sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Crónicas de Bruxelas - 86: Ponto de situação sobre o orçamento de longo prazo da União Europeia

 
Conselho da União Europeia, edifícios Justus Lipsius e Europa.
Foto: F Cardigos

O processo que leva à determinação do orçamento de longo prazo da União Europeia é longo, demorado e, por vezes, segue percursos complexos, sinuosos e inesperados. No entanto, é um processo transparente, permitindo que qualquer cidadão o acompanhe em detalhe.

Em termos muito simplificados, tal como acontece com a maioria dos processos legislativos da União Europeia, o orçamento é proposto pela Comissão, discutido pelos colegisladores, ou seja, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, e adotado quando chegam a um entendimento. Ou seja, ainda mais simplificadamente, a Comissão Europeia propõe e o Parlamento e o Conselho decidem. Reforço a sequência do processo legal para que seja claro o ponto de situação que a seguir exponho.

A Comissão Europeia apresentou a sua proposta de orçamento plurianual para o período 2021 a 2027 em 2018. Esta proposta era constituída por diversos documentos. Por um lado, estão o orçamento geral e os recursos próprios, que obedecem ao processo legislativo especial, e, por outro lado, as declinações destes dois em diversos regulamentos conforme a temática, que obedecem ao processo legislativo ordinário. A diferença entre um e outro processo legislativo jaz na decisão. Sem entrar em detalhes, no “processo especial”, o Parlamento Europeu apenas pode aceitar ou rejeitar e o Conselho tem de decidir por unanimidade, por vezes tendo de recorrer mesmo aos parlamentos nacionais. No “processo ordinário”, o Parlamento e o Conselho estão em pé de igualdade na capacidade de alteração dos conteúdos propostos pela Comissão.

Desde 2018, houve um desafio adicional resultante da pandemia de covid-19 que resultou em diversas alterações da proposta da Comissão e o reforço do orçamento com 750 mil milhões de euros oriundos do “Next Generation EU”, o instrumento da recuperação da União Europeia pós-covid-19. Por falar em números gigantes, o orçamento base tem um valor de 1,1 biliões de euros. Ou seja, no total, o valor é de quase 2 biliões de euros a serem despendidos nos sete anos de duração do quadro financeiro.

O orçamento e cada uma das suas declinações, tanto por resultado da pandemia como por consequência das discussões internas e externas, tem sido alterado em pequenos e grandes detalhes. Por exemplo, um dos problemas identificados inicialmente na proposta da Comissão tinha implicações dramáticas para as regiões ultraperiféricas (RUP). Segundo a proposta da Comissão, integrada numa das tais declinações, no caso o Regulamento das Disposições Comuns, as RUP passariam a fazer um esforço próprio de 30% para poderem aceder aos fundos estruturais e de investimento, como o FEDER e o FSE, entre outros. Se parece generoso um cofinanciamento de 70% a fundo perdido, não é menos verdade que o cofinanciamento anterior era de 85%. Esta passagem de 85 para 70% implicava a duplicação do esforço próprio (de 15 para 30%). Felizmente, os colegisladores entenderam os argumentos apresentados pelas forças vivas das RUP e reverteram a proposta da Comissão.

Portanto, com mais de dois anos de antecedência, a Comissão Europeia fez um conjunto de propostas que, desde então, têm estado em discussão dentro-portas por parte de cada um dos dois colegisladores, para tomarem posição, e, mais recentemente, fora-portas nos chamados trílogos. Os trílogos são discussões informais entre os colegisladores em presença da Comissão Europeia.

Apesar de ser uma discussão informal, os colegisladores levam o resultado destas discussões para as respetivas instituições que, quase invariavelmente, o aceitam, tornando-se assim uma decisão formal e legal, pronta para publicação em jornal oficial.

Evidentemente, a forma como estas propostas saem da Comissão e entram no Parlamento e no Conselho, como aí são discutidas internamente, como saem para os trílogos, como são realizadas as discussões em trílogo, como regressam aos colegisladores e como são aprovadas formalmente é fascinante e, mais importante, descortinável por qualquer cidadão.

Neste processo, pós apresentação da proposta da Comissão Europeia, os Açores e as restantes regiões ultraperiféricas conseguiram algumas vitórias interessantes. Por exemplo, para os fundos de cooperação entre regiões (interreg) há agora uma verba de 270 milhões de euros para uso exclusivo das RUP, o que poderá resultar em 2 milhões por ano para os Açores, ficando apenas dependentes das forças vivas produzirem bons projectos que captem estes recursos. Há que estar atentos aos convites à apresentação de propostas que a Comissão irá publicar e concorrer com competência.

No POSEI, um programa dedicado à agricultura das RUP, após uma luta intensa e demorada, conseguiu-se reverter a decisão da Comissão, que propunha um corte avultado. Com isso, os agricultores ficaram a ganhar mais 3 milhões de euros por ano, aumentando a segurança alimentar de todos os açorianos.

No REACT-EU, a iniciativa de assistência à recuperação e para a coesão dos territórios da Europa, por proposta da Comissão, após sensibilizada pelas RUP, foi reservada uma verba de 30 euros per capita para estas regiões. Ou seja, para os Açores serão cerca de 7 milhões de euros.

Para os assuntos do mar, pescas e aquacultura, ao contrário de todas as restantes regiões, as RUP conseguiram manter o orçamento anterior. Isso significará 102 milhões de euros que, a seu tempo, serão repartidos entre os Açores e a Madeira.

Acresce ao exposto atrás que os Açores, tal como as restantes RUP, para além das verbas que nos estão reservadas, podem beneficiar ou concorrer em pé de igualdade com as restantes regiões pelas restantes verbas dos tais quase dois biliões de euros para sete anos. Com esta complementaridade entre as verbas adstritas e restantes cumpre-se o exposto no artigo 349 do Tratado de Funcionamento da União Europeia que identifica e protege as RUP.

A instituição e implementação do conceito RUP, que é defendido em primeira linha pela Conferência dos Presidentes das RUP, está a ter justas consequências para os territórios mais longínquos e isolados na periferia europeia. Durante os próximos doze meses, a presidência desta Conferência é exercida pelo Presidente do Governo dos Açores e, durante o próximo semestre, em sincronia com a presidência portuguesa da União Europeia. Por tudo isto, a Região estará em boa posição para ajudar a explorar e a expandir ainda mais as oportunidades abertas pelo artigo 349.

No total, haverá várias centenas de milhões de euros a fluir anualmente entre a União Europeia e a Região Autónoma dos Açores. Estas verbas serão maioritariamente oriundas do FEDER, FSE, FEADER e POSEI. Serão verbas elevadíssimas e que exigirão responsabilidade na utilização, mas, ao mesmo tempo, são uma extraordinária oportunidade para construir um futuro próspero, justo, solidário e ambientalmente adequado.

Para que tudo isto aconteça é necessário que o Conselho da União Europeia desbloqueie o orçamento. O único entrave para que isso aconteça é a posição da Hungria e da Polónia que, quando redijo este artigo, não aceitam que a disponibilização dos recursos europeus esteja dependente do respeito das regras de Estado de Direito.

As verbas em causa são importantes e dariam um enorme impulso aos Açores. No entanto, como acontece com a esmagadora maioria dos Estados e Regiões da União Europeia, não estou disposto a abdicar da liberdade de expressão e da independência da justiça para aceder a essas verbas. Os nossos antepassados lutaram demasiado para chegarmos até aqui e não será o dinheiro a comprar o seu esforço e a nossa liberdade.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Crónicas de Bruxelas - 85: A experiência Eslovaca

Paisagem eslovaca.
Foto: F Cardigos

Apesar de noticiada, passou relativamente desapercebida a recente experiência eslovaca para travar o progresso da pandemia de covid-19. Este país decidiu testar grande parte da população de cerca de cinco milhões de habitantes em dois dias, com uma semana de intervalo. Na sequência dos testes, as cerca de 50 mil pessoas que acusaram positivo foram isoladas travando efetivamente o progresso da pandemia. Os que optaram por não fazer o teste, terão de permanecer os 10 dias seguintes em casa.

Obviamente, este não é um procedimento com 100% de eficácia. Todas as pessoas que já estão infetadas e cuja incubação ainda não atingiu o nível mínimo de deteção terão resultado negativo e, na realidade, são portadoras. Adicionalmente, as pessoas que entrarem no país depois dos dois períodos de testes e forem portadoras do vírus poderão transmitir a doença. No entanto, apesar destas limitações, este é um procedimento com resultados expectáveis que atenuarão o efeito da segunda vaga, permitirão seguir e debelar cadeias ativas e será suficiente para evitar o confinamento que vivemos nos restantes países europeus. Com este passo, a Eslováquia irá manter o país plenamente ativo. 

