sexta-feira, 31 de março de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 46: A minha Balada da neve

 

 
Dia de neve no Luxemburgo.
Foto: F Cardigos

Há belíssimas sensações que são impossíveis de imaginar até que nos acontecem. Uma dessas pequenas maravilhas é observar o cair da neve.

O contraste entre a aconchegante e bucólica neve que cai lá fora com a revolta que o poeta sente perante o sofrimento dos mais frágeis é o tema da “Balada da Neve” de Augusto Gil. Não é o tema da minha Balada, possivelmente por não ter vivido os rigores do inverno na Guarda do início do século XX.

Apenas quando comecei a trabalhar na Bélgica, tive oportunidade de ver neve a cair como deve ser. Era tão ignorante no tópico que julgava que a nevinha que tinha visto cair em Lisboa e no Faial, nos mais rigorosos invernos, tinham algum significado. Nada mais errado. Já era adulto bem entrado quando vi neve a cair com a dignidade desse nome.

Lembro-me como se fosse hoje. Era noite cerrada e, depois de mais um dia de trabalho que acabou tarde demais, decidi ir para casa a pé. Os cinco quilómetros de frio estavam mesmo a calhar para meter ideias em dia e desmultiplicar a velocidade a que ainda corria o cérebro.

Ao virar uma esquina, comecei a ver a neve a chegar-se entre mim e o candeeiro de rua mais próximo. Silenciosos, elegantes, mas convictamente, os flocos de neve iam-se deixando cair à minha frente. Primeiro poucos, depois mais, mas nunca demais. Tão brancos, alvos com distinção. Desejei não chegar a casa. 

Apesar do frio, deixei a janela do quarto aberta para ouvir o silêncio da neve a cair. De manhã, ainda caíram mais uns flocos, como que a garantir que eu os via. Sim, certamente eram para mim, visto estar a gostar tanto. Pareceu-me justo.

No dia seguinte, alguns centímetros de neve cobriam todas as superfícies que não tinham sido anteriormente polvilhadas com sal. Em Bruxelas, é obrigatório os proprietários colocarem sal nos passeios em frente de suas casas. A Administração Pública trata das ruas. Portanto, restam os carros, os jardins, as árvores e os telhados. Todos cheios de neve, como uma cobertura de açúcar na história de Hansel e Gretel. 

Desde então, ao contrário da maioria dos meus colegas e amigos, desejo que o inverno seja frio e terrível. Apelo aos ventos e tempestades para emprestarem o seu tempo a onde quer que eu esteja e em que, pelo menos num dos dias, haja neve.

Amaldiçoo as alterações climáticas por tudo, mas também por me estarem a roubar a probabilidade de ter invernos frios. Não é sempre, até porque também adoro o calor e o chamado bom tempo, mas, agora que a conheço, eu preciso de uns dias de neve por ano.

Este ano, no Luxemburgo, acordei e levantei-me de um só salto quando me disseram que estava a nevar. Fui para a janela ver, contemplar, fotografar e filmar. Vesti-me convenientemente e peguei na bicicleta.

Ninguém me tinha explicado. Ninguém me tinha explicado como era bonito andar de bicicleta no meio da neve. Os pneus de inverno, com piso de pequenos pinos em borracha, aconchegavam-se na neve permitindo um fluir razoavelmente rápido e seguro. Mas mais do que isso, tão confortável... Era tão aconchegante que pensei poder adormecer em cima da bicicleta.

Ninguém me tinha explicado como era maravilhoso ver os flocos a cair à minha frente e, alguns, a agarrarem-se ao casaco. Absolutamente fantástico. E assim fui, nos 8 km que separam a minha casa do trabalho, a ver a neve a flutuar até ao chão, a tocar-me e a dar-me memórias de suavidade e sincronia com o universo que nunca esquecerei.

Os Açores são perfeitos, mas, se pudesse mudar uma coisa, era dar ao arquipélago uma semana de intensa neve por ano. Passariam de perfeitos a sublimes.

Esta é a minha Balada da neve.


Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da União Europeia.

sexta-feira, 3 de março de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 45: Pessoas admiráveis!

