PARTE 1 - Depois de vários acidentes terríveis como os mais recentes casos do “Erika” e do “Prestige” poderíamos pensar que a navegação europeia e, em particular, as estruturas de gestão da navegação em Portugal teriam retirado os devidos ensinamentos e adoptado práticas mais adequadas para lidar com embarcações em apuros ou acidentadas. Eis senão quando, no dia 9 de Dezembro de 2005, o porta-contentores “CP Valour” “dá a costa” na Ilha do Faial, no sítio da Praia do Norte. O que aconteceu é inimaginável e implica tantos erros para poder ter ocorrido que até me custa a crer… Mas que lá está, lá está – mais ou menos como as bruxas espanholas. Primeiro, o navio terá tido uma avaria. Não se sabe ainda bem qual a avaria, mas o que é certo é que o navio solicitou autorização para se aproximar de terra porque tinha um qualquer problema e precisava de fundear para efectuar a reparação. A autoridade marítima deu a respectiva permissão, mas, pasme-se, o navio encalha a cerca de meia milha do ancoradouro assinalado na carta de navegação. Não irei dissertar sobre a pertinência da decisão de autorizar um navio em dificuldades em se aproximar de terra porque não sou especialista no assunto. No entanto, um navio de 180 metros de comprimento, 16 mil toneladas de peso (para além da carga), com radares, sonda, GPS e respectivos plotters , numa Ilha sem plataforma continental, consegue aproximar-se até 80 metros de costa e encalhar?! Isto não faz sentido nenhum… Também não me faz grande sentido que o comandante do mesmo tenha saído da Ilha do Faial sem ter sido detido por, pelo menos, negligência grosseira com consequências negativas para o meio ambiente. Terra de brandos costumes…
Depois de ter encalhado, o navio começou a largar combustível quase de imediato. Não é que apenas 4 dias depois apareceram no local os membros do Serviço de Combate à Poluição!? Como se explica uma demora desta dimensão a nível de uma estrutura especialmente dedicada a estes assuntos e a qual deve estar permanentemente alerta para dar uma resposta pronta e minimizar prejuízos ambientais que podem ser graves e duradouros?
Durante todo o mês que já passou, o navio foi largando combustível e outros hidrocarbonetos cuja contenção foi sendo gerida de forma aparentemente simplista do ponto de vista ambiental. Uma equipa com dezenas de elementos, empenhadamente e com risco da própria saúde, limpou diariamente a Praia, mas era necessária outra capacidade. É lamentável que a única barreira anti-poluição, por ser adequada para águas interiores, nunca tenha sido um instrumento útil ao transporte dos derramados até à costa. Nunca se conseguiu colocar uma real barreira oceânica em volta do navio, apesar de estar praticamente encostado a terra e ter havido dias com magníficas condições meteorológicas. Mas mais lamentável ainda o é o facto de durante esse mês nunca se terem conseguido retirar os todos os hidrocarbonetos do próprio navio ou extrair directamente aqueles que iam cobrindo as águas.
Desde o primeiro dia que a instituição de que faço parte, o Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores, começou a verificar a situação no terreno e a modelar as possíveis consequências. O DOP diagnosticou, logo que lhe foi possível, as consequências ambientais que julgava indesejáveis e evitáveis, mas prováveis caso não se retirasse o fuel-óleo que o navio tinha a bordo. Um mês depois ainda ninguém sabe quanto combustível tinha inicialmente o navio, quanto se perdeu pelos rombos e, mais importante ainda, quanto resta a bordo. Como se tinha previsto, os focos de poluição acabaram por aparecer a dezenas de quilómetros de distância com consequências ambientais ainda não completamente esclarecidas. Dentro de semanas irão começar a chegar em massa as aves marinhas migratórias. Caso ainda haja hidrocarbonetos no mar é bom que nos preparemos para mais um desastre ambiental. É que os fuel-óleos dissolvem a camada de gordura que impermeabiliza e protege da água e do frio as aves marinhas, acabando estas por morrer de hipotermia ou afogadas. Esperemos que não.
Durante o primeiro mês pós-acidente houve, de facto, contentores removidos, mas foi o mar que os levou. Agora, há contentores sabe-se lá onde e sabe-se lá com que consequências para a segurança da navegação e para o ambiente… Alguns afundaram, outros foram rebocados pela Administração Portuária, mas, onde estão os restantes? Durante esse mês a única carga que saiu de bordo pela mão do homem foi a carga classificada de mais perigosa. O esforço da Força Aérea e da empresa gestora do helicóptero Khamov muito contribuíram para isso. Infelizmente o combustível, ou parte dele, continua lá.
O empenho dos envolvidos não está em causa. Os elementos da Marinha, com especial ênfase para o Serviço de Combate à Poluição, a Autoridade Marítima (incluindo a Polícia Marítima), Força Aérea, Vigilantes da Natureza, Bombeiros Voluntários, funcionários das Obras Públicas, Administração Portuária, Serviços de Socorros a Náufragos, Secretaria Regional do Ambiente e do Mar, Brigada Fiscal, DOP, Lotaçor, outras empresas locais e até os órgãos de comunicação social esforçaram-se dedicadamente por cumprir as respectivas missões. Prescindiram do Natal e das festas de passagem ano, muitos deles longe das famílias. O entendimento no terreno, à luz dos parcos meios humanos e materiais disponíveis e do fraco pré-planeamento existente, foi excelente. Infelizmente, não chega. Este país de papel, demonstrou, mais uma vez, que não está preparado para lidar na prática com o seu mar imenso. Será que irá acordar agora ou irá ser necessária mais uma desgraça? Espero que não.
PARTE 2 – Também no Faial, foi apresentada a Reserva Natural Regional do Lucky Strike e Menez Gwen. Esta arrojada iniciativa é coordenada pela Secretaria Regional do Ambiente e do Mar dos Açores e sucede-se a alguns anos de trabalhos científicos e de elaboração de propostas de gestão envolvendo os principais grupos interessados na protecção dos ambientes em causa. Com ela pretende-se classificar um património ambiental português de elevado interesse biológico, biotecnológico, geológico, geofísico e estético. Até meados de Fevereiro a proposta manter-se-á em consulta pública. Inacreditavelmente, a entidade fiscalizadora, a Marinha de Guerra Portuguesa, não esteve presente na cerimónia de abertura do processo. Até acredito que a Marinha possa estar a favor, mas a ausência de um dos principais intervenientes é como recusar dar a dignidade essencial para a protecção efectiva dos valores em questão. Ou se calhar até está contra e desiste antes de argumentar ou ouvir. Assim é muito difícil fomentar processos participativos consequentes.
Publicado na coluna "Casa-Alugada"