domingo, 29 de outubro de 2017

Crónicas de Bruxelas: 5 - Parlamentar, o jogo

Jogo "Parlamentar" a ser testado.

Respeitando o conselho médico, andava eu pela cidade de Bruxelas entretido entre a obtenção do número mínimo de passos obrigatórios por dia e a esperança de ser surpreendido por qualquer coisa, algo que aqui acontece com alguma frequência. Ok, não é Paris, Londres ou Nova Iorque, mas não deixa de ter muitas pessoas, uma enorme diversidade de culturas e “boa onda”, o que é metade da receita para a surpresa. Se hoje tinha esperança, não fiquei desiludido.
Ao passar por um dos parques emblemáticos da cidade de Bruxelas, o parque que foi edificado para celebrar os cinquenta anos deste jovem país (relembro que a Bélgica tem pouco mais de 180 anos), reparei num extenso conjunto de barraquinhas. Periodicamente, há neste parque eventos que vão desde a festa medieval até à mostra de produtos portugueses, passando por quase tudo o resto. No dia de hoje, o espaço estava ocupado pelo Festival de Jogos de Bruxelas. Havia dezenas e dezenas de representações de empresas de jogos de mesa ou jogos de sociedade, conforme preferirem. Os seus nomes davam para cobrir todas as preferências, mas gostei especialmente das edições “Le Droit de Perdre”. Expressa bem o único direito que um jogador tem. O jogador pode ter o mérito de ganhar, mas tem certamente o direito de perder!
Cada uma destas empresas representava, expunha, exemplificava e vendia de um a centenas de jogos. Por todo o lado havia mesas com tabuleiros e, nas cadeiras em volta, sentavam-se amigos, famílias, conhecidos e desconhecidos e mesmo alguns autores dos jogos. O ambiente era fantástico. Desde o tradicional xadrez, passando por jogos de sensibilização ambiental, como um jogo chamado “Fotossíntese”, ou outros complicadíssimos envolvendo casas, castelos, guerreiros exemplarmente pintados em tabuleiros gigantes e que eu não percebi como se jogavam…
Na maior das barraquinhas, já com tamanho suficiente para se lhe chamar pavilhão, havia um espaço para teste de novos jogos. Os autores estavam presentes com tabuleiros, fichas e cartazes, nitidamente preliminares daquilo que um dia será um novo jogo de mesa, e desafiavam os transeuntes a experimentar o seu protótipo. Segundo me explicaram é uma situação duplamente ganhadora porque o transeunte tem uma experiência totalmente nova e os autores podem afinar as regras, os desafios ou o design dos jogos. Parei por algum tempo junto de alguns destes protótipos e testemunhei a curiosidade daqueles que se submergiam nos “novos mundos” e os apontamentos que os autores iam registando nos blocos de notas. Funcionava!

Um destes novos jogos chamava-se “Parlamenteur”. “Não é possível”, pensei para com os meus botões… “um jogo sobre o Parlamento…”, sem notar à primeira no detalhe do final do nome. Abordei um dos autores e disse-lhe que era interessante terem feito um jogo sobre parlamentares e eu trabalhar precisamente num parlamento, “não estava à espera”. O autor, embaraçado, mas, ao mesmo tempo, divertido, respondeu-me que sabia que nem todos os parlamentares eram mentirosos! Apenas aí caí em mim e reparei que o nome do jogo era um trocadilho entre as palavras francesas “parlamentar” e “mentiroso”. Ele explicou-me que o jogo se apoiava na mecânica das alianças que se formam num parlamento para formar governo e fazer passar as leis para explicar como funciona a democracia e alertar para como pode ser corrompida. “É um jogo muito pedagógico e que pretende ajudar a formar cidadãos mais informados e atentos aos detalhes do jogo político”. Os transeuntes que estavam a experimentar o jogo pareciam empenhados na vitória dos seus partidos imaginários, tentando obter as necessárias maiorias. Pelas palavras e pelos maneirismos, pareceu-me que estes jogadores já estavam a dominar a arte de cativar pela abnegação dos argumentos e pelo altruísmo dos objectivos que vou vendo no Parlamento Europeu. Espero que o jogo saia depressa e uma coisa posso garantir, vão ter um cliente!

