O Inverno é uma época maravilhosa para ter ideias, fazer planos, enroscar no cobertor, usufruir da lareira e desfrutar do descanso; ou seja, não fazer nada. Agora que começa a Primavera, tal e qual lagartos, começamos a esticar as pernas, movidos pelos primeiros raios de Sol que às vezes aparecem, num lento espreguiçar, e começamos a pensar na acção.
Ainda estava meio estremunhado, quando um colega me pediu ajuda para efectuar uma necropsia a uma baleia-de-bico na Ilha do Pico, Açores. Arrastando-me para fora do meu conforto faialense, lá fui meio contrariado porque, afinal de contas, o Inverno ainda não tinha acabado; ainda estava em hibernação.
Fizemos o trabalho, quer dizer: ele fez quase tudo, eu limitei-me, qual enfermeiro-instrumentista, a passar os diversos instrumentos que ele ía precisando. Seis frascos e meio litro de formol depois, a coisa estava arrumada. Não havia respostas sobre a causa de morte para a baleia-de-bico, apenas diversas suspeitas. Estas serão mais tarde clarificadas através da análise das amostras recolhidas.
Ali estava então eu e o meu colega Rui Prieto na ilha montanha. A meia-tempestade empurrava o mar contra a costa e dei comigo a pensar com os meus botões: porque raio é que fico em casa no Inverno? Como é que posso deixar escapar toda esta beleza do mau tempo em movimento, recolhido em casa, fazendo inúteis estatísticas sobre o número de manifestantes contra a guerra que se amontoam por esse mundo fora?
Comentário lateral, mas irresistível: já repararam como os políticos fingem ignorar os apelos à paz? Curioso, não é?
Voltando à nossa Ilha do Pico. Naquele amontoado de vento e ondas pensei como é que os cetáceos enfrentarão esta confusão. Um outro colega meu, em tempos embarcado como observador num pesqueiro, relatou-me que o único vislumbre de normalidade que viu no meio de uma enorme tempestade foi “um grupo de golfinhos a surfar no meio das ondas”. De facto, os milhares de anos de adaptação ao meio marinho devem ter-lhes conferido formas de resistência a estas situações aparentemente extremas. Ou então ele estava com visões... É possível.
Noutro contexto, esse seria um enorme motivo de discussão. Mas não naquele Inverno. O tempo passou mais devagar e abriu espaço para os pensamentos soltos, sem origem nem importância. (o “tempo a abrir espaço!!” Se o meu professor de física lesse estas linhas...)
Descobri que o turismo de Inverno é impecável (sim, senti-me um autêntico turista)! Não há muita gente nos hotéis, mas as pessoas que por lá andam sabem apreciar os pequenos momentos, o silêncio, as ideias inúteis, as conversas em surdina, o vento, as tempestades... Por outro lado, os funcionários tentam cativar aqueles seres estranhos que, por uma razão ou por outra, ali foram parar. Foi assim na Aldeia da Fonte no Pico e acredito que o mesmo se passe noutros sítios.
Estava tão embrenhado a saborear os sofás da “sala de fumo”, que nem me lembrei que a violência deste Inverno deve estar relacionada com uma mudança global terrível e, potencialmente, irreversível. E que este Inverno incomodou tantas pessoas com as cheias, o frio, etc. Ali, o tempo parou. Desfolhei uma antiquíssima revista da National Geographic onde li um interessantíssimo artigo sobre arqueologia subaquática. Aprendi como se mergulhava nos navios afundados na época dos descobrimentos e guardei a importante informação de que havia um mergulhador que ainda mergulhava dessa forma. Metia-se dentro de um pesadíssimo sino e descia até aos 30 metros! Depois tinha 20 minutos de ar dentro do sino e operava em apneias sucessivas: sino-inspira-operação-sino-expira. Nem me ocorreu perguntar à revista se não haveria problemas de descompressão... Tudo me pareceu tão fácil e leve...
A saída da normalidade tem estas vantagens: pensamos nas coisas de forma diferente, arrumamos as ideias e re-organizamos as prioridades. No nosso país, apesar de tudo, temos a vantagem de ter um Inverno ameno que permite sair, abrir os braços e inspirar fundo. E, na verdade, respira-se tão bem durante o Inverno em Portugal.
Publicado na coluna "Casa Alugada"