terça-feira, 26 de dezembro de 2000

Entrevista dada à Revista Mundo Submerso

Introdução


Em muitos locais do mundo, e para que uma determinada zona seja favorecida ou conhecida pelas suas imersões, inúmeros centros de mergulho ou alguns particulares, optam por alimentar algumas espécies mais sedentárias que após algum trabalho acabam por ficar quase residentes e tolerantes à aproximação do homem.

Praticamente todos os mergulhadores conhecem métodos para fixar ou chamar atenção de um determinado peixe numa dada ocasião. Com o crescimento da actividade do mergulho, as solicitações aos operadores e centros de mergulho são cada vez maiores. Por consequência esses peixes mais sociáveis acabam, também eles, por receber mais atenção do "alimentador" levando a situações por vezes caricatas. Em determinado momento, no Mar Vermelho, alguns peixes napoleões foram intensivamente presenteados com ovos cosidos. Chegavam a comer dezenas por semana. Fora do seu padrão alimentar, mas sem dúvida deliciosos para aquela espécie, os ovos foram os causadores de um elevado nível de colesterol no organismo e, como consequência, a morte de certos exemplares. Este foi talvez um dos pontos de viragem na acção de alimentação e comportamento do homem dentro de água em contacto com a natureza.

Como a interacção com o meio ambiente é delicada é natural que se criem muitas vezes posições extremistas. O "feeding" (alimentação) passou a ser um acto reprovado e em alguns casos quase de dimensão "criminosa" em determinadas áreas do mundo.

Desde que enquadrado, e respeitando algumas regras, alimentar os peixes e tocar neles é certamente viável e aceitável. Vejamos o que alguns mergulhadores experientes e conhecedores destas situações nos dizem sobre estas situações.


Mundo Submerso - Quais os grandes inconvenientes de alimentar os peixes regularmente numa determinada zona?


Frederico Cardigos - O grande inconveniente é a alteração do comportamento natural. Isso tem consequências a dois níveis: sobre o animal e sobre os humanos. Ao nível dos animais pode acontecer que estes fiquem condicionados à alimentação externa e percam a capacidade de encontrarem comida por eles próprios. Isso pode ser grave para a sobrevivência dos indivíduos em caso da fonte cessar. Por outro lado, os desequilíbrios da cadeia trófica podem ter consequências de alguma gravidade para o funcionamento do ecossistema. Normalmente a espécie alimentada é favorecida e todas as outras ficam prejudicadas (a justificação científica para isto não cabe aqui). Também pode suceder que a dieta fornecida não seja a mais adequada e isso prejudique directamente a espécie alimentada. Aquilo que para nós é delicioso raramente coincide que com a dieta que seleccionou a espécie em causa durante milhares de anos.

E ao nível humano? De uma forma muito pragmática um animal alimentado é um animal com comportamento adulterado. Ou seja, se nós temos o trabalho de ir para dentro de água, cheios de equipamento, para ver a "natureza" estaremos a ser enganados no caso de animais alimentados. Isso não é a "natureza" é apenas um jardim zoológico em que os animais em vez de terem grades e correntes têm um outro tipo de condicionante, os "doces". Se quisermos ver a natureza como ela é teremos de dar-lhe a liberdade de decisão, sem condicionantes, como ela é. Por outro lado, um animal é sempre um animal... E quando alimentado vai passar a associar a presença do alimentador (você!) à comida gratuita. Se não lhe der comer, ou na quantidade suficiente, ele vai ficar irritado... Num caso de um animal de grande volume a irritação pode ser altamente desanconselhável... Outras vezes, você pode ser confundido com a comida ! Isso sucede com moreias condicionadas. Elas estão habituadas a ser alimentadas com salchichas... É tão giro... Até ao dia em que se esquece de levar as salchichas. Nesse dia os seus dedos podem passar a ser as salchichas. Isso pode ser MUITO desagradável. Felizmente, raramente acontece.

Mas vamos ao caso extremo. Os tubarões! Com a excepção de certas espécies mais vorazes e agressivas (tubarão branco e tigre), todos eles encaram os humanos com um misto de medo e curiosidade. Mas se os alimentarmos teremos oportunidade de os vermos com um comportamento algo diferente... Passarão ao comportamento alimentar e em vez de curiosidade terão fome e em vez medo passarão a ter agressividade. Pode ficar no meio de uma situação muito desagradável e nesse caso... cuidado com os dedos!

Então quando é que é aceitável alimentar os animais ? Raramente, na minha opinião... Mas há certos fins que podem justificar os meios... Brrr, eu não devia estar a escrever isto... Por exemplo, se quiser encher a objectiva com um peixe esquivo, como um peixe-cão, ficará com o trabalho facilitado se puser entre os dedos (fora do campo da objectiva, claro!) uma pequena recompensa. Claro que não é natural, claro que é reprovável, mas o efeito desta foto poderá enfatizar o sentimento de simpatia que certas pessoas têm sobre o mar e ajudar a tomar atitudes na sua defesa (utilização para educação ambiental). Claro que a fronteira entre um comportamento aprovável ou condenável ficará apenas dependente da consciência de cada um. Admito que quando comecei a fotografar cheguei a sacrificar ouriços para atrair alguns peixes. Essa atitude parece-me hoje digna de bárbaros... Mudam-se os tempos...


MS - É possível encontrar alternativas para fixar, ou manter um determinado peixe, ou peixes numa dada região?


