciativa de assistência à recuperação e para a coesão dos territórios da Europa, por proposta da Comissão, após sensibilizada pelas RUP, foi reservada uma verba de 30 euros per capita para estas regiões. Ou seja, para os Açores serão cerca de 7 milhões de euros.

Para os assuntos do mar, pescas e aquacultura, ao contrário de todas as restantes regiões, as RUP conseguiram manter o orçamento anterior. Isso significará 102 milhões de euros que, a seu tempo, serão repartidos entre os Açores e a Madeira.

Acresce ao exposto atrás que os Açores, tal como as restantes RUP, para além das verbas que nos estão reservadas, podem beneficiar ou concorrer em pé de igualdade com as restantes regiões pelas restantes verbas dos tais quase dois biliões de euros para sete anos. Com esta complementaridade entre as verbas adstritas e restantes cumpre-se o exposto no artigo 349 do Tratado de Funcionamento da União Europeia que identifica e protege as RUP.

A instituição e implementação do conceito RUP, que é defendido em primeira linha pela Conferência dos Presidentes das RUP, está a ter justas consequências para os territórios mais longínquos e isolados na periferia europeia. Durante os próximos doze meses, a presidência desta Conferência é exercida pelo Presidente do Governo dos Açores e, durante o próximo semestre, em sincronia com a presidência portuguesa da União Europeia. Por tudo isto, a Região estará em boa posição para ajudar a explorar e a expandir ainda mais as oportunidades abertas pelo artigo 349.

No total, haverá várias centenas de milhões de euros a fluir anualmente entre a União Europeia e a Região Autónoma dos Açores. Estas verbas serão maioritariamente oriundas do FEDER, FSE, FEADER e POSEI. Serão verbas elevadíssimas e que exigirão responsabilidade na utilização, mas, ao mesmo tempo, são uma extraordinária oportunidade para construir um futuro próspero, justo, solidário e ambientalmente adequado.

Para que tudo isto aconteça é necessário que o Conselho da União Europeia desbloqueie o orçamento. O único entrave para que isso aconteça é a posição da Hungria e da Polónia que, quando redijo este artigo, não aceitam que a disponibilização dos recursos europeus esteja dependente do respeito das regras de Estado de Direito.

As verbas em causa são importantes e dariam um enorme impulso aos Açores. No entanto, como acontece com a esmagadora maioria dos Estados e Regiões da União Europeia, não estou disposto a abdicar da liberdade de expressão e da independência da justiça para aceder a essas verbas. Os nossos antepassados lutaram demasiado para chegarmos até aqui e não será o dinheiro a comprar o seu esforço e a nossa liberdade.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Crónicas de Bruxelas - 85: A experiência Eslovaca

Paisagem eslovaca.
Foto: F Cardigos

Apesar de noticiada, passou relativamente desapercebida a recente experiência eslovaca para travar o progresso da pandemia de covid-19. Este país decidiu testar grande parte da população de cerca de cinco milhões de habitantes em dois dias, com uma semana de intervalo. Na sequência dos testes, as cerca de 50 mil pessoas que acusaram positivo foram isoladas travando efetivamente o progresso da pandemia. Os que optaram por não fazer o teste, terão de permanecer os 10 dias seguintes em casa.

Obviamente, este não é um procedimento com 100% de eficácia. Todas as pessoas que já estão infetadas e cuja incubação ainda não atingiu o nível mínimo de deteção terão resultado negativo e, na realidade, são portadoras. Adicionalmente, as pessoas que entrarem no país depois dos dois períodos de testes e forem portadoras do vírus poderão transmitir a doença. No entanto, apesar destas limitações, este é um procedimento com resultados expectáveis que atenuarão o efeito da segunda vaga, permitirão seguir e debelar cadeias ativas e será suficiente para evitar o confinamento que vivemos nos restantes países europeus. Com este passo, a Eslováquia irá manter o país plenamente ativo. 

Evidentemente, o esforço para realizar estes dois períodos de testes obrigou a colocar no terreno uma enorme estrutura que incluiu, para se ter uma ideia da dimensão, cinco mil centros de teste. Foi necessária uma mobilização sem precedentes que incluiu pessoal médico, voluntários e até as forças armadas. O esforço foi elevado e oneroso. Segundo li na comunicação social, o orçamento previsto era de 75 milhões de euros. Mas será, na realidade, um valor elevado? 

É muito dinheiro, certamente. No entanto, fazendo uma contas muito por alto, tentei compreender quanto custa um confinamento. Não é fácil… Para além das questões financeiras diretas e económicas de longo prazo, há uma indubitável e não calculável pegada social. 

O impacto nas pessoas que não têm acesso a cuidados de saúde normais por causa do confinamento e do esgotar das capacidades hospitalares, o desemprego e o impacto psicológico resultante da limitação de contactos pessoais é, indiscutivelmente, elevado e não mensurável. 

Em termos puramente financeiros não se sabe bem qual é o impacto, mas há alguns dados. Por exemplo, a EDP reduziu o negócio em Portugal e no Brasil na ordem dos cem milhões de euros com a primeira vaga. A Alemanha deduziu que o impacto das novas restrições provocadas pelo segundo confinamento deve ascender a 19 mil milhões de euros. Fazendo umas rápidas contas de merceeiro com base na proporcionalidade à população e tendo como ponto de partida os cálculos para a Alemanha, podemos concluir com uma razoável margem de erro que um segundo confinamento na Eslováquia teria um impacto financeiro na ordem dos mil milhões de euros. Como nos limitamos à componente financeira, obtemos um valor calculado por baixo. Ou seja, no mínimo e retirado o investimento mencionado atrás, o saldo positivo da experiência eslovaca, caso resulte, é de 925 milhões de euros. 

São 925 milhões de euros a que se somam a saúde, os empregos e a sanidade psicológica de muitos. Vale a pena arriscar? Sim, sem pestanejar. 


Notas:

https://pt.euronews.com/2020/11/01/eslovaquia-faz-testes-rapidos-a-toda-a-populacao

https://www.bbc.com/portuguese/geral-53204453

https://observador.pt/2020/09/04/covid-19-teve-impacto-direto-nas-contas-edp-superior-a-100-milhoes-a-maioria-no-brasil/

https://expresso.pt/economia/2020-11-01-Covid-19-Novas-restricoes-na-Alemanha-terao-custos-de-19-mil-milhoes-de-euros