quinta-feira, 26 de junho de 2003

Os Problemas que não têm Solução

Existem problemas que não têm solução? Eventualmente existem, mas ainda não encontrei um único. Todos os desafios têm solução; pode ser mais ou menos ambiciosa, ou mais ou menos exequível, mas a solução está lá sempre. Pode ser uma solução simplista e com pouca possibilidade de sucesso a longo prazo ou uma solução complexa e robusta, mas o génio humano encontra sempre uma forma de passar à frente. O último problema sem solução foi o nó de Górdio que Alexandre Magno se encarregou de resolver. Não foi uma solução bonita, mas ficou feito. Quando se justifica uma inacção porque o problema não tem solução fica-me logo a “cheirar” a demagogia ou preguiça. E raramente há uma terceira via.

Esta introdução filosófica vem a respeito do que li no último número desta Revista sobre o Parque Marinho da Arrábida. De facto, à primeira vista, parecem inconciliáveis os pontos de vista dos utilizadores desta área. Devem “esfregar as mãos de contentamento” os políticos refugiando-se na aparente impossibilidade de consenso para, mais uma vez, nada fazer. É triste, mas não vejo outra solução. Um problema sem solução! Será assim? Será que o Parque Marinho da Arrábida vai continuar a ser delapidado e destruído porque os utilizadores se culpabilizam uns aos outros não assumindo as suas próprias responsabilidades, apontando o dedo hirto aos ausentes? É triste se assim for.

Evidentemente, agora está à vista, que o processo nasceu torto. Ao não incluir, de uma forma eficiente, todos os utilizadores no processo de decisão, os gestores da área (o Instituto para a Conservação da Natureza) colocaram-se numa posição muito desconfortável. As necessidades de gestão não são compreendidas pelos utilizadores (incluindo pescadores profissionais e lúdicos, mergulhadores e turistas) e não são abrangentes, deixando de fora alguns dos utilizadores indirectos (como os grandes poluidores). Outros legítimos interessados, os cientistas e os conservacionistas, sentem que o seu trabalho foi em vão e podem acabar por se alhear do futuro do Parque Marinho.

Existem dois modelos para preservar áreas que sejam, frágeis ou ricas do ponto de vista ambiental: o modelo “descendente” e o “ascendente” *. Passo a explicar: “descendente” é quando os políticos decidem e depois impõem a decisão aos utilizadores, “ascendente” é quando os utilizadores se entendem e os políticos limitam-se a colocar no papel o que já está acordado. Ambos têm vantagens e inconvenientes. A grande vantagem do modelo “descendente” é ser de rápida implementação, mas tem como duas grandes desvantagens o facto de não ser consensual, gerando descontentamentos violentos, e implicar um grande investimento em fiscalização. O modelo “ascendente” tem como grande vantagem a harmonia que causa na utilização dos bens comuns, mas como grandes desvantagens a morosidade na tomada de decisão e o investimento em reuniões de trabalho.

Com honrosas excepções, em Portugal, conseguimos conjugar o pior de ambos os modelos e, nitidamente, foi o que aconteceu até agora na Arrábida. Como exemplo destas duas honrosas excepções, posso ilustrar com a Reserva Natural do Estuário do Tejo, em que se aplicou o modelo “descendente”, apressado pela Ponte Vasco da Gama, ou, como exemplo do modelo “ascendente”, a Reserva Voluntária da Ilha do Corvo, em que os pescadores prescindiram de pescar numa determinada área para que o turismo subaquático se pudesse desenvolver.

Tirando os gestores prepotentes ou os políticos extremistas, todos preferem o modelo “ascendente”. A forma mais simples de aplicar este modelo participativo é tentar reunir todos os utilizadores e deixá-los propor o ordenamento que consideram mais adequado. Se se chegar a um consenso este é habitualmente forte, robusto, justo, adequado e, muito importante, respeitado.

Normalmente, nas primeiras reuniões são apenas identificados outros utilizadores que não estão presentes inicialmente, coligidos documentos sobre a área e identificados os riscos efragilidades. Num passo seguinte, são identificados os pontos de conflito. A seguir começam a debater-se as soluções para resolver os pontos de conflito. Normalmente este é um período difícil e que demora muito tempo a ultrapassar; pode mesmo passar um ano, mas é crucial. O gestor ou administrador da área deve abster-se de intervir, mas deverá estar atento, fornecendo os elementos necessários para uma discussão esclarecida e propor e facilitar os diversos encontros gerais ou parcelares. A postura mais adequada é reforçar a ideia que se não se atingir um consenso natural, a decisão será da administração. Normalmente, o “terror” das decisões políticas é tão elevado que os utilizadores acabam por encontrar as cedências mútuas adequadas para uma decisão consensual.

Não estou a inventar nada, estes modelos e aproximações já foram utilizados noutros locais com sucesso, a nós resta-nos aprender e aplicar. Este é mais problema que tem uma solução tão simples que até irrita andarmos às voltas. Há apenas que arregaçar as mangas, pôr “mãos à obra” e dar tempo para que as decisões de gestão possam ser maduras e responsáveis!

* do Inglês: “top down” e “bottom up”.

Para mais informação sobre as duas estratégias pode consultar o editorial de um número especial da Revista Parks dedicado às áreas marinhas protegidas: Kelleher, G. & C. Recchia(1998). Lessons from marine protected areas around the world. Parks, 8(2):1-4.


Publicado na coluna "Casa Alugada"