FC - Claro que sim. A enorme simpatia e insistência da maioria dos humanos é hiper-cativante, não apenas para o sexo oposto, mas também para a maioria dos seres vivos. Seja você mesmo, insista nas visitas e de acordo com a espécie em causa tenha comportamentos adequados. Claro que não espere que numa zona em que haja predadores humanos (leia-se caçadores submarinos) os peixes tenham um comportamento particularmente amigável. Ou seja, para que numa zona os animais tenham naturalmente um comportamento sedentário e "amigável" tem que ser uma zona protegida. Daí passamos para as perguntas realmente importantes: "Para quando as zonas marinhas realmente protegidas neste país ?" Até os caçadores submarinos estão à espera disso por duas razões: primeiro, eles, mais do que ninguém amam o mar, e sabem que a pesca (toda a pesca) está completamente descontrolada. Segundo, sabem que as zonas de reserva fomentam zonas de fronteira (em relação às áreas protegidas) com belíssimos e deliciosos exemplares. Aqui fica o desafio! Fomente-se um debate amplo neste espaço sobre as áreas marinhas protegidas! Sendo esta uma revista de amantes do mar, porque não começarmos a falar em quais as zonas a proteger e principalmente porquê. Se as zonas protegidas forem propostas pelos próprios predadores (leia-se pescadores e caçadores), pelas pessoas que conhecem realmente o mar, será muito mais simples do que decisões arbitrárias e matemáticas provindas de obscuros gabinetes. Aliás essas decisões raramente têm depois uma verdadeira implantação no terreno. A Ilha do Corvo, Açores, lançou o mote. Pescadores profissionais, agentes turísticos e caçadores submarinos puseram-se de acordo e protegeram VOLUNTARIAMENTE uma certa zona. Não foi e não são necessárias leis. Aliás as áreas marinhas protegidas (AMP's) estavam previstas fora desta zona e são, desta forma, os locais que irão fazer com que elas sejam alteradas. É que as AMP's podem ser feitas pelo povo e para o povo! (onde já ouvi isto?)


MS - Hoje em dia inúmeros mergulhadores gostam de tocar os peixes ou outros seres marinhos, é certamente uma forma de os sentir mais próximos, íntimos. Em muitos locais do nosso planeta este acto é proibido. Existem de facto serias razões para o fazer?


FC - Existem! Tocar nos animais pode ter um efeito muito perverso. Mas isso não significa que não se toque em nada. Mas siga duas regras muito inteligentes: não toque em nada que não conheça (para se salvaguardar de por a mão em cima de um peixe escorpião, por exemplo) e antes de tocar em algo que conheça aprenda quais vão ser as consequências para o indivíduo que pretende tocar. Se tocar num coral estará a condená-lo e como eles não estão em boas condições (por outras razões, diga-se) seria mais uma achega para a condenação. Na maioria dos bons Centros de Mergulho há "briefings" antes dos mergulhos sobre segurança e ecologia. Esteja atento e respeite as regras indicadas pelos guias. Isto leva-nos a outra conversa paralela: para quando a certificação dos Guias de Mergulho. Não estou a falar em leis e obrigações, mas fazerem-se acções de formação na área da Ecologia para que os Guias de Mergulho tenham conhecimentos detalhados sobre o que se deve ou não fazer debaixo de água, quais as relações entre os diversos animais e o que significam os diversos comportamentos. Muitas vezes estes indivíduos são hiper bem intencionados, mas não sabem e, por falta de orientação no mergulho nacional, continuam sem saber. Isso seria proveitoso para os formandos, mas também para os formadores, porque a informação de quem anda no terreno é muito valiosa e importante. Fica o desafio, desta vez é para a FPAS!

Mas os humanos são animais tácteis e também pertencemos à Mãe natureza. Temos o direito de tocar e a natureza tem que estar preparada para nós, visto que fazemos parte dela! Falemos então de exemplos práticos. Não toque nos corais, nem mexa nos ouriços (leia as "Delicadezas..." do MS anterior). Passe as mãos pelas algas ao de leve. Isto provoca um Efeito de Perturbação Intermédia que é muito proveitoso para a natureza (isto pode não parecer, mas é mesmo científico). Tenha, claro, cuidado não vá estar uma "surpresa" no meio das algas.

Toque, se conseguir (eh, eh...), em peixes e mamíferos marinhos! Esteja atento, seja calmo e cuidadoso. Estes animais adoram ser tocados, mas odeiam exageros. Os mais puristas defendem, e têm toda a razão, que tocar num animal é de certa forma condicioná-los, mas e daí ? Estamos a condicioná-los a nós, seres tácteis, e nada mais. O efeito mais perverso que isso terá é que os animais em causa poderão gostar. Os meros do Corvo gostam tanto que perseguem os mergulhadores em busca de festas! É tão bom ! Se tiver essa oportunidade faça, mas tenha cuidado com o sentido das festas. Sempre da cabeça para a cauda. O efeito da passagem da mão é retirar os ectoparasitas (vulgo pulgões). Se o festejar em sentido contrário poderá retirar-lhe algumas escamas e fazer com que o mero fuja!

Claro que o supra-sumo de tocar é ter a oportunidade de dar uma voltinhas no dorso de uma jamanta. Mas isso não é para os mortais...

Por falar em tocar, tenha cuidado com as SUAS próprias barbatanas! Não há nada mais demonstrativo da caloirice e/ou falta de educação de um mergulhador do que ver um rasto de poeira (e por vezes de inocentes animais) atrás de candidatos a Mergulhadores.


Entrevista dada à Revista Mundo Submerso