Evidentemente, o esforço para realizar estes dois períodos de testes obrigou a colocar no terreno uma enorme estrutura que incluiu, para se ter uma ideia da dimensão, cinco mil centros de teste. Foi necessária uma mobilização sem precedentes que incluiu pessoal médico, voluntários e até as forças armadas. O esforço foi elevado e oneroso. Segundo li na comunicação social, o orçamento previsto era de 75 milhões de euros. Mas será, na realidade, um valor elevado? 

É muito dinheiro, certamente. No entanto, fazendo uma contas muito por alto, tentei compreender quanto custa um confinamento. Não é fácil… Para além das questões financeiras diretas e económicas de longo prazo, há uma indubitável e não calculável pegada social. 

O impacto nas pessoas que não têm acesso a cuidados de saúde normais por causa do confinamento e do esgotar das capacidades hospitalares, o desemprego e o impacto psicológico resultante da limitação de contactos pessoais é, indiscutivelmente, elevado e não mensurável. 

Em termos puramente financeiros não se sabe bem qual é o impacto, mas há alguns dados. Por exemplo, a EDP reduziu o negócio em Portugal e no Brasil na ordem dos cem milhões de euros com a primeira vaga. A Alemanha deduziu que o impacto das novas restrições provocadas pelo segundo confinamento deve ascender a 19 mil milhões de euros. Fazendo umas rápidas contas de merceeiro com base na proporcionalidade à população e tendo como ponto de partida os cálculos para a Alemanha, podemos concluir com uma razoável margem de erro que um segundo confinamento na Eslováquia teria um impacto financeiro na ordem dos mil milhões de euros. Como nos limitamos à componente financeira, obtemos um valor calculado por baixo. Ou seja, no mínimo e retirado o investimento mencionado atrás, o saldo positivo da experiência eslovaca, caso resulte, é de 925 milhões de euros. 

São 925 milhões de euros a que se somam a saúde, os empregos e a sanidade psicológica de muitos. Vale a pena arriscar? Sim, sem pestanejar. 


Notas:

https://pt.euronews.com/2020/11/01/eslovaquia-faz-testes-rapidos-a-toda-a-populacao

https://www.bbc.com/portuguese/geral-53204453

https://observador.pt/2020/09/04/covid-19-teve-impacto-direto-nas-contas-edp-superior-a-100-milhoes-a-maioria-no-brasil/

https://expresso.pt/economia/2020-11-01-Covid-19-Novas-restricoes-na-Alemanha-terao-custos-de-19-mil-milhoes-de-euros

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Crónicas de Bruxelas - 84: Sobre a covid-19 na China


Família Brennan na China.
Foto: Simon Brennan


Por uma questão de proximidade, por vezes, somos tentados a pensar que somos o centro do mundo. Na realidade, não é de todo assim. A União Europeia tem menos de 500 milhões de habitantes, o que representa menos de metade de outros países, como a China ou a Índia. Nestes países, a complexidade de um problema com abrangência global aumenta, potencialmente, para mais do dobro quando comparado com a União Europeia. Sendo assim pergunto-me como é gerida a covid-19 nesses países? O que podemos aprender? Da Índia, nada sei. No entanto, da China, sei e muito! Isso graças a um primo meu que emigrou e constituiu família há uma dezena de anos no país da Grande Muralha, o professor Simon Brennan. Com a sua autorização, traduzo e partilho parte de uma mensagem que enviou recentemente à família:

A vida aqui está totalmente de volta ao normal, exceto que a maioria de nós ainda usa máscaras. Na cidade onde moro não há nenhum caso endógeno há mais de 3 meses e os novos casos são de pessoas que chegam de avião. Existem grandes diferenças entre a China e a maioria dos outros países.

Ouvi dizer que, agora, algumas pessoas estão a usar uma aplicação de rastreamento em Portugal. Uma dessas aplicações é aqui usada há mais de 6 meses e ninguém reclamou. Na verdade, ninguém reclamou de qualquer medida preventiva em qualquer momento nos últimos 9 meses. Assim que os primeiros relatórios foram divulgados na China sobre o surto em Wuhan, eu e todos os outros em todo o país estávamos a usar uma máscara. Não foi preciso dizerem-nos. Era tão óbvio como usar um guarda-chuva à chuva ou tirar a roupa antes de tomar banho. Não há aqui pessoas a inventar teorias da conspiração ridículas ou mesmo seguindo qualquer uma das loucuras que vêm do oeste. Há definitivamente um lado positivo em ter o Facebook, o YouTube e o Twitter bloqueados.

As pessoas na China são muito eficientes a economizar dinheiro. A maioria das famílias tem dinheiro economizado para emergências. Apesar da pandemia e de não poder trabalhar, tivemos sempre o necessário para viver, comer e sobreviver durante esta emergência. A todos no país foi dito para ficar em casa. Qualquer coisa que se queira comprar pode ser entregue por motociclistas em qualquer lugar da China e é cobrada uma sobretaxa muito pequena por isso, cerca de 1 euro por entrega. Assim, praticamente todos puderam ficar em casa, viver das suas economias e ter tudo entregue, fosse comida, mantimentos, papel higiénico, livros, roupas, o que fosse.

Além disso, além da aplicação de rastreamento, todos estivemos a ser rastreados desde o primeiro dia. Sempre que se entrava num prédio público de qualquer tipo: loja, correio, hospital, qualquer coisa, era necessário registar o nome, telefone, número do BI e a hora de chegada e a hora de partida. Então, no caso de haver um teste positivo, as autoridades identificavam qualquer pessoa que estivesse estado na vizinhança durante as 24 horas anteriores, usando essas informações de rastreamento. Acrescentavam-se as pessoas que moravam no mesmo bloco de apartamentos e qualquer pessoa com quem esse positivo dissesse ter tido contato nas últimas duas semanas. Todas essas pessoas eram imediatamente testadas e colocadas em quarentena até que os testes tivessem resultados. Se algum desses testes fosse positivo, o processo repetia-se.

Tivemos mini-segundas vagas. Hoje, sempre que é encontrado um caso de transmissão local, as precauções mencionadas acima entram em ação e, em poucas horas, todos que os possam estar infetados são confinados. Ninguém reclama, pois todos percebem que é do interesse comum. Funcionou às mil maravilhas e estamos todos melhor com isso.

A China teve a vantagem de ter tido a experiência da SARS em 2002. Esta doença preparou-os para este novo surto. MERS, SARS e ébola eram problemas de outros para a maioria das pessoas fora da Ásia e da África. Mas a China teve sua aula prática e estava totalmente preparada para a sequela: a covid-19. A minha esposa comprou uma abundância de máscaras, luvas, lenços anti-sépticos, sabonete e álcool medicinal assim que Wuhan se tornou notícia nacional. Ela mostrou-me a mim e à nossa filha como lavar as mãos corretamente. Mostrou-nos o procedimento de descontaminação completo que eu tinha que seguir cada vez que chegava a casa. O processo demorava 15 minutos e envolvia borrifar todas as minhas roupas com álcool medicinal, removê-las e pendurá-las no varão por, pelo menos, 24 horas, lavar as minhas mãos cuidadosamente, limpar o meu telefone, chaves, maço de cigarros e isqueiro com toalhetes com álcool, em seguida, lavar as minhas mãos novamente e, finalmente, vestir-me com um conjunto de roupas limpas. Tudo o que chega de fora foi (e ainda é) limpo. Isso inclui cada saco de plástico, cada embalagem de cada alimento que é comprado. Nunca estive tão limpo em qualquer outra época da minha vida.


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

A Sustentabilidade do Mar dos Açores em celebração do Dia Nacional do Mar 2020

 


Fêmea de Bodianus scrofa ou peixe-cão.
Foto: Frederico Cardigos, nas Formigas, Mar dos Açores, Mar de Portugal

O Dia Nacional do Mar relembra e celebra a entrada em vigor da "Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar". Foi em 16 de novembro de 1994 que esta Convenção deu corpo a conceitos que, hoje, dada a sua vulgaridade, parecem ter sempre existido. Na realidade, “Zona Económica Exclusiva” e “Plataforma Continental (senso jurídico)”, entre outras, são expressões que apenas ganharam contornos legais nesse ano e, em Portugal, ainda mais tarde, quando ratificou a convenção em 1997.