Este artigo foi-me suscitado pela minha filha. Um destes dias enviou-me uma mensagem sugerindo que ouvisse um episódio do podcast “Vamos todos morrer” (Antena 3) em que se falava de Miguel de Arriaga. Não, não me enganei, não é “Manuel” de Arriaga, mas sim “Miguel”.

Para quem não sabe, tal como eu não sabia, Miguel de Arriaga (1776-1824) é um muy ilustre Fayalense que se destacou enquanto ouvidor e diplomata em Macau. Vale mesmo a pena ler a história deste familiar daquele que viria a ser o primeiro Presidente da República eleito de Portugal. Uma história que dava um filme e dos bons!

No entanto, aquilo que me suscitou a mensagem da filhota não era tanto a contemplação da ancestralidade da Ilha do Faial, que admiro sem reservas, mas sim enaltecer o percurso de algumas pessoas que sinto poderem servir de exemplo para os meus filhos. Colocaria Miguel de Arriaga entre eles? Sim, e com mais entusiasmo do que Manuel de Arriaga (1840-1917).

Aproveitando o seu conhecimento histórico, perguntei à minha família próxima quem seriam para eles as pessoas que se excederam de forma inesperada e muito positiva para o bem da humanidade. Pedi-lhes para excluírem os políticos, porque desses é esperada essa positividade, mesmo que, por vezes, nos desiludam. Portanto, as pessoas que irei mencionar daqui em diante são o somatório da minha pesquisa assumidamente contaminada pelo que me disseram os meus familiares. Até para que a aproximação histórica fique mais evidente, apresento por ordem razoavelmente cronológica.

Siddhartha Gautama (ca. 563 a.C. - 483 a.C.) foi um príncipe que abdicou de todas as suas regalias e riquezas para fazer um percurso de “iluminação” interior que incluiu preocupações com a erradicação do sofrimento de humanos e animais. Buda, nome pelo qual é hoje mais conhecido, inspirou a religião budista e muitos dos escritos que são a pedra basilar desse movimento que tem como ponto fundamental a busca individual da perfeição humanista.

Mesmo sem ser necessário recorrer ao seu estatuto de divindade, não tenho dúvidas sobre a importância de Jesus Cristo (ca. 4 a.C. - 30/33 d.C.) na transformação do mundo para melhor. O seu exemplo dá permanentemente alento e esperança a tantos que sofrem. Os seus discursos, a sua visão e a sua ação proporcionaram inspiração ao melhor que artistas, políticos e religiosos fizeram desde o seu tempo enquanto entidade terrena. Aquilo que de bom possui o chamado mundo ocidental tem como ponto de charneira a vida de Jesus Cristo traduzida pelas diversas religiões monoteístas e igrejas cristãs ou, mais a meu gosto, pelos trabalhos científicos que o estudam.

Os quatro Grandes compositores transformaram a música, serão eternamente ouvidos enquanto seres humanos existirem e são imediatamente reconhecidos apenas por um único nome. Vivaldi (1678-1741), Bach (1685-1750), Mozart (1756-1791) e Beethoven (1770-1827) viveram e protagonizaram a transição do período barroco para o período romântico. Trouxeram ao mundo composições como os concertos “As Quatro Estações”, o coral “Jesus Alegria dos Homens”, a missa fúnebre ou Requiem de Mozart e o “Hino à Alegria”, apenas para dar um único exemplo para cada.

O importantíssimo filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) pediu para dizerem a Carl Linnaeus (1707-1778) que “não conhecia maior homem na Terra”. Linnaeus foi um botânico, zoólogo, taxonomista e médico sueco. O seu trabalho mais importante culminou no estabelecimento da nomenclatura binominal que ainda hoje é usada para designar todos os organismos vivos e de forma única em todo o planeta. Goethe (1749-1832), talvez o maior génio de todos os tempos e também político, admitiu que foi fortemente influenciado por Linnaeus.

