Há dois tipos de razões essenciais para que um país possa ganhar o Festival da Canção da Eurovisão: o mérito e a emoção.
O mérito decompõe-se na competência da canção, onde entra a voz, a música e a letra, e na apresentação da canção, que conta com a coreografia, o guarda-roupa e o jogo de luzes, incluindo a pirotecnia. Portanto, dito de outra forma, a harmonia e a estética.
Depois há as questões emocionais. Esta componente pode ser sensível a fatores como a empatia do artista até, no limite, o facto do país de origem do artista estar sob bombardeamento continuo de uma potência militar mundial há mais de dois meses.
A música apresentada pela Ucrânia ao Festival da Canção da Eurovisão de 2022 era interessante, particularmente para quem goste de hip-hop, foi bem apresentada e estava no limite superior da componente emocional, já que este país está precisamente neste momento a ser invadido pelo exército de uma grande potência militar. Portanto, naturalmente, no que é o chamado voto popular, a Ucrânia usufruiu da solidariedade dos europeus e australianos e ganhou. Nada mais simples.
A canção “Stefania” dos Kalush Orchestra obteve 631, tendo 439 sido atribuídos pelo público. Ou seja, tendo em atenção que o voto dos júris nacionais tem mais em atenção os aspetos técnicos, e aí a canção até ficou mal classificada, houve emoção e da forte para que esta música tivesse arrebatado quase todos os pontos em disputa na componente pública.
Por comparação, “Amar pelos dois”, interpretada por Salvador Sobral no Festival Eurovisão da Canção de 2017 e escrita pela sua irmã, obteve 758 pontos e mantém-se como a como a mais pontuada de sempre. Viva Portugal! No caso de Salvador Sobral, para além de ser uma excelente música, foi muitíssimo bem interpretada. A isso, na minha opinião, somou-se o facto do intérprete estar, à época, doente, mesmo em perigo de vida. Ou seja, o lado emotivo estava também muito presente, o que pode justificar parte dos 376 do voto popular. Contentes ficámos todos, quando, após o Festival, a sua operação ao coração correu bem e recuperou.
Este ano, depois da apresentação das diferentes músicas perguntaram-me em quem iria votar. A minha resposta foi, como sempre acontece, que não iria contribuir financeiramente para um espetáculo que até nem me agrada por aí além. No entanto, acrescentei que, caso votasse, o meu voto iria, sem pestanejar, para a Ucrânia. Não iria por causa da canção (as da Moldávia e de Portugal eram muito melhores), mas para contribuir um pouco para animar aquele povo. Para mim, dezenas de vezes mais importante que a justiça estética de um festival da canção está cada vida dos ucranianos e dos militares russos, ambos vítimas da soberba do Governo da Federação Russa.
Admito que não sou fã de festivais da canção. Raramente vejo o evento e, quando vejo, pareço um dos velhos dos Marretas, encontrando, irritantemente, defeitos ou motivos para risota jocosa na maioria das músicas, nas coreografias, nas interpretações, nas vestimentas...
Ao mesmo tempo, quando vejo o público europeu a reagir com inquestionável solidariedade perante a Kalush Orchestra, tal como aconteceu antes com o Salvador Sobral, não deixo de sentir a garganta apertada, voltando a acreditar na boa alma humana. Valeu a pena ver e ouvir este Festival da Canção da Eurovisão.
Sláva Ukrayíni!