Deixando para outros, mais habilitados, a tarefa de partilhar detalhes sobre esta que é uma das principais convenções estabelecidas pela Organização das Nações Unidas, pela minha parte é o momento adequado para refletir sobre o Mar dos Açores. O que está feito, o que pode ser feito e quais os conflitos previsíveis.

Em termos metodológicos, há diversas formas de analisar um determinado tema. No que ao uso do mar diz respeito, considero que se aplica facilmente a sequência de implementação de processos sustentáveis: conhecimento, planeamento, ação, monitorização, balanço e recomeço da sequência. Dando vários exemplos concretos para cada uma das etapas, será esta a minha forma de exposição e análise.

 

Conhecimento

Muito por responsabilidade dos departamentos de oceanografia e pescas e de biologia da Universidade dos Açores, há, em termos comparativos com outras regiões, um elevado conhecimento sobre o meio marinho que nos rodeia. Longe de mim considerar que se conhece tudo. Nada mais longe da verdade! O mar dos Açores é profundo, inóspito e com acesso muito difícil pelo que se torna praticamente impossível tudo saber. Há muito e bom trabalho pela frente, mas há que ter consciência que o mar dos Açores reservará sempre para si alguns dos seus segredos.

Neste momento estão em curso diversos investimentos que podem melhorar o acesso ao mar dos Açores e ao desvendar dos seus segredos. Refiro-me particularmente ao AIR Centre e ao Observatório do Atlântico. Com apoio constante da Fundação para a Ciência e Tecnologia, do Fundo Regional para a Ciência e Tecnologia e dos respetivos governos, o AIR Centre foi-se impondo e tem já um interessante manancial de projetos de investigação orientados para o conhecimento do mar, da atmosfera e do espaço financiados pelas competitivas verbas europeias.

No documento proposto por António Costa e Silva para a Recuperação e Resiliência de Portugal constava uma “Universidade do Atlântico com base nos Açores”. Por razões que me escapam, na versão corrente desse instrumento entregue na Comissão Europeia deixou de haver essa menção e passou-se a expressões pouco concretas que me fazem recear o pior. É pena se o arquipélago perder esta oportunidade - uma instituição que enormes sinergias poderia fomentar com a Universidade dos Açores, com a Escola do Mar no Faial, com o AIR Centre na Terceira e com o Observatório do Atlântico. Há que ter objetivos com nível de excelência e exigentes, que aproveitem as nossas idiossincrasias únicas e que mobilizem em uníssono os atores regionais e nacionais. A Universidade do Atlântico seria tudo isso.

Apesar de recentemente ter sido criado um programa de bolsas para facilitar a entrada de cientistas nas empresas, alguns empresários do sector marinho nos Açores informaram-me que ainda sentem falta de uma transmissão do conhecimento de alto nível para o mundo da economia real. Sem conhecimento adequado, “as decisões tendem a ser empíricas, o que muito prejudica o negócio”, afirmou-me o dono de uma empresa azul com sede na ilha do Faial. Ou seja, apesar do bom trabalho já realizado, há agora que ir ainda mais longe.

A um nível mais técnico, a Escola do Mar do Faial é um instrumento fundamental para formar, treinar e certificar os profissionais e os amantes do mar. Agora, após ter entrado em funcionamento, há que ir reforçando, refrescando e renovando as tecnologias disponíveis e estabelecer as parcerias nacionais e internacionais que lhe permitam ser uma escola de excelência e de referência. Ao mesmo tempo, há que alargar a abrangência interna, eventualmente estabelecendo parcerias com os clubes navais e associações de pescadores da Região. Será um trabalho constante, mas o potencial de sucesso é enorme. As pessoas que se interessam pelo usufruto do mar conhecem algumas escolas internacionais que ressoam no nosso imaginário e que apenas alguns afortunados tiveram a oportunidade de frequentar. Refiro, por exemplo, “Les Glénans”, em França, e, estou certo, os olhos de alguns que me leem brilharam e outros, como eu, suspiraram…

 

Planeamento

A fase de planeamento é aquela que a mim, pessoalmente, me dá mais prazer. Considero fascinante pensar nas diferentes abordagens, assistir ao confronto com os utilizadores e verificar como os decisores fazem a necessária síntese. Os processos de planeamento, para terem sucesso em termos de amadurecimento e de inclusão, são morosos e exigem, muitas vezes, ouvir posições razoavelmente antagónicas. Haver posições que para uns são “óbvias” e para outros “deslocadas” é absolutamente normal no início dos processos participativos. A arte é construir pontes e, pacientemente, chegar às melhores conclusões.

Nos Açores, o passo mais esperado em termos de planeamento é o Plano Ordenamento do Espaço Marítimo dos Açores. Alguns dos atores privados que consultei para enriquecer a redação deste artigo disseram-me que aguardam com expectativa este documento para que possam avançar com investimentos de algum vulto. Depois de vários anos de construção, o POEMA (que belo acrónimo!) deve estar praticamente pronto. Este será um ótimo empurrão para o novo Governo dar ainda mais dinâmica à utilização do mar.

A nível nacional termina, precisamente hoje, a consulta pública para a nova versão do instrumento que norteará todo o uso do espaço marítimo: a Estratégia Nacional para o Mar. No dia 4 de novembro, de acordo com as notícias que então vieram a público, já havia cerca de 200 contribuições escritas. Considero que este é já um bom indicador do interesse dos portugueses para os assuntos do mar e que em muito contribuirá para atingir a visão aí proposta: “Promover um oceano saudável como forma de potenciar o desenvolvimento azul sustentável, o bem-estar dos portugueses e afirmar Portugal como líder na governação do oceano, apoiada no conhecimento científico”.

A nível europeu, os dois documentos estratégicos determinantes para o mar são o Pacto Ecológico Europeu e a Estratégia para a Biodiversidade em 2030. Ao ler os objetivos aí contidos, ficamos com uma ideia clara sobre a oportunidade de investir na utilização sustentável do ambiente marinho. As metas são ambiciosas e exigirão um esforço por parte de todos, incluindo as regiões ultraperiféricas da União Europeia, onde se incluem os Açores.

Em contexto internacional, neste momento procuram-se soluções para gerir adequadamente o alto-mar. Dentro da ONU, diversos organismos tentam estabelecer regras e têm tido um auxílio precioso da Comissão do Mar dos Sargaços, onde os Açores participam e são signatários. Nesta organização promovem-se ações práticas para ajudar a gerir mar que ao ser de todos, vítima da “tragédia dos comuns”, se arrisca a não ser protegido por ninguém.

 

Ação

Habitualmente, o passo mais difícil na concretização de projetos é passá-los à ação. Quando se chega à fase que exige colocar “dinheiro sobre a mesa”, o decisor, com alguma razão, pensa duas vezes, receando que não seja aquele o investimento necessário. Compreendo que há uma responsabilidade no uso das verbas públicas e privadas que inibe a passagem à ação, mas é necessário fazê-lo. Com sensatez, há que assumir algum risco e ter a coragem de avançar com projetos que, muitas vezes, nasceram de um benigno delírio de alguém.

Outro dos entraves à concretização é a morosidade dos processos de licenciamento. O nosso país tende a complicar e isso tem de acabar. Há que, constantemente, rever os procedimentos para garantir a celeridade da necessária avaliação inerente ao licenciamento, mas, obviamente, sem jamais arriscar os limites ambientais, a adequação social ou a viabilidade económica. “Aprovação” ou “não aprovação”, mas rapidamente. Não é o caso dos Açores, mas, no Continente Português, os investimentos em aquacultura, já de si muito onerosos, exigiam mais de uma dezena de autorizações e pareceres de diferentes autoridades antes de poderem ver a luz do dia. Não fazia sentido e o procedimento para o licenciamento na aquacultura foi melhorado, mas a simplificação legal é um trabalho que exige atenção constante. Há novas tecnologias, novos procedimentos e o licenciamento tem que ter isso em conta.

Um dos processos que dificilmente sairá da gaveta é a extração de minerais no mar profundo dos Açores. As três condições para a iniciativa avançar nunca se concretizaram e parece tudo ter ficado pelo caminho: não há tecnologia adequada para extrair os minerais, não há necessidade dos recursos a extrair (que podem, por enquanto, ter origem terrestre ou na economia circular) e não se provou a adequação ambiental da extração. Relativamente a este último ponto, lembro que o projeto científico financiado a nível europeu e de que fez parte do DOP, na Horta, indiciou exatamente isso: o impacto ambiental potencial é elevado. Isso significa que eventuais promotores terão a árdua tarefa de provar o contrário, ou seja, que a extração de minerais no mar profundo não prejudica os mananciais piscícolas e os cetáceos. Parece-me difícil… Por outro lado, por parte da Região, devemos preparar-nos para, caso a atividade avance, a acompanhar do ponto de vista da monitorização. Apenas podemos garantir um oceano saudável se lhe conseguirmos aceder e para isso são necessárias pessoas competentemente formadas e instrumentos.