A fundadora da enfermagem moderna, Florence Nightingale (1820-1910), foi, antes disso, uma profissional da estatística com trabalho reconhecido. Ainda hoje, algumas das ferramentas usadas para visualizar informação numérica resultam dos seus trabalhos pioneiros. Mas foram as suas ações na sistematização do auxílio a feridos e doentes e a sua contribuição para o empoderamento das mulheres que transformaram o mundo para melhor. Uma das mais prestigiadas condecorações da Cruz Vermelha Internacional tem o seu nome.

A Cruz Vermelha, essa impressionante e imprescindível organização de apoio humanitário, nasceu da visão Henry Dunant (1828-1910). O empresário suíço, motivado pelo sofrimento que testemunhou da guerra, dedicou parte da sua vida a esta causa e, por isso, mereceu o Prémio Nobel e merece a minha admiração.

Marie Skłodowska-Curie (1867-1934) foi uma genial cientista nas áreas da física e da química. Nasceu na Polónia ocupada pela Rússia e naturalizou-se francesa. Com o seu marido, Pierre Currie (1859-1906), protagonizou extraordinários avanços no estudo e aplicação da radiação e descobriu os elementos químicos Polónio (denominado em homenagem à sua terra natal) e Rádio. Foi a primeira mulher a receber um prémio Nobel e a primeira pessoa a receber este reconhecimento por duas vezes. Entre muitas outras posições, foi também diretora do serviço de radiologia da Cruz Vermelha.

Albert Schweitzer (1875-1965) foi um pastor luterano que se destacou como teólogo, organista, musicólogo, escritor, humanista, filósofo e médico. Ficou mundialmente conhecido por ter fundado, financiado e trabalhado num hospital em Lambaréné (Gabão). Foi agraciado pelos seus trabalhos filosóficos sobre ética. É da sua pena, “A Ética nada mais é do que a Reverência pela Vida. A reverência pela vida proporciona-me o princípio fundamental de moralidade, ou seja, que o bem consiste em manter, auxiliar e melhorar a vida, e que destruir, prejudicar ou impedir a vida é mau.” Era primo de Jean-Paul Sartre (1905-1980), outro enorme ser humano, com o qual civilizadamente discordava. A ambos foi atribuído o prémio Nobel: Albert Schweitzer aceitou e Jean-Paul Sartre recusou.

Por princípio, devemos cumprir as ordens laborais dadas pelos superiores hierárquicos, mesmo que com isso não concordemos. No entanto, em casos extremos, é necessário ter a clarividência e a coragem de dizer “não”. Foi isso que fez Aristides de Sousa Mendes (1885-1954), um dos diplomatas portugueses que desobedeceu ao seu Governo durante a segunda grande guerra e, com isso, salvou milhares de judeus e outros refugiados. Entre outras homenagens, foi agraciado como um dos “Justos entre as nações”.

Flora Solomon (1895-1984) foi aquilo que hoje poderíamos chamar de mulher multifacetada. Bielorrussa, nascida numa família de largos recursos, perdeu a fortuna com a revolução de 1917, o que a obrigou a trabalhar em Inglaterra onde, entretanto, se tinha radicado. Organizou a receção de crianças refugiadas que chegavam a Londres nos anos 30. Como responsável pelo bem-estar dos funcionários numa grande cadeia de venda a retalho, influenciou a criação do Serviço Nacional de Saúde britânico. Num campo totalmente diverso, descobriu e expôs um dos mais famigerados agentes-secretos duplos do Reino Unido. Para além de tudo isso, ficou também na História por ser a mãe de Peter Benenson (1921-2005), fundador da Amnistia Internacional.

Pela enormíssima consideração que lhe tenho enquanto ativista pelos direitos humanos, quebro a minha regra e mencionarei um político. Nelson Mandela (1918-2013) foi um resistente pacifista anti-apartheid e liderou a transição de um país então fortemente segregacionista para uma África do Sul igualitária e reconciliada. O seu exemplo e a sua extraordinária sabedoria iluminam as pessoas de bem.

Obviamente e felizmente, esta não é uma lista exaustiva. Apenas por escrever os nomes atrás, lembrei-me de tantos outros, incluindo filósofos e cientistas da Grécia antiga, escritores romanos, pensadores asiáticos, exploradores dos sete mares, incluindo alguns portugueses, e até desportistas... No entanto, este é um conjunto de pessoas de cujo exemplo e por razões diferentes, eu gostaria que os meus filhos se lembrassem quando têm de tomar decisões importantes. Todas estas pessoas tornaram o mundo diferente e, na minha opinião, para melhor.

