sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Crónicas do Voo do Cagarro - 40: Sobre o campeonato do mundo de futebol

Ninguém me tira que se tivessem jogado de início os três jogadores do Benfica selecionados para o Mundial, Portugal jamais teria perdido contra Marrocos. Sim, eu sei, sou mais encarnado do que se pede a um comentador imparcial…
Agora mais a sério. A verdade é que Portugal perdeu o jogo, como já havia perdido contra a Coreia do Sul, porque não mereceu ganhar. No futebol, merece ganhar quem marca mais golos que o adversário e apenas isso. Nós marcámos menos nesses dois jogos, logo perdemos. Não é um drama, até porque chegámos aos quartos de final. Com alguma desculpável falta de rigor, podemos dizer que estamos entre as oito melhores equipas do mundo.
Por vezes, ouvimos as pessoas dizerem que não há justiça no futebol. Estou em desacordo. Há justiça e ela é clarinha: quem marca mais golos ganha. É tão simples.
Claro que podemos pensar que não há justiça no processo até se marcar mais ou menos golos que o adversário. Aí entra a habilidade, o empenho e a inspiração dos jogadores, a sorte e a clarividência e a imparcialidade do árbitro. Ou seja, se o somatório destes factores for superior ao dos adversários, a equipa é imbatível.
Fica evidente que não podemos controlar os factores relacionados com a sorte e com a arbitragem. Portanto, a única forma de ter a certeza que ganhamos um jogo é se os nossos jogadores forem muito superiores aos adversários. Ou seja, tão superiores que nem uma maré de azar e um árbitro que tenha dormido mal possam beliscar as nossas hipóteses. Portanto, ao colocarmos em campo jogadores que estão a jogar mal nos seus próprios campeonatos ou que estejam cansados, e não vou dizer nomes, estamos a expor-nos às intempéries do futebol.
Os marroquinos jogaram bem e nós jogámos bem. No entanto, nem nós nem eles jogámos tão melhor que o outro que nos pudéssemos arrogar ao direito de vencer. A seleção de Portugal, que é quem me interessa, jogou melhor do que a seleção de Marrocos, mas… não jogou tão bem que se pudesse libertar dessa outra componente intrínseca do futebol: a sorte e a arbitragem.
Se repetido, quantas vezes o João Félix falharia aquela cabeçada no início do jogo permitindo que o guarda-rede defendesse? Quantas vezes Bruno Fernandes acertaria na barra? Lá está, a sorte... Não tivemos sorte. No entanto, se tivéssemos tido o engenho para cabecear e chutar mais vezes, algumas delas teriam entrado, apesar das capacidades sobre-humanas do guarda-redes adversário, e nós teríamos ganho o jogo. Resumindo, não jogámos tão bem que pudéssemos superar a superioridade do guarda-redes e o azar que nos bateu à porta.
Ouvi alguns jogadores de Portugal no final do jogo a referirem-se ao que eu interpreto como a indulgência do árbitro perante o potencial adversário mais fraco para o seu país. De facto, sendo o árbitro argentino, poderia estar interessado que a seleção menos capaz fosse apurada para jogar com a seleção das suas cores e, mesmo que inconscientemente, acabar por privilegiar La Albiceleste.
Pode ser verdade, e a FIFA deveria pugnar para evitar este tipo de possibilidades de interpretação, até porque não faltam árbitros com menos conflitos de interesses. No entanto, isso faz parte do futebol. Até poderia o árbitro não ser argentino, mas simplesmente ter um qualquer fait-divers contra Portugal. A única possibilidade é jogar tão melhor que o adversário que nem isso nos possa tocar. Se não o formos, colocamo-nos à mercê da tal intempérie.
Portanto, Portugal perdeu e Marrocos venceu e com mérito porque no somatório dos golos marcou mais que a equipa das quinas. Como me ensinaram os meus pais, perante a derrota, felicita-se o adversário. Parabéns Marrocos, para a próxima ganhamos nós!
Se olharmos para as mais de 200 equipas que participam no Mundial, desde a fase de apuramento até à final, apenas uma erguerá os 6,1 quilos que pesa o troféu da FIFA. Quando escrevo este artigo, apenas os apoiantes de uma e apenas uma destas equipas poderão ficar plenamente felizes: Argentina, Croácia, França ou Marrocos. Não parece haver outra hipótese. No entanto, será realmente assim?
Um optimista militante como eu não se contenta com isso. Portanto, arranjei argumentos para ficar feliz com qualquer que seja o vitorioso. Tenho uma filha com nacionalidade francesa e a França pertence à União Europeia, tal como a Croácia, onde também tenho bons amigos. Pela Argentina jogam (e muito bem) dois benfiquistas. Marrocos, como derrotou Portugal, merece ganhar o Mundial. Portanto, vença quem vencer, eu vou estar do lado feliz. Apenas desejo ver bom futebol!

Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da União Europeia.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

O futuro constrói-se com Áreas Marinhas Protegidas

Garoupa no Mar dos Açores.
Foto: F Cardigos

No dia em que se celebra do Dia Nacional do Mar, dia 16 de novembro, redijo algumas linhas sobre um poderoso instrumento de gestão: as áreas marinhas protegidas. A minha definição para área marinha protegida é um local marinho, geograficamente bem definido e com regras implementadas para a gestão do ponto de vista da conservação patrimonial.

Vale a pena dissertar sobre algumas das expressões que utilizei. Começo pelas “regras implementadas”. As definições legais sobre a área em causa, caso não sejam implementadas, inviabilizam a utilização do nome de Área Marinha Protegida. Passam a ser “Reservas de Papel”, uma expressão jocosa, mas, infelizmente, pertinente para as zonas que foram definidas por lei e que continuam sem plano de gestão funcional.

Em sentido quase contrário, refira-se que não é necessário haver uma decisão legal sobre a existência de uma área marinha protegida para esta o ser. Basta que as regras implementadas sejam respeitadas. Penso na Reserva Marinha do Caneiro dos Meros, no Corvo, em que não foi definida qualquer área do ponto de vista legal e as regras estabelecidas pelos utilizadores são respeitadas há mais de vinte anos.

“Conservação patrimonial” é a outra expressão pela qual quero passar para, essencialmente, alertar para que a conservação pode ter um ponto de vista de mundo natural, talvez seja mesmo o mais comum, mas também pode ter um ponto de vista histórico ou mesmo social. Mesmo nos Açores, há áreas marinhas protegidas definidas para proteger património arqueológico (casos da Baía de Angra do Heroísmo, na Terceira, e do Parque Arqueológico Subaquático do Dori, em São Miguel). Apesar de não existirem nos Açores, há pelo mundo locais classificados como áreas marinhas protegidas puramente por razões sociais (militares, religiosas ou espirituais).

No entanto, a maioria das áreas marinhas protegidas têm uma génese relacionada com a conservação da natureza. Essas áreas marinhas protegidas servem para preservar espécies e habitats, para ajudar na recuperação ecológica de áreas desfavorecidas ou para auxiliar na gestão dos recursos biológicos para atividades como a pesca.

Hoje em dia, há poucos temas que sejam tão consensuais nos Açores como o são as áreas marinhas protegidas. Os partidos que alternam no poder têm visões similares e a sociedade, no geral, apoia a implementação deste instrumento.

Noutros tempos não era assim. Lembro-me da resistência de alguns utilizadores e mesmo de cientistas… Felizmente, são tempos passados.

Hoje, as grandes críticas são não se avançar ainda mais rapidamente na definição de mais e maiores áreas e aumentar a eficácia da fiscalização nas áreas existentes. Evidentemente, pelo ponto de vista de um ambientalista, como eu sou, nunca será suficiente tudo o que seja feito, mas, em abono da verdade, o que foi feito e o que está a ser feito são passos de gigante.

Os Açores têm um Parque Marinho e parques naturais de ilha que assinalam já uma parte muito interessante dos bens patrimoniais existentes. Ao mesmo tempo, os governos estabeleceram e aumentaram a sua própria ambição no que diz respeito à área a classificar. O objetivo neste momento ambicionado está em linha com o definido pela Comissão Europeia no “Pacto Ecológico Europeu”.

Falta garantir que as áreas tenham uma ainda melhor gestão e que essa gestão inclua uma fiscalização mais incisiva, que ajude, por exemplo, a estabilizar o empreendedorismo no turismo subaquático. Nada se faz de uma vez só e, por isso, estou confiante que haverá uma boa sequência da estratégia que está a ser implementada.

Neste momento, através de uma parceria com o Waitt Institute e com a Fundação Oceano Azul denominada “Blue Azores”, o Governo dos Açores, acompanhado pelos melhores investigadores do Instituto Okeanos e da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade dos Açores, tem uma equipa de especialistas a trabalhar na temática das áreas marinhas protegidas.

Estou confinante, mas não sou apenas eu. Os Açores foram recentemente classificados como “Hope Spot” e têm áreas marinhas protegidas implementadas em conjunto ou mesmo por pressão da comunidade piscatória.