Nos Açores, ao longo das últimas dezenas de anos, temos visto nascer inúmeros projetos da economia do mar absolutamente fantásticos e, na maioria dos casos, a darem certo. Lembro as empresas que usam a maravilhosa biodiversidade dos Açores e que fazem observação de cetáceos, mergulho com tubarões e até tubarões-baleia, natação com jamantas e mergulho com escafandro autónomo, e junto aquelas que, com uma perspetiva extrativa, valorizam o pescado dos Açores para uso local ou exportação. Acrescento as empresas de índole mais marítima, como o aluguer de iates e os transportes marítimos de carga e passageiros. Desde o início dos nos 90 que tivemos todos o grato privilégio de assistir ao crescimento da economia azul e o potencial está longe de ser preenchido. Há que investir mais, investir ainda melhor e usufruir dos resultados. Por exemplo, o património cultural arqueológico subaquático dos Açores, que foi recentemente classificado a nível europeu, pode ajudar a fomentar novas opções para o turismo de mergulho com escafandro autónomo. De antigas tragédias, os verdadeiros naufrágios dos Açores têm hoje muito para nos dar e não são apenas histórias...

Para que esta azáfama resulte é necessário criar as parcerias internas e externas adequadas. Atualmente, resultado da pandemia, é difícil participar presencialmente nos fóruns que catalisam estas sinergias. Tentando rumar em sentido contrário, precisamente amanhã, a Câmara do Comércio Belgo-Portuguesa organiza as “II Rotas da Economia Azul da Bélgica e Portugal”. Será mais uma oportunidade para os empresários dos Açores.

Na realidade, apesar de me ter detido muito na ação de empresas e governos, a ação ambiental marinha é algo que apela a todos os cidadãos. A campanha SOS Cagarro, provavelmente a mais antiga campanha ambiental de Portugal, salva milhares de aves marinhas todos os anos no arquipélago. Largas dezenas de milhares de açorianos já “salvaram um cagarro, fizeram um amigo”.

 

Monitorização

Qualquer investimento e atividade tem que ser permanentemente acompanhado para garantir que os objetivos são cumpridos, que são criados os estímulos para que tenha sucesso e que não há excessos. Para além de, na maioria dos casos, ser um imperativo legal, é um crucial ato de sensatez.

“Monitorização” é uma palavra simpática, mas que, na realidade, aglutina quatro conceitos razoavelmente distantes, quase antagónicos: observação, acompanhamento, regulação e fiscalização. Se com o acompanhamento se pretende estar ao lado dos promotores, a fiscalização deve ter um razoável distanciamento dos atores do investimento, verificar o cumprimento da legislação e, em caso de falha, autuar implacavelmente. Entre os dois, as entidades reguladoras são um elemento essencial para observar as grandes variáveis, como o estado do ambiente, e propor novos procedimentos e regras que, mais tarde, se poderão transformar em novas leis.  

A observação é essencial para atingir os grandes objetivos definidos pela Organização das Nações Unidas através da Agenda 2030. Os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável têm metas precisas para o ambiente marinho. A título de exemplo, como se pode ler no Objetivo 14, “Proteger a Vida Marinha”, “Até 2020, [há que] conservar pelo menos 10% das zonas costeiras e marinhas, de acordo com a legislação nacional e internacional, e com base na melhor informação científica disponível.”. Apenas poderemos verificar se esta meta em concreto foi atingida caso haja monitorização que verifique o estado de conservação das zonas costeiras e marinhas. Portanto, até ao final de 2020, há que avaliar o estado das zonas costeiras. Estamos preparados para responder?

Os navios de investigação são importantes instrumentos para fazer essa observação marinha e, em simultâneo, ciência. Amanhã, em Portugal Continental será batizado o N/I “Mário Ruivo”, que constituirá mais uma peça fundamental para estudar o oceano, incluindo o Mar dos Açores. No entanto, o nosso N/I “Arquipélago” tem de ser substituído. Não podemos reivindicar um mar que não monitorizamos adequadamente. Os 27 anos e 25 metros de comprimento do navio de investigação dos Açores são, respetivamente, excessivos e insuficientes para os 4 milhões de quilómetros quadrados de plataforma continental (senso jurídico) que nos rodeiam. O N/I “Arquipélago” fez um extraordinário trabalho, a tripulação é admirável e os cientistas embarcados produziram ciência de alto nível, mas está no momento de proporcionar uma nova plataforma aos cientistas dos Açores e seus convidados. Se queremos continuar a ganhar verbas do mais exigente programa da Comissão Europeia, o Horizonte Europa, temos que possuir um navio de investigação condizente.

O financiamento para a observação e inerente caracterização dos sistemas marinhos tem diferentes géneses. No entanto, um dos mais complexos, valiosos e almejados é o programa LIFE da Comissão Europeia. O Governo dos Açores investiu e implementou uma equipa que aprendeu a concorrer e a ganhar projetos submetidos a financiamento LIFE. As verbas assim angariadas estão longe de ser inertes e são altamente consequentes para a conservação da natureza e seu uso sustentável, por exemplo, através do Turismo.

O acompanhamento dos diferentes processos é realizado por diversas instituições com maior ou menor grau de governamentalização. As organizações que mais longe estão do Governo, as ONG, são fundamentais para acompanhar os diferentes processos com sentido crítico fundamentado. No caso dos Açores, há apenas uma ONG totalmente dedicada ao mar, o Observatório do Mar dos Açores (OMA) com sede no Faial. Na minha opinião e apesar do extraordinário trabalho feito pelo OMA, é manifestamente insuficiente para a dimensão marítima do arquipélago. As ilhas do Grupo Oriental precisam de uma ONG marinha. Não pode ser o Governo a estimular o aparecimento de uma ONG, até porque isso iria contra a independência fundamental que se exige a uma organização com esta tipologia. Terão de ser os interessados a liderar e a estabelecer novas ONG.

Este acompanhamento das atividades, no caso da pesca profissional europeia, é também realizado pelos chamados “Conselhos Consultivos” (CC). Há diversos CC de acordo com a geografia ou a tipologia do processo da pesca em causa. Recentemente, foi instalado o CC dedicado às regiões ultraperiféricas e a sua sede localiza-se nos Açores. É mais um resultado que enfatiza a liderança e a inspiração que as nossas ilhas proporcionam.

Ainda há falhas na fiscalização dos mares. No caso dos Açores, por exemplo, é notória a falta de fiscalização sobre as áreas marinhas protegidas contidas no Parque Marinho dos Açores. Como lhes compete, a Inspeção Regional das Pescas e a Inspeção Regional do Ambiente apontam baterias à fiscalização essencialmente em terra e a Marinha Portuguesa tem demasiadas solicitações. No meio, sem resguardo adequado, ficam as áreas marinhas protegidas costeiras e o resultado não é positivo, há que reconhecer. Há aqui uma nítida oportunidade de melhoria. Admito que não tenho a solução milagrosa, mas talvez sentar à mesma mesa as partes interessadas possa ser um bom começo.

 

Balanço

O balanço é, no fundo, uma avaliação profunda que acompanha a fase final de qualquer processo. Entre outras técnicas, muitas vezes usa-se a análise “pontos fortes, pontos fracos, oportunidades e ameaças” (ou “SWOT”, no acrónimo em inglês). Nesse caso, representantes das partes envolvidas lideradas por especialistas devem fazer esta análise, reportar e influenciar os novos procedimentos.

Quando um qualquer processo dá nitidamente certo ou nitidamente errado, há a tentação de saltar esta importante fase de construção da sustentabilidade. No entanto, é essencial fazer esta reflexão. Talvez por terem a obrigação legal de o fazer, a nível europeu estas análises são uma constante, mesmo antes do início do processo. Tipicamente contratadas a empresas privadas de consultadoria, as chamadas análises ex ante e ex post são documentos essenciais, de uma enorme riqueza e com os quais já aprendi muito, essencialmente, na área dos acordos internacionais para as pescas.