 

Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da União Europeia.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

O Voo do Cagarro - 42: O futuro tem tons de azul

Navio de investigação científica "Arquipélago".
Foto: F Cardigos

Ao ler, em novembro, uma nota de imprensa sobre o sector das algas e, hoje, o 2022 Blue Economy Report, ambos responsabilidade da Comissão Europeia, fiquei ainda mais convicto que a sua aposta na economia do mar é séria e potencialmente consequente. Na nota, a Comissão explicava a importância das algas como alternativa e complemento à agricultura tradicional e como poderá ser relevante para a captura e diminuição das emissões de gases com efeito de estufa, como são os casos do Dióxido de Carbono e do Metano que causam acidificação, e regenerar o oceano e os mares através da remoção de nutrientes que causam eutrofização.
Sigo as temáticas relacionadas com o uso sustentável do Oceano desde os finais dos anos 90. Entre regulamentos, diretivas, linhas de financiamento e comunicações, a Comissão Europeia tem traçado um caminho seguro.
Em contraste, este entusiasmo da Comissão não foi imediatamente acompanhado por investimentos privados equivalentes. Houve uma falha que inibia a adesão e a utilização das oportunidades sistematicamente abertas. Os orçamentos, que são sempre mais elevados nos investimentos marítimos, o risco, que é exponenciado pela física, química e biologia marinhas, e o desconhecimento do sector financeiro relativamente ao mar foram, durante anos, responsáveis por esta inibição.
Entretanto, algo mudou e para melhor. O sistemático estudo científico do mar, onde o Instituto Okeanos da Universidade dos Açores teve um papel essencial, e os projetos de literacia dos oceanos retiraram parte das relutâncias relacionadas com a falta de conhecimento e o receio a ele associado. Nasciam assim as primeiras empresas emanadas de projetos de investigação (“spin-offs”, em inglês). De seguida, com a criação de fundos específicos e aceleradores de investimento, as administrações regionais e central foram cruciais para gerar dezenas de novas pequenas empresas (“start-ups”, em inglês).
Estes passos intermédios foram essenciais para que, mais recentemente, surgissem diversos fundos de capitais de risco dedicados ao mar que erodiram substancialmente a barreira que se colocava aos investidores. Os fundos de capitais de risco são uma forma de investir mais dinâmica e versátil, muito alicerçada no conhecimento e apostando numa relação próxima entre o financiador e o empreendedor.
Hoje, em Portugal e na generalidade da União Europeia, começam a surgir os mais imaginativos projetos que usam todas as características do Oceano para produzir alimento seguro e de qualidade (seja através da pesca sustentável ou da aquacultura responsável), medicamentos inovadores, transportes de carga mais eficazes, turismo marinho mais informado e energia limpa. Por razões profissionais, tive a oportunidade de acompanhar alguns dos visionários e visionárias que se espalham pelas ilhas e pelas costas Sul e Ocidental de Portugal e reconheço que a economia azul está bem viva!
Não quero destacar qualquer dos fundos que incluem capitais de risco nem os empresários que lideram esses investimentos, mas uma pesquisa sumária na internet ou a consulta das páginas da Direção-Geral de Política do Mar demonstrarão o benigno explodir de muitas dessas iniciativas. Por exemplo, sabia que há soluções no mar da Ponta de Sagres com potencial para a diminuição da dor crónica? Sabia que há soluções portuguesas para a redução radical das emissões dos navios de cruzeiro?
Há um mundo novo e este está pintado de azul. Entre os diminutos e sobre-utilizados 92 mil quilómetros quadrados de terra que ocupa o nosso pequeno retângulo e suas ilhas ou o 1,7 milhão de quilómetros quadrados da Zona Económica Exclusiva de Portugal, onde parece ser mais sensato fazer investimentos de longo prazo? A estratégia foi bem montada, as soluções começam a despontar e eu sinto que o futuro tem cada vez mais tons de azul!

Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da União Europeia.