sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 65: A opinião robusta e o debate sério são pilares da democracia

Muitas civilizações antigas, incluindo a etrusca e a romana, utilizavam a inspeção dos órgãos internos dos animais para antecipar eventos futuros. Essa prática cruel até tinha nome, “extispício”. A plebe tranquilizava-se com o vislumbre dos sonhos dos deuses expressos nas entranhas dos pobres animais e a decisão era tomada. Não sei se o presságio apareceu nalguma mancha de fígado, mas todas essas civilizações se esfumaram com o passar do tempo...

Quando hoje oiço os monólogos semanais dos fazedores de opinião, fico recorrentemente com uma sensação estranha. Explicando: Sempre que falam de algo que é da minha área de conhecimento, eu deteto fragilidades na argumentação e, por vezes, mesmo conclusões erradas. Comecei a perguntar a especialistas se tinham uma perceção parecida com a minha e a resposta foi muitas vezes positiva.

Ou seja, os especialistas em generalidades são apenas isso mesmo. Ouvi-los pode ser um legítimo ponto de partida para compreender um assunto, até porque falam bem e de forma articulada e podem chamar a atenção para temas e perspetivas que nos tinham escapado, mas ouvi-los jamais pode ser o ponto de chegada. Por exemplo, eu gosto das formas de pensar e de se expressarem o Miguel Sousa Tavares, o Ricardo Araújo Pereira, a Teresa de Sousa, o Pedro Tadeu e o Jaime Nogueira Pinto. Semanalmente, lá estou à espera de ler ou de ouvir as suas crónicas. Cada um no seu estilo, com as suas convicções e com as suas ferramentas, vão expondo ou passando as atualidades pelo crivo da história, do bom senso ou do humor. Eu vou tomando notas mentais sobre o que me interessa e a verdade é que estou muitas vezes em desacordo com as suas opiniões. Nalguns casos, o estudo ou o tempo dão-me razão. Noutros, mais, dão-lhes a eles. Faz parte.

Há um outro tipo de fazedores de opinião. Pessoas que nada sabem sobre o que falam e que nem têm a humildade de colocar essa hipótese. Militares a opinar sobre a igreja, médicos a opinar sobre a guerra, e sacerdotes a opinar sobre medicina ou, mais tipicamente agora, pessoas sem especialidade conhecida a opinar sobre tudo e ao mesmo tempo. Passados vinte séculos, por vezes, sinto que pouco mudou. Autênticos arúspices são colocados em frente das câmaras e discorrem em monólogos ou diálogos simplistas, populistas, intolerantes, antipáticos e agressivos. De vez em quando, parece apenas ficar a faltar ver manchas sobre um fígado esventrado...

Num qualquer debate de ideias é muito comum colocarem-se perspetivas opostas no mesmo plano. Numa sociedade democrática, a tolerância pela diferença e a liberdade de expressão a isso obrigam. É desse confronto de ideias que nasce a opinião e, com o seu fortalecimento, a decisão. No entanto, esta abordagem que considero essencialmente natural e justa, tem um aspecto perverso. É que coloca em pé de igualdade o cientista e o ignorante.

Durante os anos recentes, cientistas tiveram de lutar contra o obscurantismo e negacionismo relativamente à existência das alterações climáticas e à eficácia das vacinas porque, nalguns casos deliberadamente e com dolo, foram colocadas em confronto ideias com géneses e propósitos diametralmente opostos. Por um lado, cientistas, com ideias baseadas no conhecimento e expostas por bem, e, do outro, ignorantes, com ideias baseadas no facilitismo e na popularidade. Fico espantado ao ver a eficácia da passagem de mensagens erradas, em que o sucesso e a decisão são baseados em níveis de popularidade e não no bom senso. Quem grita mais alto vence, por vezes parece-me…

O nosso modelo de sociedade, apesar de ser o melhor e mais avançado, está em crise. Há várias razões para isso. Uma delas é o tempo de antena que irresponsavelmente é dado a pessoas que nada sabem. É nossa responsabilidade, dos que ouvimos, escolher e apoiar quem opina bem.

Até o extispício pode ter sido útil no antigamente. Naqueles idos tempos, por exemplo, uma futura alteração no clima podia ser prematuramente detetada em modificações nos sensíveis órgãos internos dos animais e, com isso, tomar melhores decisões sobre culturas agrícolas, por exemplo. Adicionalmente, os extispícios modernos, chamados biópsias, são usados para detetar alterações de saúde e são essenciais na prevenção em tempo de algumas doenças gravíssimas. O erro ocorre quando da ciência se passa à panaceia e se usam extispícios e biópsias para decidir em quem votar ou prever em que dia vai o Homem voltar à Lua.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 64: As flores, sempre as flores


Uma flor.
Foto: F Cardigos

A partilha periódica de conhecimentos gerais ou do resultado da exploração de um tema específico é uma boa prática que tenho observado nos melhores locais onde já trabalhei. Com esta postura e num intervalo de tempo que pode variar entre o semanal e o bimestral, os colegas expõem e explicam o que estão a fazer em termos de trabalho e recebem em troca conselhos ou informações complementares que resultam do trabalho dos restantes colegas. Para além destes óbvios benefícios, também aumenta as sinergias humanas, fortalece a solidariedade laboral e, portanto, há uma nítida melhoria do ambiente de trabalho. 

Neste dia, o colega que estava encarregue de palestrar entrou na sala de reunião uns minutos antes dos restantes. Quando eu lá cheguei já havia um conjunto de pequenos frascos de medicamentos em cima da mesa. “Que tens aí dentro?!” Disse eu entre o admirado e o meio perdido visto o tema da palestra estar bem longe de produtos farmacêuticos, vacinas ou cosméticos que pudessem justificar aquela parafernália. 

Sabes, tudo isto que aqui falamos é muito importante, mas há guerras lá fora. Há tanto sofrimento... As nossas palestras são importantes, sem dúvida, mas há algo maior e que exige ação em todos os momentos. Aqui, dentro de cada frasco, estão sementes de flores que colhi no jardim de casa. Agora espalho as sementes pelas pessoas de bem, para que possam plantar algumas flores por aí. Que as guerras sejam também contrariadas por flores. É pouco, mas é o que está ao meu alcance. Tentar contrariar a loucura...”  

O meu espírito pragmático e analítico impede-me de apreciar a partilha de “pedaços de plantas” (uma forma pouco polida de dizer “ramos de flores”) como um gesto de conforto, amor ou paz. Compreendo a bondade do gesto e, por isso, também o faço, mas... fica-me sempre um certo sabor a contradição paradoxal. O meu colega, sábio, resolveu esse problema com a oferta de flores potenciais dentro de frascos reutilizados.  