 

Recomeço da sequência

Munidos da experiência, dos resultados e da avaliação, em qualquer procedimento dito sustentável há que verificar a pertinência de o recomeçar e em que circunstâncias. Por exemplo, o centro de energia das ondas do Pico, instalado no Cachorro, foi um procedimento que não teve sequência. Apesar de ter constituído uma importante base para o estudo da energia das ondas, a falta de interesse por parte de atores fundamentais votou-a ao abandono e desmantelamento. Ao verificar como procedimentos similares estão a ser extraordinariamente bem-sucedidos em diversos locais da Europa, parece-me que está em falta uma avaliação séria sobre a pertinência e contexto para instalar uma base para estudo e usufruto de energias alternativas marinhas e decidir se e como este processo deveria ter reinício.

 

Finalizando com os olhos no futuro…

Por estes dias, o “Lula” tem estado em missão no arquipélago da Madeira. O mais potente submarino privado de Portugal é propriedade da Fundação Rebikoff-Niggeler e tem sede na ilha do Faial. Este submarino amarelo já forneceu imagens fantásticas para documentários da BBC e, mais importante, novas espécies e habitats para a ciência e para a humanidade. Entre os Açores e a Madeira, que novidades nos trará este pequeno Neptuno do mar profundo de Portugal?

Por último, quero reiterar que apenas temos um planeta para viver, sonhar e sermos felizes. Erradamente, a esse planeta deram o nome de Terra. No nosso arquipélago, em que somos lava, mar e maresia, saibamos usar e preservar o Planeta Oceano que nos rodeia.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Crónicas de Bruxelas - 83: Quinze minutos de leitura


Lendo "Uma Aventura Corvina", de José Carlos Magalhães Cymbron

Desde há cinquenta anos, um programa de rádio divulga o Jazz do mundo em Portugal. Quando trabalhava no nosso país, ouvia esta emissão sem grande atenção, mas com prazer. Chama-se “Cinco minutos de Jazz” e, nela, o autor, José Duarte, faz-nos viajar por um qualquer tema, compositor ou instrumentista através de estilos que vão do “New Orleans, ao swing, do bebop ao hard bop e ao free jazz”, como indicado no sítio internet da RDP.

Invariavelmente, trauteava os acordes e a melodia passava a acompanhar-me pelo resto do dia, como uma quase impercetível aula de tolerância e abertura à diversidade musical. Fui aprendendo a conhecer e a apreciar este género com os “Cinco minutos de Jazz”. "1, 2, 3, 4, 5 minutos de jazz"!

Dado este historial, quando em Bruxelas ouvi a diretora de uma escola secundária referir as palavras “quinze minutos de leitura”, rendi-me de imediato. Apenas podia ser uma fórmula ganhadora! Mas seria mesmo…?

Naquela escola secundária, dois dias por semana, as aulas param ao som de um sino e, durante quinze minutos, todo o pessoal escolar lê. Desde o mais pequeno dos alunos, passando pelos professores, até ao mais idoso dos auxiliares de ação educativa, todos se sentam, abrem o livro que escolheram antecipadamente e atacam as letras, palavras, linhas, parágrafos, páginas e capítulos. Durante 15 minutos dedicam-se à aventura, ao drama ou à comédia que estiver escondida por entre aquelas folhas de papel.

A própria diretora desce do seu gabinete, também com o seu livro debaixo do braço, e junta-se a uma turma ou a um dos múltiplos grupos de leitura que já nascem de forma razoavelmente desorganizada. Durante quinze minutos impera o silêncio, apenas obscurecido pelo murmurar quase surdo do juntar de sílabas que fazem os mais jovens ou pelo virar de mais uma página.

Tem sucesso?”, perguntei com o olhar desconfiado de quem não acredita nas novas gerações, vítimas oferecidas ao tuíter, ao tique-tóque e ao faissebuque. “Agarram-se aos livros e não querem parar!”, afirmou com um não disfarçado entusiasmo. “Aliás, a ideia foi deles. Publiquei no nosso boletim de segunda-feira a experiência que nasceu na Turquia e que se multiplicou por outros países, incluindo na Bélgica, e foi a comunidade escolar a sugerir que fizéssemos o mesmo. A iniciativa foi da comunidade escolar e tem estado a correr bem.”. Complementou dizendo que algumas turmas já estão a constituir as suas próprias bibliotecas e onde incluem outros objetos alusivos às tramas que leram.

Tento imaginar que livro escolheria, caso fosse estudante neste liceu. Que me lembre, o primeiro livro que li foi “As Aventuras de Tom Sawyer”, de Mark Twain. Não teria gostado de o ler em frente a outras pessoas, até porque chorei com algumas passagens… Talvez escolhesse “A Crónica dos Bons Malandros” do Mário Zambujal, como sinal de rebeldia, ou o “Amor nos Tempos da Cólera”, porque sempre gostei de literatura sul-americana e este livro do Gabriel García Márquez foi publicado precisamente quando eu andava no liceu. Pergunto-me que livros escolherão e quais as razões da escolha… Tenho que perguntar na próxima vez que vir a diretora da escola.

Em Bruxelas, no meu bairro, há uma outra escola que levou esta ideia ainda mais longe. Adaptou o horário escolar e os 15 minutos de leitura passaram a fazer parte do quotidiano oficial da comunidade todos os dias da semana. Com estes interessantes passos, alguns jovens belgas estão progressivamente a voltar aos livros e à leitura. Parece-me uma iniciativa a equacionar pelas escolas nos Açores, se é que ainda não o estão a fazer…

Fica a ideia!


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Crónicas de Bruxelas - 82: Tão simples…


Como todos nós, tenho seguido com atenção a evolução da pandemia de covid-19. Depois do enorme choque inicial, em que as unidades de cuidados intensivos de alguns hospitais da China e da Itália ficaram bloqueados pelo acréscimo de doentes e tiveram de ser feitas escolhas que fizeram entrar em pânico os médicos daqueles países, entrou-se na desejada fase de gestão da evolução da pandemia.

Tal como foi dito desde o início pelos cientistas sérios, o vírus continua connosco, não houve curas milagrosas, a vacina ainda não está disponível e o essencial continua a ser gerir os números de infetados para que não se voltem a bloquear as unidades de cuidados intensivos. Graças a uma aprendizagem construtiva e permanente, hoje sabemos, dia a dia, qual é a evolução da doença, o que permite aos políticos informadamente introduzir medidas ou retirar restrições. Ao mesmo tempo, há uma melhor capacidade técnica para lidar com a doença, o que tem feito descer os números de mortes per capita, mesmo com um aumento significativo do número de casos registados por dia.

Tal como as autoridades de saúde e políticas têm responsabilidades enormes na gestão da pandemia, ao comum dos cidadãos, como eu, é solicitado algum esforço. Esse esforço deve-se materializar no seguir rígido das regras variáveis em vigor e em cumprir quatro preceitos: (1) lavar as mãos com frequência; (2) respeitar algum distanciamento social; onde isso não for possível, (3) usar máscara; e (4) usar a aplicação telemóvel para rastreamento de contactos próximos. Perante o enorme desastre económico e social em que esta pandemia se ameaça materializar, estes quatro pontos não me parecem ser um enorme desafio. Consigo lidar com todos eles e vou sensibilizando quem me está próximo para fazer o mesmo.

Um dos pontos que mais confusão parece fazer à generalidade das pessoas é o uso voluntário da aplicação no telemóvel. Para além das teorias da conspiração que, de tão deslocadas não me merecem comentário, há muitas pessoas legitimamente preocupadas com a partilha de dados em linha. Ou seja, apesar de não ser nada de particularmente importante e de ser inutilizável em termos comerciais ou legais, ao usar a aplicação de rastreamento haverá mais dados a circular na internet. Não quero entrar em detalhes técnicos, mas quero apenas frisar que o sistema Android, que 86% da população mundial utiliza de forma nativa nos seus telemóveis, recolhe e partilha com os seus parceiros comerciais muito mais informação pessoal numa hora do que jamais será recolhida pela aplicação usada em Portugal para rastrear contactos.

Algumas das pessoas que vejo a hesitar na utilização voluntária da StayawayCovid não piscam os olhos para usar o Google maps, esse sim, devorador de dados pessoais. Então, qual o porquê da reticência em usar a aplicação de rastreio? Não sei a resposta. Aquilo que sei é que se a aplicação for usada pela generalidade da população será muito mais fácil detetar os casos chamados assintomáticos e, com isso, ajudar efetivamente a controlar a propagação da doença. Para mim, a verdadeira questão não é usar ou não a aplicação, mas sim porque demorou tanto tempo a estar disponível.