Claro que tenho de estar otimista e quero estar otimista, mas reconheço que ainda falta uma parte grande de um percurso longo. Portanto, também no Dia Nacional do Mar, há que arregaçar as mangas e fazer!

 

Frederico Cardigos é biólogo-marinho no Eurostat. As opiniões manifestadas neste artigo são totalmente pessoais e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia. 

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Crónicas do Voo do Cagarro - 39: Com covid no Luxemburgo

Teste covid positivo.
Por F Cardigos

Tinha ótimos planos para escrever um artigo interessantíssimo e que a todos iria agradar. Leitura leve, informativa, com piada e compensadora… Infelizmente, para minha desgraça e vossa infelicidade, apanhei covid.
Estou no Luxemburgo, em casa, em isolamento, mal-encarado e sem qualquer sentido de humor. Comparando com casos extremos da doença, estou bem e devo agradece-lo aos deuses e à ciência. Mas… por outro lado… por favor, aturem-me que eu já não consigo.
Tenho aqueles sintomas habituais e entediantes de gripe leve, como dores musculares pouco intensas e cefaleia ligeira. Estou no nível irritante de “nada de especial”. E até tinha começado bem. Ontem à noite, os primeiros sintomas incluíram febre e suores frios. Uma coisa como deve ser.
Deitei-me para ver se passava. Seguiram-se sonhos muito estranhos e intensos que incluíram resolver várias equações e, depois, a resolução do Último Teorema de Fermat, concluindo com algo como “é tão simples e impossível ao mesmo tempo”. Não, na realidade, não é. É muito complicado e possível, mas no meu sonho era assim. Quem pode negar um sonho durante o sonho?
De seguida, os meus sonhos deram-me um vislumbre do universo antes do Big Bang. Não era muito animador e, provavelmente, fake news. Depois vieram sonhos cheios de números que preenchiam um espaço bidimensional e mudavam a cada momento. A “missão” era encontrar padrões e, mais uma vez, claro, resolvi desafio após desafio. No entanto, como eles não paravam, fiquei muito cansado e resolvi acordar.
Acordei a meio da noite totalmente convencido que era mesmo necessário encontrar os padrões numéricos que povoavam o espaço bidimensional. Fui até à sala, sentei-me no sofá e fiquei a tentar relembrar-me das sequências numéricas. Só então compreendi que, afinal, ainda estava na cama, a dormir e tudo aquilo fazia parte do sonho.
Acordei. Desta vez acordei mesmo. Sei isso porque pude pensar em todos os sonhos que tinha tido até então e compreendi que não faziam qualquer sentido. Sim, eram engraçados, continham uns pontos até com alguma dinâmica e imaginação, mas sonhos… Estava oficialmente acordado.
“Portanto”, pensei para mim próprio, “com esta sequência de sintomas e sonhos delirantes, muito provavelmente estou doente”. Estando no centro da Europa, doença significa covid. “Ok, amanhã faço um teste”. Acordei bem-disposto com uma “gripe ligeira”. Apenas por descargo de consciência faço um teste rápido e sou bafejado com duas belas barrinhas… Temos pena.
Estou demasiado doente para ler um livro ou ver televisão, mas estou bem o suficiente para estar acordado. Entretenho-me a contar os carros que passam na rua e a trepar paredes… Que tédio…
Oiço todos os ruídos do prédio, incluindo alguns que não existem. O jovem que ouve música no segundo direito, o besouro da loja de baixo que é ativado cada vez que alguém entra, os carros que passam (já tinha falado nos carros?), o casal que conversa na rua, os carros que apitam e os que não apitam… E as moléculas?! Projetam-se umas contra as outras produzindo uma salada de frutas sinfónica, cheia de sopranos saltitantes e oboés desafinados. Clarinetes, clarinetes… Não eram oboés.
Sei que devia estar grato e muito contente por ter apanhado uma versão ligeira da doença e por estar convenientemente vacinado. Estou cheio de sorte por estar acompanhado por alguém que prescindiu da sua segurança de saúde para me apoiar neste período potencialmente perigoso. Sincero, obrigado!
Mas… A verdade é que não tenho qualquer paciência para estar doente. “Não tenho tempo para isto, pá!” Tenho coisas para fazer, um artigo para o jornal para escrever e tantas outras coisas simpáticas. Isto não. Estar em casa, olhos pregados no infinito à espera que passe, é demais para mim. Como dizem os francófonos, ça suffit! E no entanto… Aturem-me, por favor, aturem-me que eu já não consigo.

Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da União Europeia.