De qualquer forma, admito e concordo: As flores, em todas as suas formas, têm o poder de orientar o cérebro dos humanos para pensamentos pacíficos e harmoniosos. Portanto, sejam juntas ou separadas do restante organismo, as flores acompanham alguns dos momentos mais dignos e solidários da humanidade, pelo menos, já desde o tempo de Inês de Castro... 

Em São Francisco, no final dos anos 60, as flores povoavam os cabelos de quem cantava a necessidade do amor e da beleza. O movimento “flower power” estava no seu auge e hoje tão distante… Lembro-me de como os cravos invadiram a cidade de Lisboa em abril de 1974. Eram flores de esperança e de revolução pacífica.  

Sinto que o nosso planeta precisa de flores, mais flores, e aprender com elas, como o Pequeno Príncipe aprendeu com a rosa e como todos podemos aprender com a “Desert Rose” do Sting. Do outro lado do espectro do amor, como os lusófonos se emocionaram com a “Rosa de Hiroxima” de Vinícius de Moraes cantada pela voz maior de Ney Matogrosso... 

As flores aí estão! Basta voltar a olhar para elas e partilhar a beleza da sua fragância e da sua estética. Tirar os olhos da violência, recusá-la, recusar quem a quer impor ou vender e olhar para as flores, olhar pelas flores. Aprender a beleza, a harmonia, a fraternidade e como podem estas ser tão agradáveis e compensadoras.  

No formato da ilha mais linda ou na esperança do meu colega. As flores e, se possível, as flores nas Flores… 

 

* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 63: Finalmente no Liechtenstein

 

Vista do Liechtenstein sobre as montanhas suíças.
Foto: F Cardigos

Quem me lê poderá eventualmente lembrar-se da primeira tentativa, em 2019, de ir ao Liechtenstein, esse principado dos Alpes, e como a suave tragédia de uma quase justificável confusão com Lichtenstein, o município alemão, impediu o consumar do plano. Enfim, tempos passados. Depois desse infortúnio e por insistência da filhota, finalmente aconteceu.

Admito que a minha esperança de chegar ao Liechtenstein era tão baixa que não preparei minimamente. Dentro de mim, considerava que jamais iria acontecer, portanto, porquê perder tempo a planear? Dito isto, quando, já de madrugada e noite escura, entrámos no principado, eu ainda duvidava que estivesse realmente por lá...

Apenas quando acordei e olhei pela janela é que acreditei que tinha realmente acontecido. A paisagem era absolutamente deslumbrante. No primeiro plano, a povoação com as casas típicas dos Alpes. Depois, um vale coberto de nuvens cujo efeito era como um lago em que as torres de igrejas que se adivinhavam abaixo insistiam em perfurar até à superfície. Mais distantes, a todo o horizonte, uma linha de montanhas encimadas por alva neve. Nenhuma descrição será suficiente para ilustrar quão deslumbrante era esta paisagem.

Em termos geográficos, o Liechtenstein é um pequeno país constituído por um vale e meio. A distante paisagem montanhosa que tinha visto de manhã era precisamente a outra parte do meio vale e que já pertence à Suíça.

Dada a falta de planeamento, a verdade é que não sabia muito bem o que fazer no Liechtenstein. O improviso incluiu seguir as placas de sinalização até ao castelo. No entanto, o castelo é mesmo a residência oficial do soberano e, portanto, invisitável.

De seguida, continuando no improviso, fizemos uma visita à catedral. Este edifício religioso está longe de ser deslumbrante e, por isso, abreviámos o tempo de permanência ao mínimo respeitável.

Por último, encontrámos e visitámos o museu. O conteúdo expositivo está belissimamente organizado, permitindo compreender todos os temas em termos genéricos e escalpelizar com maior detalhe as componentes que mais nos interessam. É um tipo de visitação que me dá muito prazer. Fartei-me de aprender sobre a história do Liechtenstein e sobre outros assuntos que ali me pareceram muito bem explicados.

Terminada a visita, resolvemos embrenharmo-nos nas festividades dominicais, passeando pela capital Vaduz. Metemos conversa com um dos locais que imaginava que dois portugueses apenas poderiam ali estar por causa do jogo de futebol. Longe disso. Respondendo a perguntas nossas, este senhor admitiu que os cidadãos do Liechtenstein têm problemas como os restantes, “mas os problemas é que são diferentes”. “Ah, sim?!”, respondemos adivinhando que a conversa começava a ser interessante. “Sim”, respondeu, “nós temos uma indústria que emprega 42 mil operários e há apenas 40 mil pessoas no Liechtenstein. Que fazer? Empregamos as crianças e os idosos? Resolvemos não o fazer. Como alternativa, importamos mão de obra. Isto significa que há milhares de pessoas a viver na Áustria e na Suíça e a deslocarem-se diariamente para o meu país. Não me parece muito correto, mas é caro demais viver aqui. Depois, como somos mesmo muito ricos, não sabemos o que fazer ao dinheiro. Poderia estar a exagerar, mas não. O nosso município tem milhões parados porque não sabemos em que investir. Já temos tudo.”

O nosso tempo tinha terminado. Havia que seguir viagem e o Liechtenstein iria ficar para trás. Mas as palavras deste cidadão continuavam a ecoar. Será mesmo como disse? O certo é que visivelmente no Liechtenstein se vive muito bem. Ao contrário do que acontece noutros pequenos países, não nos pareceu que esta disponibilidade financeira se devesse apenas a facilidades bancárias e fiscais. Talvez a indústria seja realmente suficiente… Esclarecer este mistério é algo que só por si obrigará a um regresso ao Liechtenstein. Até breve!


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 62: Protegendo a eco-diversidade em terra e no Mar dos Açores

Há uns dias, um bom amigo enviou-me um interessante artigo sobre abelhas publicado no jornal New York Times (“The beekeepers who don’t want you to buy more bees”, escrito por David Segal). No artigo defendia-se a surpreendente tese que a defesa das abelhas passava por conter a proliferação de colmeias.

Segundo o autor, houve, de facto, um problema de decréscimo generalizado das populações de abelhas. Seja devido a pragas (parasitas), ao uso massivo de pesticidas e fertilizantes na agricultura industrial, à perda de habitat ou às alterações climáticas, as populações de abelhas decresceram muito, para níveis assustadores. Mas… e este “mas” é importante, este decréscimo não é hoje transversal a todas as espécies de abelhas.

