Todos os anos paro de mergulhar durante 2 a 6 meses. Não é propositado, mas de facto olhando para os registos, verifico que, de forma consistente, faço uma paragem de Inverno. Deixo de mergulhar entre Novembro e Dezembro e volto a mergulhar de Fevereiro a Maio. As excepções a este padrão são mínimas. Os motivos estão relacionados com as condições meteorológicas, adversas nesse período, na zona onde vivo.
Se bem que já disso me tivesse apercebido, só este ano, quando ao recorrer à caderneta de registo para planear o meu primeiro mergulho de 2003, verifiquei o referido padrão ou, melhor, a periódica pausa.
Lá estava escrito que o primeiro mergulho dos últimos anos tem servido para testar o equipamento e pouco mais. Enquanto o último mergulho do ano não é minimamente equacionado - não vamos para dentro de água a pensar que aquela irá ser a última oportunidade de submergir durante alguns meses - o primeiro mergulho tem algumas características constantes: mergulho fácil, com equipamento rodado, companhia experimentada, muito frio, etc. e um toque de surpresa ou de improviso causado pelo ambiente ou por falência do equipamento a ser testado (quando é caso disso).
Este ano, por exemplo, vi alguns rocazes e lagostas (não há perigo de partilhar esta informação, porque quando o artigo for impresso as lagostas já estarão no seu habitat de Verão, lá bem mais fundo). As lagostas são presenças habituais nesta época do ano, mas os rocazes não. Pode parecer pouco, mas lá estava o factor surpresa.
Apesar de me arrepender amargamente, apenas comecei a registar os mergulhos de uma forma sistemática em 1996. Até aí, há um hiato polvilhado por informação dispersa. Não me recordo de quando, onde e como mergulhei. Aqui fica um conselho aos novos mergulhadores: registem sempre as vossas imersões. Se o não fizerem, perderão algumas estórias nos recantos perdidos da memória. É triste, mas de 1987 a 1996 tenho nove anos de mergulhos meio esquecidos. Um ou outro fui recuperando pelos registos dos meus colegas, mas, na realidade, estão tantas memórias por recordar...
O meu primeiro mergulho a sério, com escafandro autónomo, foi em Sesimbra, num qualquer dia de 1987, com o CPAS, na primeira aula prática de mar do meu curso. Não me esquecerei jamais; e essa imersão não está registada na caderneta. Comparativamente com a maioria dos outros mergulhos, foi péssimo. Má visibilidade, fundos muito pobres, sem algas e sem peixes. Lembro-me perfeitamente que não vi um único peixe! Seria, provavelmente o resultado da sobre-exploração ou consequência do terror que a aproximação daquele grupo de inaptos causou na população piscícola local... Sim, ninguém começa por mergulhar bem e nós não seríamos a excepção. Mas a liberdade de nadar livremente e sem limitações no meu meio favorito, é algo que nunca irei esquecer. A calma do meu monitor de mar, o Paulo Cardoso, foi contagiante e senti uma paz e uma serenidade que nunca tinha sentido. "O mergulho isola-nos, pois a comunicação é difícil, e dá-nos espaço para sermos apenas nós, a presença dos outros serve apenas para nos tranquilizar, nada mais." pensei eu. Por razões de trabalho, tive que mudar um pouco a atitude. Foi necessário começar a "consertar" os problemas de comunicação.
Houve cinco factores que desde 1987 melhoraram as condições de mergulho, mas que, de certo modo, estragaram a sua poesia: o colete, o computador de mergulho, as scooters subaquáticas, o fato seco e o sistema de comunicação áudio. O primeiro foi excelente! Passou a ser possível equilibrar o corpo dentro de água sem grandes preocupações de levar o peso certo para a profundidade de trabalho. Se já antes o mergulho era fácil, daqui por diante qualquer pessoa passou a poder mergulhar. Hoje em dia, raros são aqueles que dispensam esta peça de equipamento. E mesmo os que o dispensam, acabam por utilizá-lo nos mergulhos mais profundos ou complicados.
O segundo melhoramento também é totalmente positivo. Imagino que o número de acidentes em mergulho tenha descido muitíssimo após a generalização do computador de mergulho. E se não desceu também em termos totais, na minha opinião, foi porque abriu a "porta do mar" a um enorme grupo de pessoas que até aí considerava o mergulho demasiado radical. Ao democratizar o mergulho, tornou-o banal, ao alcance de qualquer um. Nós, os mergulhadores, deixámos de ser um grupo selecto de aventureiros, cujo o apogeu se deu ao mesmo tempo que o "Grand Bleu" era editado, ou mesmo antes disso, com "As Aventuras do Comandante Costeau" para passarmos a ser apenas mais uns...
As scooters estragaram o silêncio. Sim, é evidente que nos possibilitam cobrir uma área muito maior e em pouco tempo. Para o trabalho é formidável, aumenta a segurança e diminui a fadiga. Mas é terrível estar dentro de água, habituado a "ouvir" o silêncio e passar um "fórmula um"...
Depois veio o fato seco. Esta peça é horrível! Sai-se dentro de água como se entrou. Saímos pouco cansados, sequinhos, prontos para vestir o smoking e ir para a cerimónia dos óscares, como se não estivéssemos estado na água, no meio da grande aventura. É o divórcio do mergulhador com a água. Felizmente, só é utilizado excepcionalmente, nos dias de muito frio.
Finalmente, apareceram os sistemas de comunicação áudio. É a última estocada na poesia e isolamento do mergulho. Um dos meus últimos mergulhos de 2002 já foi feito com música de fundo. Nem queria acreditar que estava a 25 metros de profundidade a filmar não-sei-o-quê e a ouvir as "Ketchup", com que o meu skipper me decidiu brindar!
Estas cinco peças facilitaram o mergulho de tal forma que este já deixou de o mergulho que conhecemos e de que sempre gostámos. Por decisão consciente, apenas utilizamos os três últimos equipamentos quando são mesmo imprescindíveis. Queremos o velhinho mergulho aventureiro de volta!
Em 2001 estive a visitar uma empresa que se dedica, entre outras coisas, a fabricar equipamentos de mergulho para a marinha inglesa. Nesse período, eu tomava apontamentos num pequeno computador portátil da Toshiba, o Libretto. Quando eles o viram, pediram-mo emprestado para tirar umas medidas. Depois, por cortesia, explicaram-me um pouco do que estavam a fazer. Não posso referir os detalhes porque obviamente não me foram ditos, mas, basicamente, neste momento já deverá ser possível ter militares ingleses, com colete, computador de mergulho, fato seco, deslocando-se de scooter, a discutir os avanços da guerra por vídeo-fone em directo para a "BBC News" on-line e a escrever, em simultâneo, uma mensagem de correio electrónico a desmentir a "Al-Jazira". Tudo isto a partir dos fundos das águas ao largo de Umm Qasr (Sul do Iraque). Independentemente da tristeza que é uma guerra, espero que não seja este o futuro do mergulho, porque a diferença entre isso e ficar em casa a ver na televisão um programa sobre o mundo submerso é, se calhar, muito pouca.
Publicado na coluna "Casa Alugada"