Algumas pessoas dizem-me que não usam voluntariamente a aplicação de rastreio de contactos porque estão fartas das ordens do regime e das tentações capitalistas. Estas mesmas pessoas dizem-me que querem lutar contra as tiranias do Estado e das multinacionais e… imaginem, propagam e organizam a sua ação através do Twitter! Não usam o StayawayCovid, uma aplicação que apenas serve para avisar as pessoas se estiveram recentemente próximo de alguém com a doença e que respeita o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia, mas espalham as suas preferências políticas e filosóficas num sistema comercial que vive da venda dessa informação. Custa-me muito a compreender…

Ao escrever estas linhas, pensei que era muito simpático ter um exemplo recente desta utilização dos dados pessoais por parte de redes sociais. No mesmo momento caiu a seguinte notícia no meu Google Chrome: “Facebook avisa que poderá ter de sair da União Europeia caso seja proibido de partilhar dados com os EUA” na sequência de “regulador de privacidade na Europa pretende proibir o Facebook de transferir dados de utilizadores” (Observador, 21 de setembro). Ou seja, o Facebook, que todos usamos quotidianamente, recolhe e exporta dados pessoais para outro continente e isso não preocupa a maioria dos cibernautas, mas a informação anódina e irrelevante que nos avisa se houver um contacto com uma pessoa infetada, isso sim, levanta preocupações. Não me faz qualquer sentido.

O uso voluntário da aplicação StayawayCovid parece-me ser uma decisão de básica sensatez. Dito isto, sou contra a obrigatoriedade da sua utilização. O Estado deve evitar intrometer-se nas decisões privadas e nos esforços pessoais voluntários. Deve explicar as vantagens do uso da aplicação, publicitar mesmo esses benefícios e estimular positivamente a sua utilização, mas jamais impor.

Penso que há um esforço pessoal a fazer para ultrapassarmos este período difícil que, neste momento, se materializa nos quatro pontos que menciono atrás. O que é mais difícil? Cumprir aquelas quatro regras ou ver alguém que nos seja próximo a sofrer com a doença e a economia a colapsar? Para mim, é tão simples que não hesito um segundo!

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Crónicas de Bruxelas – 81: Tiros nos pés? Não, obrigado!


Foto: F. Cardigos

Um pequeno à parte em jeito de introdução para explicar que este assunto me perturba particularmente. Eu sou mesmo muito ambientalista e fico possesso quando vejo alguns autoproclamados ambientalistas agirem contra os interesses do mundo natural. Para mais, neste caso, ainda me multaram!

Há uns dias informaram-me que na maioria da cidade de Bruxelas não se poderia circular a mais de 30 km/h. Essa medida foi promovida pelos partidos ditos verdes e, alegadamente, para limitar a poluição. Ora… Como explicar esta decisão sabendo que um carro polui muito menos se andar a 50km/h do que a 30 porque pode circular com uma engrenagem mais elevada?! Não querendo poluir e circulando tão lentamente quanto possível em quinta velocidade, eu fui multado. A uns “estonteantes” 36km/h, numa das avenidas da cidade capital da Bélgica e, para muitos, da União Europeia, eu fui multado. Está na lei e não cumpri, portanto, pague-se. Claro está.

Ter pessoas bem-intencionadas, mas sem a necessária competência técnica resulta em péssimas decisões. Não seria muito mais simples taxar a gasolina à proporção? Ou seja, quem gastasse menos combustível, poluía realmente menos e, desta forma, atingiam-se os objetivos iniciais.

Alguns amigos, perante esta proposta, dizem-me que a população se iria revoltar com mais taxas. “Foi o que aconteceu em França com os coletes amarelos”, referem. No entanto, o fenómeno dos coletes amarelos é muito mais complexo e resulta, essencialmente, do aprofundar do fosso geográfico, com a centralização de serviços públicos em terras distantes para obter otimização económica, e do fosso social. A classe média francesa está a ver diminuir a sua qualidade de vida e os seus rendimentos e, ao mesmo tempo, por exemplo, as grandes empresas tecnológicas de fora da Europa nem sequer pagam impostos naquele país… É realmente exasperante, mas penso que a questão do preço do combustível foi, simplesmente, o rastilho de algo mais profundo e importante.

Ao mesmo tempo, posso acreditar que não é verdade por uma razão simples: onde trabalho, o preço da gasolina desceu até 0,9 euros por litro e voltou a subir até 1,5 nos últimos meses e não houve qualquer revolução. Se as pessoas entendem que os preços variam de acordo com as regras de mercado, claramente, estas mesmas pessoas entenderiam se o preço variasse numa escala muito menor para recuperar o ambiente para si e para os seus filhos e netos.

Admito, talvez as taxas não sejam a melhor solução e haja outras ações mais adequadas para proteger o ambiente e respeitar o Acordo de Paris para as Alterações Climáticas. Aquilo que ninguém entende são as medidas (supostamente) ambientais que resultam em maior impacto ambiental! Isso, claramente, não faz sentido absolutamente nenhum.

Não é a primeira vez que sou confrontado com a incompetência bem-intencionada de pessoas ditas ecologistas (nada contra as pessoas verdadeiramente ecologistas, reforço). Quando trabalhava no Parlamento Europeu, fomos confrontados com uma nova técnica de pesca: pulse fishing (do inglês, “pesca por impulso elétrico”). Em termos simplistas, esta é uma arte de arrasto de fundo em que os peixes são capturados por uma rede em forma de saco em movimento depois de serem atordoados por um impulso elétrico.

Esta técnica estava em desenvolvimento pelos pescadores holandeses e, essencialmente por três razões, tem um impacto ambiental mais reduzido que a pesca de arrasto tradicionalmente usada para capturar pescado nos fundos marinhos. Primeiro, a arte mal toca no substrato: isto resulta num menor revolvimento, reduzindo a destruição de corais e esponjas ou, pelo menos, facilitando a sua recuperação após a passagem da arte. Ao mesmo tempo, em segundo lugar, como mal toca no fundo, as embarcações que rebocam a arte gastam muito menos combustível, logo, poluem menos. Em terceiro, como a arte emite um impulso e este pode ser modelado, apenas as espécies-alvo e do tamanho selecionado serão atordoadas e, em consequência, capturadas.

Os pescadores franceses, confrontados com uma técnica que não dominavam e que permitia capturar peixe muito mais barato (por não ser necessário tanto combustível) ficaram em pânico. Para minha surpresa, os poderosos ambientalistas franceses também se uniram aos pescadores, salientando, como ouvi numa conferência no Parlamento Europeu, que não se podia pescar com eletricidade porque “é mau”. Com esta argumentação “brilhante” e alguns erros processuais por parte dos holandeses, que se precipitaram antes de terem terminado os testes e esconderam a técnica (por causa das patentes), a nova arte, depois de discussões longas e ruidosas, foi mesmo bloqueada no Parlamento Europeu. É natural que seja totalmente abandonada nos próximos anos. Ou seja, os “verdes” conseguiram bloquear uma técnica Verde. Bravo!

Legislar e gerir com excelência o bem público é uma arte que não resulta apenas de boas intenções, até porque dessas está o inferno cheio… Para merecer o poder legislativo e executivo é necessário ter permanente bom senso, saber ouvir quem mais sabe e aplicar os conhecimentos com competência técnica e estratégica. Aproximando-se novas eleições, há que ler os programas eleitorais propostos e confrontar os candidatos com o seu conteúdo. É desta dialética entre a adequação do programa proposto com a nossa própria visão de futuro, a competência para o aplicar e a confiança que os candidatos nos merecem que deve nascer a decisão do voto. Fica a sugestão ou, como canta Sérgio Godinho, “cuidado com as imitações”.

O Grande Senhor da Ilha Azul!

 

Senhor Mário Frayão junto ao navio de investigação francês "Pourquois pas?"
Foto: F. Cardigos

 

Um dia, estando eu envolto numa terrível situação, procurei o Senhor Mário Frayão no sítio habitual. Precisava da generosidade das suas palavras. Por uma incrível sequência de acontecimentos, não nos encontrámos imediatamente e, pela primeira vez, senti a dor que me provocaria o dia em que partisse. Aqui está. Chegou o dia.

É difícil descrever a tristeza que se sente, o que nos vai na alma no momento em que sabemos que um verdadeiro amigo partiu. Custa-me resumir o que é grande e complexo, mas sinto que realmente perdi um pouco de mim com a má notícia que me acabaram de dar.