Escreve o autor que as espécies de abelhas produtoras de mel, as abelhas domesticadas, estão robustas e as suas populações estão a crescer. Esta recuperação de meia dúzia de espécies muito deve à ação humana, nomeadamente com o investimento em novas colmeias para a produção de mel e estimuladas, também, para promover a polinização. Lembro que há diferentes tipos de polinização conforme as espécies de plantas e muitas dependem de animais para mediar a sua reprodução.

Se as abelhas domesticadas estão bem de saúde, já as populações das cerca de duas mil espécies de abelhas selvagens não estão a ter uma proteção efetiva e as suas populações estão a decrescer. Acontece que estas espécies de abelhas selvagens são acrescidamente importantes enquanto polinizadoras para espécies de plantas em que são especialistas e, também importante, porque se não desempenharem o seu papel ecológico abrem-se brechas no ecossistema.

Procurei um pouco e concluí que estes nichos sem dono podem ser ocupados por espécies invasoras e agressivas, como são algumas espécies de vespas. A seguir, depois de ocuparem o território, estas vespas invasoras e predadoras de abelhas afastam o que resta das populações já debilitadas. Sobre o perigo das vespas invasoras na Europa aconselho o recente artigo do jornal Guardian “‘Excruciating’ hornet sting leaves Rome dinner party guest on crutches as plague spreads” por Angela Giuffrida.

Pior ainda é a proteção exagerada das espécies produtoras de mel. O crescimento destas populações de abelhas domesticadas faz com que as flores disponíveis para as espécies de abelhas selvagens diminuam muito. A este título, aconselho a leitura da tese “Competition between wild bees and manged honeybees – a review of floral preferences” escrita por Charlotte Hansson da Universidade de Ciências Agrícolas da Suécia.

Como conclusão, o artigo do New York Times refere que é importante produzir mel e que as abelhas produtoras de mel são relevantes para a polinização de diversas espécies de flora. Portanto, há que manter a dinâmica de produção de mel, mas, prioritariamente, é urgente proteger as espécies de abelhas selvagens. Ajudar está ao alcance do cidadão comum. As pessoas interessadas em promover a diversidade de abelhas e, já agora, outros insectos podem cultivar flora selvagem e construir um chamado “hotel para insectos”. Os designs para estes originais hotéis estão disponíveis na internet e qualquer um os pode colocar no seu jardim.

A mensagem da minha parte é que proteger o mundo natural não resulta de uma única ação. É da escolha pessoal por entre a diversidade de opções oferecidas pela ciência que a cidadania se deve exercer. Por mim, que já tenho um jardim de flores selvagens (com a enorme vantagem de ser muito fácil de manter), falta-me construir o hotel para insectos. Vai ser em breve!

Por muito importante que seja, o meu mundo preferencial não é feito em terra, mas sim na água salgada. Interessam-me muito todas as ações que ajudem a proteger a biodiversidade e a geodiversidade presentes nos oceanos e o Mar dos Açores em particular. A esse título, se concordarem, convido-o a juntar-se à petição pública “MARDOSACORES” disponível na internet e que pretende fortalecer a implementação urgente da Rede de Áreas Marinhas Protegidas dos Açores.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 61: A cama da loja que vende móveis para montar em casa

Vamos receber uma visita açoriana que nos merece toda a estima e isso obriga a algumas adaptações no domicílio. Uma destas adaptações é montar uma cama que há muito pedia para voltar a ser colocada no ativo. Como somos pessoas organizadas, certamente que todas as peças estão juntas e o processo de construção será rápido e expedito…

O primeiro item ausente, como notámos rapidamente, era o próprio manual de instruções. “Não há problema, procuramos na internet o respetivo PDF.”. De tão simples, devíamos ter desconfiado, mas a ingenuidade…

Esta cama da loja que vende móveis para montar em casa tem o modelo correspondente a uma pouco conhecida cidade da Escandinávia. Rapidamente encontrámos o manual e começámos a juntar as peças... Das 94 peças, tínhamos à nossa frente uma dezena. “Uiii… Começa mal”. Onde estariam as outras? Certamente por perto.

Depois de muito procurar, tivemos de ir ao alguidar de plástico que tem tudo. Sabem, aqueles baldes onde vamos colocando as coisas que um dia poderão ser úteis, mas não sabemos bem porquê. Penso que todas as casas têm um destes recipientes. Aí encontrámos as peças necessárias ou umas que pareciam poder fazer o serviço equivalente.

Iniciámos o procedimento colocando uma, depois duas e chegámos às três peças. Três em 94. Não está mau para a primeira hora. A este ritmo teremos cama dentro num dia!

Encravámos quando percebemos que quatro peças redondas não estavam no alguidar de plástico nem em lado nenhum. O mistério adensava-se porque o manual referia serem necessárias oito peças redondas e, na realidade, só encontrava local para colocar quatro. Certamente, uma limitação minha.

Uma das vantagens em residir na Europa continental é que há uma destas lojas que vende móveis para montar em casa a, praticamente, cada esquina. Metemo-nos no carro e, passados poucos minutos, estávamos na fila da assistência da loja. Para ser mais preciso, na enorme fila da assistência da loja, daquelas filas que se veem apenas num Sábado à tarde. Ainda por cima, sem certeza se aquelas eram as peças certas (oito peças para quatro ranhuras dava para desconfiar…) ou sequer se aquela era a fila adequada.

Havia que improvisar. À portuguesa, aproveitamos a passagem de uma funcionária mais solícita que ali estava por engano e perguntámos. “Estas peças, fazem sentido?”, disse no francês emigrante simpático que nos caracteriza e apontando para o PDF que tinha impresso. “Um momento!” e desapareceu. Muito lá ao fundo, voltei a ver a senhora. Estava a mexer num armário e, depois de dez curtos segundos estava a regressar com as peças na mão. Deu-me as peças sem uma palavra. “Ah, muito obrigado. Como fazer para pagar?”. Mãos à frente em posição defensiva, leve rodar da cabeça e algo incompreensível em flamengo. “Acho que nos ofereceram as peças”, disse eu muito admirado, quando a funcionária já partia para um outro corredor infinito e as dezenas de pessoas que aguardavam na fila nos amaldiçoavam com um olhar pouco amigável.