domingo, 15 de outubro de 2017

Crónicas de Bruxelas: 4 - Encontrei a Babilónia em Bruxelas

A panóplia de línguas que ouvimos constantemente em Bruxelas é absolutamente fascinante. Tanto por aproximação à nossa língua (italiano e castelhano), pelo seu exotismo (grego e alemão) ou por as ter aprendido na escola (inglês e francês), há sete línguas que consigo identificar facilmente, mas o mesmo não acontece com as outras 17 que se falam oficialmente no Parlamento Europeu. A estas, acrescentem as línguas não oficiais, as línguas dos visitantes e os dialectos de cada comunidade e, penso eu, facilmente compreenderão porque considero que encontrei a Babilónia em Bruxelas.
Uma viagem de elevador é uma extraordinária aventura. Começamos por tentar entender a língua de quem vai conversando e, depois, tentamos, pelos gestos e pelo gracejar, entender qual será o tema em causa. Por vezes, uma expressão comum, tipo "Cristiano Ronaldo", faz-nos adivinhar o sentido da discussão. No entanto, é muito habitual não entender nem o tema nem sequer vislumbrar a língua. Tenho tentado fazer associações musicais para, pelo menos, entender qual a área europeia. Gostava de perceber se estou a ouvir romeno ou croata, maltês ou gaélico ou outras do meu grupo das exóticas como o finlandês ou húngaro. Nada feito. Continuam a existir as línguas que identifico e as outras. E as outras são mesmo muitas...
Com esta complexidade linguística, facilmente se entende que tanto os intérpretes como os tradutores são imprescindíveis em todas as instituições europeias. Resultado da complexa e dificilmente explicável organização das Instituições Europeias, os tradutores estão colocados no Luxemburgo e, por isso, pouco convivemos. Apenas damos por eles quando encontramos um ou outro erro de tradução e temos de sugerir correcções.
Já com os intérpretes é bem diferente. Eles acompanham os trabalhos onde quer que estejam os deputados europeus, tal como nós, os assistentes parlamentares. Muitas vezes, damos as intervenções antecipadamente aos intérpretes para garantir uma boa transmissão da mensagem nas diferentes línguas e é frequente entregar-lhes documentos de contexto para preparação de visitas ou debates. No entanto, onde mais se interage com os intérpretes é nas viagens de comboio entre Bruxelas e Estrasburgo, para onde nos deslocamos para participar nas sessões plenárias. Estas viagens e as conversas que se estabelecem entre nós são uma oportunidade para ficarmos a conhecer as particularidades desta profissão.
Uma das coisas que mais me fascinou foi saber que raramente os intérpretes aprendem algo durante o seu trabalho. Não, não é por serem políticos a falar... Longe disso. O que se passa, explicaram-me, é que o cérebro está demasiado ocupado a garantir a tradução e a entender o contexto para conseguir fixar a mensagem em si. Outros disseram-me que os intérpretes desenvolvem em particular a memória de curta duração. No início do período de trabalho ainda retêm alguma coisa, mas depois, com o avançar do dia, começam a não fixar nada do que se fala. Explicaram-me também que muitas das mensagens são muito pesadas do ponto de vista emotivo e que, por isso, o cérebro tem que se abstrair do significado. Sim, ponho-me a pensar, o que diria o meu cérebro se tivesse de facilitar a transmissão da mensagem xenófoba da Marine Le Pen...
Depois, explicaram-me também, é muito difícil entender todos os dialetos de certas línguas. Por exemplo, alguns dos galegos recusam-se a falar castelhano e preferem fazê-lo naquilo que anunciam como português. Estando supostamente a falar português, os intérpretes ficam condenados a ter que lidar com aquele estranho português e os participantes portugueses nas reuniões a tentar perceber o galego, já que os intérpretes portugueses não podem interpretar de alegado-português para português. É que, simplesmente, o galego não é português, por muito que os galegos o queiram... Para tentar ultrapassar estas situações, os intérpretes têm formações colectivas e, mesmo durante os debates, vão-se entreajudando. Neste caso em particular, do deputados que insistem em falar galeg... português!, os intérpretes portugueses vão auxiliando os restantes colegas.