Tenho, neste momento, a nítida sensação que não termino na dimensão limitada do meu corpo, mas que me projeto no éter e todos os meus amigos são também parte de mim, como se fossemos todos um. A partida do Senhor Mário Frayão afeta-me fisicamente. Uma parte de mim partiu também. Olho para este pedaço abruptamente decepado e vejo apenas memórias. Vazio, silêncio, respeito, solenidade, ternura... saudade!

O Senhor Mário Frayão, entre muitas outras coisas, foi o grande fundador deste jornal, o Tribuna das Ilhas. Foi ele que convidou a maioria dos cooperantes que, ainda hoje, fazem parte da Cooperativa que sustenta o único semanário da ilha do Faial. É a ele que devemos, também financeiramente, a existência desta publicação. Uma entre muitas coisas que nos deixou este Grande Senhor da Ilha Azul.

Quando ele e eu nos sentávamos no Peter ou no Bar da Marina, ou qualquer outro local da cidade da Horta, mas invariavelmente ao domingo de manhã, semana após semana, o Senhor Mário contava-me histórias da sua incrível vida. Ele sentia especial orgulho pelos tempos em que andou de câmara de projetar ao ombro a exibir filmes nas Flores, num tempo em que a maioria das pessoas daquela ilha não tinham ainda tido a oportunidade de ver cinema. Para além da reação e do prazer das pessoas, preocupou-o e marcou-o a difícil vida dos florentinos.

Por razões nada edificantes para os responsáveis, o Senhor Mário teve que partir da ilha do Faial depois da Revolução dos Cravos. Durante anos viveu no Continente e sempre sem grande apego à vida que levou nos arredores de Lisboa. Raramente me falava desses tempos. Digo eu, estava apenas a tomar fôlego para voltar à cidade da Horta que ele amava da mesma forma abrupta, enérgica, proativa e comprometida como quando declamava os poemas de Vítor Rui Dores sobre a cidade-Mar.

Do meu lado, ele exigia-me que lhe falasse do oceano, da biologia dos animais marinhos e do futuro. Pedia-me que desse o mote para conversas sobre futuros plausíveis e, comentando ora um ora o outro, construímos cenários sustentáveis para a energia, o turismo, a agricultura e a cultura. Como o Senhor Mário Frayão gostava de cultura… do Conservatório, de música…

Nos dias em que tínhamos tempo, após a degustação do pequeno-almoço, partíamos para um passeio pelos arredores da cidade. Aí, algumas das suas aventuras ficavam ilustradas geograficamente e, em cada local, projetávamos imaginários parques, bairros e jardins. Dois “jovens” a imaginar dias vindouros nas paisagens idílicas que generosamente a ilha do Pico dá à ilha do Faial.

As suas memórias mais emotivas eram sempre dirigidas à sua esposa, que partiu muito antes dele. Com um carinho reverente, dizia-me que era a sua confidente, a pessoa que sempre o entendia e que se sentia absolutamente perdido sem ela. Ao longo dos anos, pareceu-me, foi encontrando nalguns familiares mais próximos e amigos o substituto possível para a dor e para a ausência.

Agora, hoje, soube que se juntaram novamente… É a fórmula de que abuso para amenizar a minha própria dor.

Até sempre Mário Frayão, o Grande Senhor da Ilha Azul!

 

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Crónicas de Bruxelas - 80: Só teu?

 
Ursula von der Leyen
(foto oficial)

Foi o Doutor Ricardo Serrão Santos, então diretor do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores, que me ensinou a fazer análise rápida de textos com recurso à contagem de palavras. Naquele tempo, há tantos anos…, os processadores de texto passaram a incluir a ferramenta word count o que facilitou esta abordagem. Para entender tendências, passámos também a fazê-la em bases de dados, motores de busca na internet ou em qualquer suporte de dados passível de análise estatística.

Passaram-se os anos e continuo a usar esse instrumento para compreender a importância dada a temas chave nos longos discursos de políticos ou ensaios de pensadores. No meu caso particular, tenho um lote de palavras base e suas variantes, como, por exemplo, “Açores”, “açoriano”, “natureza”, “natural”, “naturais” ou “mar”, “oceano”, “biodiversidade” ou “ambiente”, que procuro quase sempre. A estas acrescento outras, conforme o tópico. Também por exemplo, num discurso de Estado procurarei palavras que me são caras como “liberdade”, “paz”, “tolerância” ou “solidariedade”.

SOTEU é o acrónimo da expressão inglesa State Of The European Union (estado da União Europeia) e é um discurso anual feito pelo Presidente da Comissão Europeia perante o Parlamento Europeu e na presença da Presidência do Conselho. Este ano o SOTEU foi proferido por Ursula von der Leyen, a atual Presidente da Comissão Europeia.

Num discurso de mais de uma hora e três de debate, Von der Leyen não se escondeu atrás de subterfúgios redondos ou expressões políticas cinzentas. Tocou em todos os dramas da União Europeia como os “fluxos migratórios desordenados”, a “saída do Reino Unido da União Europeia” e os “atentados ao Estado de Direito com génese na própria União”. Para os problemas apresentou soluções ou comprometeu-se a encontrá-las com urgência.

Passar a redução de emissões até 2030 de 40% para 55%, como a Presidente se comprometeu, é de uma enorme coragem. Vai ser um esforço enorme, mas, ao mesmo tempo, é uma visão que nos obrigará a olhar para o hidrogénio com outros olhos. De distante desdém, teremos de compreender que é a crucial âncora para quem quiser fazer parte do futuro coletivo da União Europeia. Ao escrever este texto, sou acompanhado por uma lição, via webinar, sobre o que está a acontecer na Comissão Europeia nesta área e os números aproximam-se todos das centenas de milhões de euros. Está mesmo a acontecer! Este não é o momento de hesitar. É o momento de estudar com agressividade e abrangência, planear com visão e bom senso e investir com parcimónia e consequência. Mas avançar! Numa região em que, graças à geotermia, há energia em excesso, temos obviamente de seguir este caminho. Na iminência de ganharmos 1% do Fundo de Transição Justa para as regiões ultraperiféricas, é claro como o puro ar dos Açores que temos de considerar o hidrogénio como um companheiro sinergético. O próximo Hydrogen Valley terá de ser no nosso arquipélago!

Entendo que é necessário encontrar os sound bytes certos para motivar e mobilizar os europeus. No entanto, a insistência na menção às lideranças europeias, reais ou futuras, soube-me a uma abordagem meio populista. Se pudesse tirar uma parte do discurso era essa. Nós somos a União Europeia. Lideraremos o que tivermos para liderar, mas, essencialmente, somos bons, agimos por bem e somos solidários.

Usando a análise por palavras-chave que referia no início, encontramos no discurso 106 referências à “Europa”, 23 referências à “economia”, 16 referências à “liderança”, 15 referências à “saúde”, 12 ao “verde”, 10 à “energia”, 6 ao “clima” e ao “estado de direito” e há cinco referências ao “racismo” e à “liberdade” e 4 à “paz”, ao “hidrogénio” e à “solidariedade”. Há duas referências ao “mar”, uma associada às “migrações” e aos “refugiados” (6 + 4 referências), e outra por causa da “proteção do Ártico”, e uma às “pescas”. A “agricultura” merece duas referências, uma en passant. A “biodiversidade”, “ecologia” e “natureza”, enquanto repositórios de vida selvagem, não mereceram referências. O Atlântico apenas mereceu chamada de atenção quando a Presidente mencionou as relações EU-EUA. Ou seja, para além dos aspetos já mencionados atrás, em resumo, transparece uma preocupação climática e a sua relação com a economia (energia) num contexto de pandemia, mas secundarizando o capital natural e a conservação da biodiversidade.

Como corolário do que aqui expus, se me perguntarem se o SOTEU era “só meu”, direi que “não”, não era porque falha em temas que me são muito caros, mas, curiosamente, responderia facilmente que o SOTEU “é nosso”.

Só teu? Não. De todos? Sim, de facto!

 

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Crónicas de Bruxelas – 79: Acabar com os monopólios planetários estimulando as alternativas europeias

 
Jardim Leopoldo, no exterior do Parlamento Europeu.
Foto: Frederico Cardigos

Há uns dias escrevi que era necessário apoiar as empresas de sucesso europeias. Pode parecer um pouco contraditório, mas não. Temos de passar do simples sucesso ao mercado global. Hoje, dada a globalização e a falta de competição, as empresas ascendem com aparente facilidade a monopólios planetários muito pouco saudáveis.