Entendendo a fragilidade da nossa situação, saímos em surdina. Em menos de cinco minutos, tínhamos as peças! Penso que este foi um record do mundo de uma ida à loja que vende móveis para montar em casa. Ainda por cima num Sábado à tarde. Inacreditável! Pois era…

Chegámos a casa e imediatamente notámos que as peças não só falhavam em número como falhavam em forma. De volta ao manual, percebemos que a cama mantinha o mesmo nome da cidade escandinava, mas tinha uma segunda versão, que não era a nossa. “Oh, voltámos à estaca zero…”, disse a Sílvia. “À estaca zero, nem pensar! Já temos três peças montadas e passaram apenas quatro horas. A este ritmo, nos próximos quinze dias temos cama!”. Há que manter o otimismo. “Já estão colocadas três peças, apenas faltam 91. Vamos em frente!”


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 60: Sobre distopias

Para mim, as redes sociais são um dos grandes desafios contemporâneos. Não irei ainda ao ponto de lhes chamar o ópio do povo no século XXI, mas olho com preocupação. Fortaleci esta opinião depois de sair dessa ficção e ao contemplar o nível de intoxicação e dependência de alguns dos que ficaram. Concordo que há aspetos positivos, mas os engodos e enganos propositados, alguns acabando em roubo ou pior, as discussões, as arrelias escusadas e inúteis e a desinformação que vou observando agora à distância levam-me a não ter grandes dúvidas que, em termos gerais, o uso de redes sociais é prejudicial.

Infelizmente, alguns programas de rádio passaram a ter ferramentas de comunicação com os seus ouvintes e extensão de conteúdos assentes nas redes sociais. É uma tendência que tenho observado e é precisamente o que acontece com um dos programas que costumo escutar com gosto. Dada a minha convicção, dado o meu ativismo e tendo em consideração o apreço que tenho pela minha sanidade mental, estou excluído desse outro lado da minha rádio.

Foi isso que me fez refletir sobre a possibilidade de estar a entrar voluntariamente num mundo alternativo. Passo a explicar. Se a nova realidade se passa também num conjunto de plataformas das quais estou excluído, até que ponto tenho uma perceção errada do mundo? É uma perceção certamente limitada.

Claro que, talvez com um travo de arrogância e certamente com preocupação, considero que muito pior do que eu estão as pessoas que se mantêm ativamente nas redes sociais. Aí, pior que a realidade limitada é a sociedade propositadamente disfuncional criada pelo algoritmo.

O certo é que o metaverso e o mundo palpável estão a partir para lados diferentes. De um lado estarão os que se mantêm dentro das redes sociais e que, em breve, começarão a usar óculos virtuais de realidade aumentada e, depois, implantes no cérebro. Boa sorte! Do outro lado, os restantes.

Haverá então dois grandes países – o Real e o Virtual. Em momentos ocasionais, os habitantes atravessarão a fronteira e olharão com curiosidade para o outro lado. Com sobranceria, classificarão os restantes com adjetivos entre o curioso e o depreciativo.

No outro dia, encontrei um desses potenciais futuros habitantes do país virtual através de uma rede social que espreitei por cima do ombro de um comparsa. Este virtuaguês enviava um “live” (diz-se “laife”, penso eu) dum navio de cruzeiro em que celebrava a sua felicidade. Na minha perspetiva, ele não percebia completamente a situação. Ele não entendia que estava perdido numa monótona cabine e preso num poluente hotel flutuante. Era uma felicidade tão forçada, tão ignorante e tão irresponsável que me arrepiou.

“É pá!”, exclamava abundantemente, “vocês não vão acreditar, malta! A felicidade enorme que estou a sentir! Não há crianças e quase não há idosos neste cruzeiro! Isto é que é vida, pá! Estou no paraíso!” Provavelmente, estava mesmo, mas num paraíso só dele. Uma bolha virtual que só ele podia compreender e com consequências danosas para os restantes. É mesmo possível perdermo-nos atrás dos estímulos imbuídos pelos cartazes publicitários e, como se não fosse já suficiente, defendê-los e propalá-los publicamente.

Penso que já é tarde demais. Os reguladores permitiram que as grandes redes sociais investissem de forma irreversível em novas tecnologias de espaços virtuais. Permitiram que se agisse primeiro, antes de refletir coletivamente. Portanto, ao contrário do que deveria ser, faltou planeamento. Acabaremos com estupefacientes com o beneplácito dos Estados, digo eu.

Claro que quem, no futuro, estiver do lado de lá, por trás dos implantes cerebrais numa sala às escuras, sentindo o maior prazer de que se pode usufruir e em perpétuo circuito repetitivo, olhará para a minha realidade, e sem hesitação, irá apelidá-la de distópica. Não é fácil contrariar esta cena que antes apenas víamos nos filmes. Com todo o sofrimento em que, por vezes, tropeçamos, com toda a maldade, avidez e egoísmo que resulta em guerras e com as convulsões sociais que arriscam a limitar a ação climática, podemo-nos interrogar sobre qual dos países é mais distópico.

A resposta, no entanto, está nos sorrisos dos outros. Aqueles sorrisos que enchem os nossos corações de luz, amor e esperança. São sorrisos que se constroem, que se conquistam, que se disseminam e que se ganham. Felizmente, mesmo entre azedumes e escondidos nos dias mais cinzentos, vislumbramos destes sorrisos que trazem em si todas as respostas necessárias. Estes sorrisos construídos com respeito e simbiose, que são merecidos e que são genuínos, estes não existem senão no país Real.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 59: Divagações sobre a natureza humana

Tudo começou quando li que os seres humanos são das poucas espécies em que os elementos do género feminino vivem para além do período fértil. Ou seja, a menopausa não acontece vulgarmente no mundo natural. “Interessante… Qual será a razão desta singularidade?”, perguntei-me…

Um dos artigos defendia que no caso das orcas, uma das outras espécies que vive para lá do período fértil, essa sobrevivência permite salvaguardar o património genético. Dizia-se no artigo que essas fêmeas mais idosas e em período pós-fértil defendem os seus filhos de uma forma particularmente feroz. Curiosamente, segundo a autora, as orcas defendem os filhos, mas não demonstram o mesmo interesse pelas filhas. Aparentemente, isso resulta do facto de os machos terem a capacidade de acasalar rapidamente com muitas parceiras diferentes e o contrário não se aplicar. Noutro artigo, um autor, defendia que as orcas deixam de se reproduzir porque, jamais abandonando a prole, acumulam demasiados filhos para se poderem reproduzir continuamente. Ainda outro cientista referia que as orcas mais idosas perdem a competitividade reprodutiva relativamente às fêmeas mais jovens. Atenção, estes trabalhos aplicam-se exclusivamente às orcas e não a qualquer outra das espécies que vive para além do período fértil.