Numa das últimas viagens de comboio conheci o chefe dos intérpretes portugueses. A seu cargo tem, entre muitas outras coisas, a definição dos intérpretes que participam em cada missão parlamentar. Segundo ele, o momento mais exigente para os intérpretes estrangeiros, que já consta nos anais das crónicas não oficiais do Parlamento Europeu, aconteceu numa visita aos Açores! Apesar das características linguísticas e fonéticas do nosso arquipélago, tudo corria bem até que... chegaram a Rabo de Peixe. Ao enfrentarem a comunidade piscatória, todos os intérpretes ficaram bloqueados, incluindo os portugueses!

domingo, 1 de outubro de 2017

Crónicas de Bruxelas: 3 - Recolha de resíduos, o ponto fraco de Bruxelas

Há uns meses atrás, na ilha das Flores, ouvi o senhor vice-presidente da Câmara Municipal das Lajes discursar durante um evento sobre o 14º Objectivo do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas organizado pelo INATEL. Entre os diversos pontos que enalteciam a virtude da gestão camarária, a certo ponto, passou-se para os números. Concentrei-me. Porque os números são indicadores objectivos permitem-nos fazer um balanço justo e claro da gestão. Disse ele então que o concelho de Portugal com melhor índice de reciclagem de resíduos per capita era precisamente o das Lajes das Flores e, complementou, estava muito bem acompanhados porque no segundo lugar estava o concelho de Santa Cruz das Flores. Espectacular!
Ao ouvir estas palavras reflecti sobre a gestão de resíduos nos Açores. De facto, a planificação estratégica feita há algum tempo e a sua implementação nos últimos anos mudou radicalmente a forma como os resíduos são tratados no arquipélago. O comportamento pessoal mudou, a recolha mudou, o encaminhamento mudou e o destino final mudou. Um completo contraste com o que se passa em Bruxelas, no que se refere à recolha.
Em Bruxelas, a maioria dos resíduos domésticos e comerciais são deixados à porta de casa e das lojas em dias pré-definidos de acordo com a sua tipologia e recolhidos passadas poucas horas. Frequentemente, os sacos rompem-se e as ruas são invadidas por hordas daquilo que as pessoas não quereriam ver dentro das suas próprias casas. Nos dias com algum vento, os cartões esvoaçam rapidamente dando um aspeto caótico à cidade... De seguida, com um dispêndio que não deve ser nada baixo, aparecem umas brigadas de limpadores e varredores que tentam conter os danos. Em resumo, não há dia em que eu não apanhe qualquer coisa do chão e vá meter no caixote do lixo mais próximo. Não o faço por especial sentido cívico, mas sim porque é insuportável ver jardins tão fantásticos e ruas com extraordinárias obras de arte polvilhadas com garrafas de plástico ou guardanapos. "Chateia-me, pá..."
Será que há demasiado dinheiro para gerir esta cidade? Se houver necessidade de alguma contenção, então que se invistam em mais ecopontos e institua-se a sua utilização. A recolha porta a porta funciona em pequenas comunidades que sejam particularmente atentas e responsáveis.
Para além disso, aqui em Bruxelas há um conjunto de regras que excluem dos "amarelos", que aqui são "azuis", muitos dos plásticos. Apenas as embalagens podem ir para reciclagem. Recuso-me a cumprir, mas posso mesmo ser multado! Imagine-se isto na dita capital da Europa...

Há uns dias atrás, ao sair de casa na ilha do Faial, reparei que os vidros dos carros tinham presos nos limpa pára-brisas um panfleto de anúncio a um espectáculo de striptease. Achei curioso, até porque não era coisa que esperasse ver em plena cidade da Horta. Um jovem à minha frente, longe de achar curioso, ficou furioso pela sugestão que lhe tinham colocado no carro. Tirou o panfleto, amarrotou-o irritadamente e mandou-o para o chão. De imediato, peguei no panfleto, dobrei-o para não causar demasiado embaraço, e fui-lhe entregar dizendo "compreendo a revolta, mas não no chão." Ele, com enorme fair-play, concordou dizendo "tem toda a razão". Era o que mais faltava, voltar aos Açores e, nos poucos dias que cá estou, ver lixo pelo chão. Já basta Bruxelas!