Há diversos exemplos e não me quero estender ou tornar-me entediante, mas, apenas para estimular a curiosidade, será que quem me lê sabe qual é o sítio internet mais popular? Fácil, é o Google. E o segundo? Um pouco mais difícil, mas também se chegava lá. É o Youtube. Estes dois gigantes da internet têm muitas características curiosas. Uma destas características é que pertencem aos mesmos donos (Alphabet) e a outra, também muito curiosa, é que têm mais visitas do que todas as outras vinte empresas mais visitadas somadas. Apenas o Facebook se aproxima e, mesmo assim, a uma enorme distância destes gigantes.

Até aqui referi o nome de três empresas e um grupo. Qual a característica comum entre eles? São todos norte-americanos.

E é isto. Analisando as empresas que dominam a internet, temos empresas ou organizações norte-americanas ou orientais. Entre as 13 mais visitadas, podemos encontrar apenas duas europeias e ambas russas. Ou seja, da União Europeia ou mesmo do Espaço Económico Europeu? Zero! Como é possível?! Como podemos estar a falhar tanto naquilo que diz respeito à globalização? A resposta é complexa e não inclui a falta de apoios financeiros. Para as grandes empresas de sucesso, os sistemas financeiros têm as soluções adequadas. No entanto, a resposta para esta falha europeia inclui a falta do estabelecimento de metas e objetivos ambiciosos de alto nível, a falta de cultura de empreendedorismo e a falta de educação para lidar com o risco, o erro e a falha. Tudo isto é verdade, mas agora quero dissertar sobre outros dois grandes problemas: legislação e burocracia.

Para estimular as soluções arrojadas e disruptivas, temos de dar espaço à criatividade e à liberdade. Ao cair na tentação de tudo legislar, quartamos qualquer atividade que não esteja antecipadamente prevista. Desta forma, nós estamos a criar barreiras à inovação. Para o resolver, há que dar mais espaço à liberdade e, mesmo, ao risco e ao erro.

Como resultado da última vez que demos algum espaço ao vazio legal nasceu o Spotify (um dos poucos casos de sucesso informático europeu), sendo este herdeiro dos sistemas peer to peer que vingaram no início dos anos 2000. Explicando um pouco melhor, até ao final do século XX a maioria das pessoas ouvia música através da rádio e de dispositivos gravados como cassetes e discos (ambos com vários suportes e leitores). Com o aparecimento da partilha de ficheiros online, através de programas peer to peer, como o Napster ou o Kazaa, o público mais jovem passou a massivamente ouvir música a partir do computador via internet. Uma pessoa partilhava o ficheiro de música num sítio internet e os interessados iam a esse sítio ouvir ou descarregar o ficheiro MP3 gratuitamente. Evidentemente, os direitos de autor eram vergonhosamente atropelados.

Relativamente a estes sítios internet, nascidos da falta de legislação que os limitasse ou ordenasse, rapidamente se percebeu que promoviam a injustiça, penalizando os autores que assim perdiam os seus direitos, e foram terminados. No entanto, o rasto do sucesso da partilha de ficheiros de música promoveu a ideia de o fazer ordenadamente e legalmente.

Nós, europeus, ficámos com a música, apesar da concorrência saudável da Apple. Sim, a concorrência leal e legal é sempre saudável, já a falta dela... No rasto dessa partilha de ficheiros online, os norte-americanos estão claramente a ganhar a batalha do vídeo (Netflix, HBO e Amazon).

Mais do que remoer por que estamos a perder o streaming de vídeo, apetece-me enaltecer estarmos na frente no áudio. Ou seja, podemos ser bons e podemos liderar. Falta-nos libertar dos sistemas napoleónicos de governação que tudo querem prever e legislar. Ao contrário, temos de dar liberdade aos inovadores e dar espaço aos empreendedores. Criemos e sejamos férreos em regras de alto nível: “não fazer mal” (um dos motes da Google, diga-se), “respeitar os direitos humanos”, “proteger os trabalhadores”, “proteger o ambiente”, “pagar impostos” (coisa em que somos peritos em falhar no que diz respeito às grandes empresas), “cumprir as leis e regras já estabelecidas” e pouco mais. Em caso de necessidade, deixemos a interpretação dos detalhes para o bom senso e para a justiça. Como nos sistemas anglófonos, acompanhemos construtivamente quem tem boas ideias, atuando onde precisam para irem mais longe, estejamos disponíveis para equacionar as regras que os próprios empreendedores pedirem, para, por exemplo, dar a estabilidade legal suficiente. Depois, fiscalizemos a posteriori, e aí sem piedade. Quem se aproveitar ilegalmente da liberdade dada deve ser altamente penalizado.

Quero ilustrar um pouco mais o que se passa em termos de legislação e burocracia excessiva na Europa. Quando estive ligado à investigação científica calculei que 30% do tempo pago para investigação era, na realidade, usado em burocracia. Entre relatórios trimestrais, anuais e finais, justificação de despesas fatura a fatura e acompanhamento dos fiscais da União Europeia (“auditores”, em europês) usava-se 30% do tempo (e dinheiro, claro) que era dado para a investigação. Mas… Obviamente, o financiamento era dado para investigar e não para a burocracia associada. Então como fazer?! Simples, trabalhava-se mais. Qualquer investigador em Portugal e nos outros países da União Europeia, naqueles anos, trabalhava 130% do tempo previsto e obtinha bons resultados científicos. Era assim e faziam-no apaixonadamente. No entanto, não era vida! Trabalhar sem a respetiva remuneração devia ter ficado fechado a sete chaves no tempo em que havia escravidão. Não é para os dias de hoje na União Europeia que queremos construir!

Claro que era muito mais simples atribuir os apoios de acordo com os objetivos estabelecidos e, no final, verificar o cumprimento desses objetivos. Se tiverem sido atingidos ou excedidos, o processo ficaria fechado. Que me interessa, enquanto cidadão europeu, se o cientista comprou um pacote de pastilhas elásticas porque sofre de dores de ouvidos nas viagens de avião, como tristemente vi auditarem? O que me interessa é que os cientistas descubram rapidamente a vacina para a covid-19! Focar no importante e deixar os preciosismos de lado.

Felizmente, entretanto, melhorou e já não se exige tanta burocracia aos cientistas. Mas o bichinho carpinteiro no legislador continua a existir. O que se passava na investigação científica arrasta-se tristemente a todas as atividades. Há uma enorme tentação em complicar o que é simples e de desconfiar de todos os seres humanos.

Nesta aproximação alternativa, no caso de não terem sido atingidos os objetivos propostos na sequência de qualquer apoio europeu haveria que ser muito agressivo na fiscalização. Esse seria o procedimento lógico e é por aí que temos de ir no futuro. Refiro apoios, mas, na realidade, isto deve ser aplicado a todos os níveis. Nós não podemos ficar reféns dos super-burocratas e das pessoas complicadas. Mas há tantas…

Ou seja, em resumo, há que reforçar as administrações para garantir o acompanhamento sinergético dos investimentos, garantir a regulação, incluindo a orientada para o mercado financeiro onde já falhámos diversas vezes, garantir a fiscalização incisiva no caso de alguma anomalia real ou potencial, reforçar a competência e celeridade da justiça e garantir a existência de excelentes legisladores que criem as regras necessárias para que as novas ideias possam proliferar em segurança. O brio do legislador deveria ter também por premissa não limitar ou complicar os direitos e liberdades exceto se absolutamente necessário. Afirmam alguns legisladores que a liberdade pode aumentar o risco social. Ou seja, se as empresas estiverem mais limitadas haverá menor probabilidade de acontecer um qualquer acidente. É verdade, mas se mantivermos este caminho dificilmente teremos inovação e empreendedorismo disruptivo. Por exemplo, com as nossas regras europeias, alguém crê que a Uber poderia ter nascido na Europa? Impossível!

Hoje, uma parte muito significativa do comércio mundial, incluindo das nossas PME, está nas mãos da Amazon. Qual a alternativa europeia?! É grave. Temos que aprender em casa, mas as plataformas de vídeo que usamos são o Teams, Zoom, Skype, WebEx, GotoMeeting… Europeias? Não.

Estamos na véspera de novas revoluções, como o Hidrogénio, o Mercado de Carbono, a Inteligência Artificial e outras que nem imaginamos nos nossos mais recônditos sonhos. Que fazer? Vamo-nos enredar em legislação ou estimular o nosso próprio sucesso assente em liberdade? Portanto, desburocratizemos. Assumamos que há algum risco e, com responsabilidade individual e coletiva, vivamos em plenitude a aventura da vida!