Depois, de forma independente, li que os seres humanos têm uma diferença entre gestações inferior à maioria dos restantes primatas. Ou seja, em média, uma mulher tem a capacidade natural de ter um filho a cada três anos e isso é cerca de metade dos nossos primos genéticos.

Por que razão têm os restantes primatas de passar tanto tempo entre gerações? Por exemplo, uma mãe chimpanzé que deixe o seu filhote entregue à família estará a reduzir a sua capacidade de sucesso. O filhote não aprenderá ao mesmo ritmo e terá menores probabilidades de crescer saudável. Posto isto, os chimpanzés têm um período natural entre gestações que chega aos cinco anos. A mãe chimpanzé tem de se ocupar da cria a tempo inteiro e durante muito tempo…

Nos humanos não é assim. A vida social intensa, próxima e solidária permitiu que a confiança na família alargada se tornasse numa ferramenta evolutiva. Desde há centenas de milhares de anos que os hominídeos podem deixar os seus filhos bem entregues à família próxima.

Estarão estes dois factos relacionados? Será que a longevidade após o términus do período fértil nos humanos está relacionada com a capacidade de nos reproduzirmos com uma maior cadência? Uma mulher que pode confiar no apoio da família ficará mais disponível para se voltar a reproduzir. O uso da família alargada não reprodutiva, permite uma educação infantil também alicerçada na experiência dos mais idosos. Terá sido esta combinação entre maior cadência reprodutiva e o maior contacto com os mais experientes a vantagem adaptativa que nos distanciou dos primatas não-humanos?

Será que o ápex da evolução no planeta Terra é precisamente esta faculdade de incluir os mais idosos de forma dedicada no tecido social complexo que se verifica nos humanos? Se assim for, deveremos olhar para os outros animais que terminam prematuramente o período fértil com atenção e respeito acrescido.

Por último. Hoje, vemos as famílias modernas cada vez mais distanciadas dos idosos, por vezes mesmo vetando-os ao abandono. Pelo explicado atrás, parece-me claro que é, no mínimo, uma atitude insensata e, até por razões evolutivas como vimos atrás, inumana.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 58: “La Grande Confrontation”

Abaixo menciono alguns países e, porque me parece útil, à frente de cada um deles coloco o valor de índice de democracia correspondente, segundo uma Unidade especializada do Grupo The Economist. A escala vai de 1 (mínimo) a 10 (máximo).

Num artigo anterior, mencionei um livro da autoria de Raphael Glucksmann recentemente publicado. O eurodeputado, jornalista e ativista Raphael Glucksmann vale por si mesmo, mas é impossível não referir que ele é filho de um dos mais relevantes pensadores da segunda metade do século XX, André Glucksmann.  

Volto ao livro de Raphael para escalpelizar um pouco mais o seu conteúdo. “La Grande Confrontation” trata da invasão russa (2,28) da Ucrânia (5,42) e como, na perspetiva do autor, isso resultou em parte de corrupção, de laxismo e da desatenção dos Estados da União Europeia. Considero este um livro obrigatório para quem se preocupa com a democracia, embora me pareça não estar ainda disponível em português (apenas no original, em francês).

Ainda mais que a extensa justificação para o estado das coisas, interessou-me a parte final, em que o autor aponta caminhos para possíveis soluções. Um dos pontos cruciais que Glucksmann defende é a impossibilidade de a democracia sobreviver à desatenção. Há que criar pressão e motivação a todo o momento porque os perigos exteriores à democracia existem e existirão sempre. Nunca baixar a guarda! Sobreviverão as democracias que estiverem dispostas a se defender. Quem o escreve é também coordenador da Comissão Especial sobre Ingerência Externa do Parlamento Europeu. E, acrescento agora eu, mesmo com ações de defesa da democracia, o sucesso não é garantido. Que o digam os cidadãos da Região Administrativa Especial de Hong Kong (5,28) e da Bielorrússia (1,99), esmagados por sistemas antidemocráticos.

Um dos pontos defendidos por Glucksmann é a necessidade de privilegiar as relações económicas com os países amigos. No fundo, explica ele de forma exemplar, há apenas que garantir que as ações estabelecidas a nível diplomático têm eco nas relações comerciais. Justificando pelo absurdo, que sensatez tem repudiar os sistemas autoritários russo e chinês (1,94) e, ao mesmo tempo, privilegiar a dependência energética com a Rússia e dar a gestão dos nossos portos marítimos à China. Não faz qualquer sentido. E, claro, as relações comerciais da União Europeia com a Noruega (9,81) e com o Canadá (8,88), democracias livres, não podem ser postas no mesmo plano que as nossas relações com o Irão (1,96) ou a Coreia do Norte (1,08). Por muito que a Organização Mundial do Comércio o queira impor, não pode ser igual.

O outro ponto fundamental defendido pelo autor é a ecologia. Para ele, membro do Grupo Socialista do Parlamento Europeu, a ecologia é o único caminho para a Europa. De uma só vez, a Europa poder-se-á livrar de dependências de energias fósseis oriundas de países terceiros e colocar-se na vanguarda tecnológica se investir seriamente na inovação científica. No entanto, Glucksmann refere que os Verdes europeus não são, em muitos casos, verdadeiros ecologistas, visto estarem presos a dogmas e a soluções que a história já provou não serem sensatas. A título de exemplo, proponho eu, veja-se o repúdio da pesca elétrica (“pulse fishing”), repúdio este apoiado também pelos Verdes no Parlamento Europeu. Seria uma pesca muito mais ecológica do que os pesados, poluentes e destruidores arrastões. Segundo Glucksmann, e volto a repetir que ele é do Grupo Socialista, o movimento Verde poderá ser o porta-estandarte desta necessária revolução se se libertar de preconceitos e aceitar a melhor ciência.

O melhor mesmo é ler o livro. Fica clarinho que mais importante do que tentar impor as soluções democráticas a quem não as quer ou não tem condições para as aceitar, o melhor caminho é demonstrar em permanência e para todo o mundo ver que a democracia, no modelo ocidental, é a solução governativa que mais promove a felicidade individual e coletiva. Ecologia, liberdade e democracia!


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 57: Pinceladas sobre arte no Faial e no Corvo

 

Mero de Bordalo II na Ilha do Corvo.
Foto: F Cardigos

Segundo a wikipedia, arte efémera é o nome dado a toda a expressão artística concebida sob um conceito de transitoriedade no tempo e de não permanência como obra de arte material e conservável. Nos Açores há diversos exemplos de arte efémera. O mais espetacular é, sem dúvida, o conjunto das pinturas murais na marina da Horta. Tanto quanto sei, e deixo no ar o desafio de ser contrariado, este enorme mural é a maior obra de arte efémera coletiva e voluntária do mundo. Desde que iates passam pelo porto da Horta, portanto muito antes da construção da marina e da sua ampliação, há pinturas que aí são deixadas por velejadores de todas as culturas. É um enorme prazer passear pela marina da Horta e, na minha opinião, é um motivo de grande orgulho para a cidade.

