Detalhe da estrada entre Santa Cruz e Lajes das Flores.
Foto: F Cardigos
Uma das coisas que sempre me impressionou nos Açores,
particularmente nas ilhas de menor dimensão, foi a forma generosa e intuitiva
como as pessoas se cumprimentam. Talvez por ser oriundo de Lisboa, onde há uma
maior distância entre as pessoas fora do círculo chegado de familiares e amigos,
este gesto, com um implícito “estou aqui e estou contigo”, sempre me pareceu
valioso. Também por isso, dou-lhe particular atenção e sou sensível a detalhes
que roçam o implausível.
Um dos trabalhos que a vida profissional me levou a realizar
há cerca de duas dezenas de anos, implicou alojar-me em Santa Cruz das Flores e
a trabalhar quotidianamente nas Lajes da mesma ilha. Todos os dias, de
madrugada e ao final do dia, conduzia um carro entre as duas vilas desta
belíssima ilha. Por inerência aos 18 km de estrada sinuosa, as pessoas tendem a
conduzir a baixas velocidades, com a mão esquerda na parte de cima do volante e
a direita no manipulo das velocidades. Quando dois carros se cruzam, não
podendo largar o volante, um ou mais dedos são alçados e, da outra viatura,
surge o mesmo cumprimento. O que é quase inacreditável é que o número de dedos
alçados por um condutor é replicado exatamente na mesma medida pelo condutor
contrário. Notei isto depois de me cruzar com imensas viaturas e, quase
sistematicamente, obter este resultado sempre que eu tomava a iniciativa.
Comecei por pensar que seria impressão minha, mas, depois de ganhar mesmo
algumas apostas, fiquei convencido. Há um qualquer código de boa educação,
escrito ou não, que implica que, naquela estrada, as pessoas se cumprimentem
exatamente com o mesmo aceno. Seja um simples “um dedo”, sejam “dois dedos”,
“três dedos” ou “quatro dedos”, há uma qualquer comunicação com mensagens
implícitas (“bom dia”, “ganhamos”, “foi espetacular!”…?) que eu não entendo,
mas registei.
Seja qual for a ilha, há uma outra variância nos acenos relacionada
com o tempo de ausência. Quando duas pessoas se veem pela primeira vez após
longo tempo, o aceno é transportado para um nível mais elevado. Este aceno
implica um passou-bem, apertando firmemente as mãos, entre eles, e dois
beijinhos, entre elas ou eles e elas. Nos casos mais emocionais, há mesmo
direito a um abraço. Quando a ausência é de um dia, o aceno transforma-se numa
exibição da palma da mão (sinal universal de paz, diga-se) e, dentro do mesmo
dia, um leve agitar vertical da cabeça. É assim e ninguém prescreveu, que eu
saiba.
Todos estes acenos são determinantes e a ausência deles pode
levar a conclusões nefastas. Entre o “estava certamente distraído” ao “nem me
falou”, passando por todas as possibilidades intermédias, tudo são
interpretações que terão de ser escalpelizadas e ninguém ficará tranquilo
enquanto isso não acontecer. É assim a vida nas ilhas.
Quando escrevo estas linhas estou no Corvo e prestes a
regressar a Bruxelas. Já sei, porque é sempre assim nos primeiros dias,
distraidamente, irei cumprimentar quem se cruzar comigo no caminho para casa.
Receberei de volta um gesto admirado, quase de medo, ou, mais habitualmente,
ir-me-ão ignorar. É assim nas cidades grandes… Mas há exceções! Na floresta em
redor da cidade de Bruxelas, no final de semana, entre as pessoas que praticam
desporto ou, simplesmente, passeiam, os acenos voltam. Não é, portanto, apenas uma
questão de geografia, mas também uma questão de densidade. Parece que uma
densidade de pessoas superior a um determinado nível nos torna menos humanos,
menos sensíveis e menos empáticos. Talvez…
As terras com acenos, seja nos arredores de uma grande
cidade ou nas ilhas dos Açores, são enormemente reconfortantes. Pena que, para
se notar, seja necessário sentir a sua ausência.