Um amigo meu estava a passear numa Área Protegida quando se deparou com um sinal muito pouco comum e deveras agressivo “Reserva Integral – Acesso Interdito”. Para tentar perceber o que estava a ser protegido perguntou a um dos Vigilantes da Natureza para que é que a sinalização estava ali colocada. A resposta foi ainda mais inesperada: “não lhe posso dizer”. “O quê!? Não posso entrar nessa área do território português e o senhor não me vai informar porquê?!”
Esta conversa decorreu a meio dos anos 90 em Portugal. Em certas Áreas Protegidas havia instruções muito claras no sentido de não informar o cidadão. Pensava-se que o cidadão, ao não conhecer fosse qual fosse o valor ambiental protegido, teria mais dificuldade em destruí-lo. Entretanto algum tempo passou e tornou-se insustentável manter “o povo na ignorância”: Passou-se pois a uma fase mais inteligente. Educa-se no sentido de instruir as pessoas para que entendam o valor da preservação. Passou a haver mais Centros de Interpretação, Ecotecas e outras estruturas relacionadas com a educação ambiental. Nestas estruturas são transmitidas mensagens, através de jogos e demonstrações, sobre os valores ambientais e qual a razão da sua protecção. Digamos que os dirigentes perceberam que o risco de destruir por desconhecer é tão grande, ou maior, do que o risco de intencionalmente destruir os valores existentes.
Por exemplo, a existência de flora endémica na Costa Vicentina impede a construção nessa área. Um qualquer construtor civil sem escrúpulos ficará encantado se a razão que leva à impossibilidade de edificar nessa zona idílica for destruída. Mas, já não ficará tão satisfeito quando perceber que a cura para a doença de um seu familiar se encontrava no genoma dessa rara planta que apenas existia na Costa Vicentina e que um vândalo acaba de varrer da face da terra. Não é a única razão para preservar, mas é fácil de compreender que uma das razões que leva à protecção de certas áreas ou espécies está relacionada com a nossa felicidade colectiva a médio e longo prazo.
No meio marinho há inúmeros exemplos de espécies que contêm os chamados componentes bio-activos e que poderão servir para encontrar soluções farmacológicas para algumas doenças. O mais interessante é que em cada estudo que se faz, se encontram mais respostas com potencial uso clínico. Em resumo, é mais seguro preservar.
Claro que haverá sempre loucos que pensam que ficarão na história se destruírem um bem precioso. Também por essa razão o quadro Gioconda de Leonardo da Vinci está tão bem resguardado no museu do Louvre. No entanto, não foi razão suficiente para não o mostrar. Ou seja, as pessoas têm acesso apesar de serem tomadas medidas para que o bem em causa continue a existir. Na natureza é a mesma coisa. Há espécies e habitats razoavelmente resguardados, mas têm de ser criadas formas de as mostrar para que o cidadão as reconheça, as valorize e as estime.
No Brasil, no Arquipélago de Fernando Noronha (onde um dia sonho estar...), há uma baía severamente protegida. Tem por nome a Baía dos Golfinhos. Essa área é privilegiada pelos golfinhos-rotadores (Stenella longirostris) para a sua reprodução. Tanto o acesso por terra como por mar está severamente condicionado. No entanto, isso não significa que não se possa ver esta espécie nesse local. Foi construído um trilho muito resguardado que permite aos seres humanos vislumbrarem a área sem in comodar os animais. Pelo facto de ser ambientalmente aceitável na maioria dos valores que possui, este Arquipélago é reconhecido como uma das melhores áreas protegidas do mundo. O turismo que isso gera é tão elevado que existem taxas para os visitantes poderem aceder à área por forma a não prolongarem por muito tempo a sua estadia. Em resumo, é-nos muito lucrativo preservar.
Portanto, desde que se criem as regras para que as espécies e áreas possam ser utilizadas pelos seres humanos, apenas existirão as restrições indispensáveis e, de qualquer forma, claras.
Na ilha da Madeira vive uma das espécies mais raras de aves da Europa, a freira-da-madeira (Pterodroma madeira). Existem apenas 40 casais desta espécie. Evidentemente que a transmissão de um simples vírus pode ser fatal para esta população. No entanto, isso não implica o desconhecimento. Até pelo contrário, caso qualquer pessoa encontre este animal e não o conhecer poderá pensar que é outra espécie Pterodroma e não lhe dar a importância que a sua fragilidade ecológica implica. Foi aliás por este desconhecimento ser tão elevado aliado à necessidade de melhorar a vigilância militar, que se chegou a equacionar a instalação de um potente radar na área, o que poderia ter extinguido a população e a espécie. Portanto, há que conhecer para poder preservar.
Neste sentido, um Presidente de uma Junta de Freguesia dos Açores, o Sr. Carlos Carepa dizia, com enorme pertinência, nos Encontros de Porto Pim (organizados pela Direcção Regional do Ambiente); “Como querem que a minha população preserve o Monte da Guia (Ilha do Faial) se não fizermos ideia do que está a ser protegido? Como poderemos colaborar?!”
Mas mesmo eu vejo alguns limites. Há uma espécie de planta da qual em todo o mundo há apenas um genoma (ver Notas). Como algumas plantas se podem reproduzir assexuadamente (sem necessitar de par), o facto de existir apenas um genoma não significa o fim da espécie. Esta planta tem-se assim dividido e apenas em volta de um único charco no mundo. Aí diversos indivíduos, exactamente iguais, continuam a existir. Caso alguém mal intencionado destrua aquela população, acaba-se uma espécie. A situação é de tal forma frágil que o local não está protegido, havendo apenas um grupo de pessoas que, informalmente, o visita periodicamente para se certificar que este organismo não desaparece. Como esta, haverá diversas situações por esse mundo fora. O que fazer? Divulgar e condenar a espécie ao vírus transportado por um qualquer curioso? Ou manter o segredo até que a planta volte a diversificar o suficiente? A resposta não é nada fácil. E fico aliviado por não ter que ser eu a decidir.
Entre a situação de espécie livre de perigo e a situação de extraordinariamente ameaçada há uma grande diferença. Da decisão sobre as eventuais restrições a implementar num ou noutro caso deve sempre beneficiar o valor ambiental em causa. Mas nunca esquecendo que a melhor forma de preservar é, por norma, utilizando.
As ilhas do Corvo e das Flores são as que, nos Açores, apresentam maior índice de endemismos na flora terrestre. Os motivos podem ser muitos, mas neles incluem-se certamente o baixo nível de uso do solo para a agricultura e a falta de criação intensiva de gado. Se assim é, imagine-se o número de espécies que se perderam nas outras ilhas dessa região autónoma? E por este país fora? Quantas soluções farmacológicas? Quantos benefícios para o eco-turismo?
Notas:
Agradecimento ao Professor Eduardo Dias por me ajudar a entender os dilemas e as soluções na conservação da natureza terrestre.
Genoma: Conjunto completo dos factores hereditários.
Publicado na coluna "Casa-Alugada"