Vem-me a arte efémera à memória não por causa da Horta e da ilha do Faial, admito, mas sim por causa da ilha do Corvo. Durante estas férias de Verão, estive algumas semanas no Corvo e, apesar de conhecer muitíssimo bem aquela ilha desde os anos 80 do século passado, consegue sempre dar-me novidades.

O artista Bordalo II, em 2021, compôs um extraordinário “cagarro” em homenagem ao empenho dos corvinos em proteger esta e outras aves marinhas. O “cagarro”, como é hábito em Bordalo II, é composto a partir de resíduos e ficou instalado na porta do pavilhão desportivo da Vila do Corvo. Esta peça nasceu do desafio laçado pelo projeto “OceanLit” da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves e contou com o apoio da Comissão Europeia através do programa Interreg, da Câmara Municipal do Corvo, da Direção Regional do Turismo e da EDA.

Este ano, poucos dias antes de chegar, li no jornal que a Câmara Municipal do Corvo tinha tomado a iniciativa de contratar uma segunda peça. Quando finalmente aterrámos na ilha, eu e a Sílvia não nos contivemos enquanto não encontramos o “mero” do Bordalo II. Esta peça é uma homenagem à proteção voluntária que os corvinos fazem a uma população visitável de meros e, em simultâneo, pretende “alertar e provocar um olhar diferente sobre o desperdício”. A instalação teve o apoio da Comissão Europeia através do Programa Mar 2020.

Foi inteligente não colocar esta obra propriamente à vista. Dentro da Reserva Biológica é necessário procurar até que, por entre o pasmo e a alegria, quase como se estivéssemos a mergulhar no Caneiro dos Meros, lá encontramos o peixe saindo do casco de um antigo barco. Brilhante!

Aquilo que me deixou absolutamente espantado é que há uma terceira peça de Bordalo II na ilha. Ao que me contaram, de forma abnegada e voluntária, o artista resolveu compor esta peça que é, de momento, considerada um esboço efémero. No entanto, o resultado é, na realidade, uma emblemática e divertida “vaca”. Dito assim pode parecer ligeiro. Não é. Vale mesmo a pena ver, mas será necessário procurar e ainda bem. Tal como no caso do “mero”, a procura e a descoberta fazem parte do prazer.

Ou seja, imagine-se, na ilha do Corvo há três peças públicas de Bordalo II. Mas não é apenas isso. O interior da Câmara Municipal do Corvo tem as paredes cheias de obras magníficas de Martins Pereira e tantos outros.

Aqui chegado, penso que há dois desafios. Talvez melhor do que a palavra “desafios” seja pensar em “oportunidades”... Primeiro, há que tirar a “vaca” de Bordalo II da lista das obras efémeras dos Açores, responsabilizando uma entidade pela sua manutenção. Em segundo lugar, há que criar um circuito de arte da ilha, que aponte a localização das principais obras que o Corvo foi conquistando ao longo do tempo. Eu gostei muito, mas mesmo muito de encontrar todo este espólio e penso que outras pessoas poderão pensar e sentir da mesma forma.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 56: Trabalhando para o público

Nunca fui “funcionário público” na acepção portuguesa da expressão. Ou seja, nunca tive um contrato permanente com organizações públicas, apesar de ter sempre trabalhado em serviços públicos. Ao longo da vida, tive contratos baseados em bolsas de investigação ou a termo. Isto significou que, no final de cada ciclo, tive de provar o sucesso anterior e candidatar-me a novas posições. Esta sequência apenas foi quebrada quando me convidaram para desempenhar funções oficiais.

A grande vantagem deste rodopio laboral é que sempre pude escolher o que mais me convinha entre o que estava disponível (em termos de objetivos profissionais, de remuneração e de outras condições), mas com a enorme desvantagem de nunca ter tido estabilidade. Assim sendo, sempre que estive sob contrato ganhei mais e fiz essencialmente o que gostava, mas o máximo que pude planear à frente foram três anos. Digamos que é péssimo para obter um crédito para comprar uma casa ou um carro e um pouco deprimente nos períodos entre contratos.

A diversidade de posições e a alternância de organizações para que trabalhei deram-me uma perspectiva abrangente das diferentes realidades e o privilégio de poder dar alguns contributos para reflexão. Devo começar por dizer que o sistema português é, comparativamente, pouco versátil, cheio de privilégios inquestionados e com o progresso na carreira assente quase totalmente na antiguidade. O resultado é que os funcionários públicos em Portugal tendem a fazer apenas o necessário. Fazem-no bem, mesmo muito bem, mas o mínimo necessário e sem nunca dar nas vistas.

No Parlamento Europeu fui assistente parlamentar acreditado de um membro eleito. Os assistentes não têm lugares permanentes e têm de “lutar” para permanecer ou melhorar a sua posição. Ganha-se bem, mas um mau assistente é despedido sem misericórdia ou compensação. É o preço a pagar. Tipicamente, o assistente especializa-se na respetiva área de competência e, em princípio, vai acedendo a novos contratos, por vezes trocando de eurodeputado para melhorar a sua situação financeira ou aceder a uma maior longevidade contratual. Os melhores eurodeputados tendem a atrair os melhores assistentes e vice-versa.

Na Comissão Europeia, onde trabalho atualmente, há dois níveis de progressão. A progressão horizontal, por escalão, é totalmente assente no tempo de serviço. São pequenos saltos, até atingir o escalão máximo dentro de um grau, mas que, apesar de pequenos, estimulam a permanência na instituição.

A progressão vertical, faz parte de um processo mais geral que começa pela avaliação anual do funcionário. Com base nesta avaliação, que segue também um processo bem formalizado, é a hierarquia que, por entre os seus funcionários, escolhe os melhores para propor para promoção. Estas propostas são depois discutidas pelos níveis hierárquicos superiores até haver uma lista estabelecida por cada Direção Geral. Sendo o número de promovidos limitado, esta lista não contém todos os propostos pela hierarquia imediata.

Quando um funcionário se sente mal ou injustiçado pela sua chefia ou pelo resultado final do exercício das promoções pode lançar um recurso ou, simplesmente, pedir para ser deslocado de unidade. Pelo que pude verificar, a maioria das pessoas que é competente e não está confortável com a classificação pede para ser deslocado de unidade o que, tipicamente, acontece rapidamente e sem qualquer conflito.

O processo de progressão é acompanhado por sindicatos e por estruturas oficiais que verificam e auditam o sistema. Isso garante que não há privilégios imerecidos ou outras regalias fantasmas. Portanto, está tudo montado para que seja promotor da competência e desmobilizador do conflito.

 Um funcionário que queira avançar mais rápido na carreira e saltar mais de um nível pode sempre concorrer a um dos variados concursos lançados pelas Instituições europeias. Por exemplo, um colega meu com contrato permanente na Comissão Europeia descobriu recentemente que havia concurso para dois níveis acima do dele e para o qual era elegível. Começou de imediato a estudar e, caso tenha sucesso, vai ganhar mais mil euros por mês! Terá que fazer os exames necessários para provar que tem realmente competência para assumir as novas responsabilidades, mas, em caso de sucesso, será altamente recompensado. O serviço também fica a ganhar porque seleciona a melhor pessoa de entre as dezenas de milhar que tem nos seus quadros.

Um enorme contraste com o caso português, preso numa teia de burocracia, desconfiança e com recompensas difíceis de discernir. Por exemplo, há pouco tempo reparei que os melhores funcionários públicos portugueses podem ser agraciados com um dia suplementar de férias anual. Para isso, terão de ser avaliados e auditados num interminável procedimento. Eu, que nem sou funcionário do quadro da Comissão, estou hoje a usufruir de um dia suplementar de férias (aqui chamado de “recuperação”) apenas porque nos registos diários se concluiu que tenho trabalhado mais tempo do que era suposto. Depois de uma confirmação sumária segue-se uma autorização quase imediata por parte da hierarquia. Claro que, quando amanhã voltar ao trabalho, irei muito mais satisfeito e cheio de vontade de produzir porque sei que o sistema está montado para olhar descomplicadamente por quem se dedica. Isso é espetacular.

Para terminar quero referir um exemplo de que tive conhecimento através de um livro publicado este ano. Apesar de ter sido escrito por um eurodeputado, Raphael Glucksmann, a passagem em causa refere-se aos funcionários públicos de Taiwan e, parece-me, poderia facilmente ser aplicado em Portugal.

Trata-se de um sistema que avalia as propostas anualmente sugeridas pelos milhares de funcionários públicos para a melhoria do seu próprio serviço. Depois de avaliadas, as propostas meritórias são colocadas em prática e os autores são automaticamente promovidos sem qualquer intervenção das chefias. Isto faz com que as pessoas que têm melhores ideias e maior capacidade de gerar a mudança positiva sejam altamente estimuladas e, se for caso disso, rapidamente colocadas em posição de implementar essa mesma mudança.

Com um somatório de atitudes como estas, o certo é que Taiwan (República da China, de seu nome oficial) continua a resistir. Uma enorme prova de sucesso.



* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 55: Pára tudo!

Proposta de Áreas Marinhas Protegidas no Mar dos Açores.


Pára tudo! Assim mesmo, em português do antigo e do bom!

Pára tudo, já! Isto é mesmo importante para todos os que gostam de mar. Aquele mar gigante, grande, largo, azul, útil, venturoso, profundo, misterioso e inspirador? Sim, precisamente!

O Governo dos Açores lançou um processo de consulta pública para todos os cidadãos interessados se pronunciarem sobre a nova proposta de Rede de Áreas Marinhas Protegidas do arquipélago. Este processo de consulta pública inclui as áreas propriamente ditas (expostas em mapas) e o enquadramento jurídico para a gestão da nova rede.

Em termos científicos, este processo assenta em muito no trabalho iniciado pelo Doutor Ricardo Serrão Santos e hoje protagonizado pelos cientistas do Okeanos, antigo DOP. Aliás, um dos relatórios deste instituto, denominado “Cenários de planeamento sistemático de conservação do mar profundo dos Açores”, faz parte do próprio processo de consulta. O relatório é coordenado pelo Doutor Telmo Morato e a sua equipa está, neste momento, a terminar a visita à centena e meia de montes submarinos dos Açores que se localizam até aos mil metros de profundidade. É um trabalho gigantesco, nunca antes feito e que usa muita tecnologia desenvolvida no próprio arquipélago.

Sendo a investigação científica do mar profundo um trabalho que exige enormes esforços, merece também menção o multilateralismo e a cooperação científica internacional. Ao longo dos anos, investigadores do Okeanos, como a Doutora Ana Colaço, também Comissária da Comissão do Mar dos Sargaços (baseada na Declaração da Hamilton), vêm reforçando as parcerias com os melhores institutos de investigação do mundo que permitem, progressivamente, ir conhecendo o Mar dos Açores, aquele que agora queremos proteger ainda melhor.

Não irei aqui repetir o anúncio da consulta pública que pode ser encontrado na internet com uma simples pesquisa, mas tenho de enfatizar alguns detalhes. Em primeiro lugar, esta proposta permitirá proteger 30% do mar alto dos Açores. Todos os cientistas sérios referem vezes sem conta que este é um factor essencial para a recuperação e preservação dos Oceanos. É necessário proteger, pelo menos, 30% dos oceanos globais. Ao apontar para este número, os Açores estão a responder coerentemente ao repto internacional.

Em simultâneo, os mesmos cientistas referem que é necessário interditar à extração cerca de 15% dos Oceanos. Mais uma vez, a proposta aponta para este número. Portanto, se podemos e devemos questionar alguns dos detalhes expostos na consulta pública, estes números, para mim, são realmente importantes e urge não os colocar em risco.

Alguns poderão dizer que interditar à extração 15% do Mar dos Açores pode ter custos. Realisticamente, não me parece. Certamente, algumas áreas significativas para as pescas ficarão agora interditas. No entanto, estas áreas, os tais 15%, servirão de base a diversos serviços ecológicos que beneficiarão todas as atividades, incluindo as pescas. Por exemplo, estas áreas protegidas podem funcionar como zona de reprodução, como zona de crescimento, como zona de refúgio ou como zona para outros processos ecológicos de recuperação e resiliência ambiental.

Não me parece que esta Rede de Áreas Marinhas Protegidas prejudique as pescas ou outras atividades extractivas que decorrem nos Açores, mas mesmo que prejudicasse, há zonas que, pelo seu elevado valor em termos de biodiversidade, em termos de geodiversidade ou de património arqueológico têm que ficar em paz. Não podemos estar preocupados com o ambiente, com a natureza e com a cultura às terças e quintas e destruí-las no resto da semana. Há ações que custam, mas que temos de fazer. Felizmente, não me parece que esta Rede seja um peso. Os benefícios ultrapassam em muito os custos associados.

Como referia, há certamente ainda alguns aspectos a melhorar na proposta. Na minha opinião, há que restringir o uso em zonas adicionais. Por exemplo, é imprescindível que zonas vulneráveis da Dorsal Médio-Atlântica, como as fontes hidrotermais “Menez Gwen” e “Luso” e os montes submarinos particularmente ricos em esponjas e corais do mar profundo, sejam incluídas nas zonas não extractivas. São locais com uma enorme biodiversidade e espécies que não existem em mais lado nenhum. Que irresponsabilidade seria não as proteger. Felizmente, temos este processo de consulta pública para expressarmos estas e outras opiniões e daqui nascer uma Rede de Áreas Marinhas Protegidas do mar alto que seja um exemplo a nível mundial.

Atrás, refiro o “mar alto” porque a revisão das zonas marinhas costeiras, aquelas que integram os Parques Naturais de Ilha dos Açores, ficarão para um segundo momento. Está a decorrer um processo participativo paralelo de definição e que, certamente, estará em breve em consulta pública. Por essas áreas costeiras, aguardemos.

É mesmo importante ler os documentos associados à nova Rede de Áreas Marinhas Protegidas do mar alto dos Açores, refletir e participar. Até 15 de setembro, os nossos governantes têm de sentir que o Mar dos Açores é mesmo relevante para os açorianos e para todos os que têm o sangue polvilhado de maresia. Este é o momento de o demonstrar!


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 54: Então, como vai isso de redes sociais?

As redes sociais na internet nunca foram sítios propriamente recomendáveis. Desde o início, foram mais propensas a fomentar os desaguisados e menos a promover ligações felizes entre as pessoas.

Dito isto, reconheço aspectos positivos nas redes sociais, como seja o combate à solidão, particularmente importante para os menos jovens e para os que se encontram isolados, permitindo encontros e reencontros. Através das maiores redes sociais é também possível restabelecer contactos há muito perdidos ou, como aconteceu também comigo, esclarecer vil desinformação. A promoção de atividades de algumas pequenas organizações, que não têm meios para aceder aos grandes meios de comunicação social (como jornais, televisões e rádios), também é um aspecto positivo.

Inicialmente, sentíamos que estávamos, de forma gratuita, a diversificar e a intensificar a nossa vida social pelo facto de interagirmos através destes portais. Mas, descobrimos depois, não era um sistema assim tão abnegado. As redes sociais tipificaram os nossos comportamentos colectivos e, a troco de dinheiro, transmitiram essa informação a empresas que, desta forma, puderam ajustar os seus serviços para mais nos vender. Como afirmou com clarividência o jornalista Andrew Lewis, “se não estás a pagar, tu não és o cliente, mas sim o produto”.

Para melhor nos conhecerem, as redes sociais encontraram formas de nos prender ao ecrã e isso incluiu técnicas de polarização e de incitação ao conflito. Estamos a ser manipulados para nos mantermos em linha, a ser estudados, avaliados… A partir do momento em que este modelo económico foi conhecido e divulgado, apenas se manteve em linha quem o desejou. É uma decisão informada, consciente e livre e, portanto, nada há a dizer.

Aquilo que menos perceberam e ainda é motivo de discussão é o nível de desinformação a que, sorrateiramente, são expostos os utilizadores das redes sociais. São públicos os processos de manipulação em massa que influenciaram o Brexit e as eleições norte-americanas de 2016, mas serão os únicos casos? E qual o nível da consequência? Terá sido suficiente para alterar os resultados desses importantíssimos processos democráticos?

Quantas discussões, quanta desinformação? Ou mesmo, quantos roubos? Durante algum tempo, resolvi resistir à saída até porque, perante a maldade, a postura das pessoas de bem deve ser resistir. Senti a obrigação de tentar clarificar a argumentação errada que por lá circulava com base no meu parco conhecimento.

Infelizmente, o terreno está “minado”. O algoritmo favorece o desentendimento e isso ficou-me muito claro quando um negacionista, tendo perdido todos os argumentos numa dessas discussões me deu o knock-out: “Tu não tens razão. Caso tivesses, não estarias tão empenhado em me contradizer. O teu empenho em apresentar argumentos é a prova de que me queres enganar.” E pronto, o meu interlocutor continuou a negar o efeito positivo da vacinação porque eu tinha argumentado com factos. A grande questão, no entanto, era a razão pela qual o estava sempre a encontrar. Em milhões de pessoas no mundo, por que raio esta pessoa me estava sempre a cair no prato? O tal do algoritmo... E a verdade é que usei inutilmente parte do meu tempo nesta vã tentativa de contribuir para endireitar o mundo.

Na realidade, eu não comecei a desistir das redes sociais por ter perdido a paciência ou o interesse na argumentação ou por recear a manipulação. Iniciei o meu processo de retirada quando, a partir do Vietnam, usaram a minha conta numa rede social para publicar um anúncio. Ao constatar que nem sequer podia protestar, porque já não há seres humanos do lado de lá, compreendi que algo de muito errado estava a acontecer e iniciei o processo de saída.

Mantenho-me passivamente no LinkedIn por potenciais razões profissionais e no WhatsApp por reais razões profissionais. Hoje, há minutos, saí do Twitter. Depois do Facebook, Messenger, Instagram e Telegram foi mais um passo para a libertação.

“Qual o resultado?”, podem querer perguntar... Sinto-me muito melhor, obrigado.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 53: Em Bordéus

 


"Santa Maria Manuela" ostentando A Portuguesa.
Foto: F Cardigos

Foi espantoso ver uma enorme bandeira portuguesa que se erguia sobre o rio Garona. O “Santa Maria Manuela”, um dos lindíssimos navios da frota branca portuguesa, assinalava com majestade o local da Festa Anual do Vinho de Bordéus.

Perto do nosso quatro-mastros, estavam os veleiros “Pen Duick” do comandante Éric Tabarly, um velho conhecido da Horta e uma das fontes de inspiração das aventuras de Genuíno Madruga. A associação que gere o espólio de Éric Tabarly aproveitou a festa do vinho para promover a vela e os valores do comandante falecido em 1998.

Bordéus, em termos demográficos, não é propriamente uma grande cidade. A área metropolitana não chega a um milhão de habitantes. No entanto, a fama dos seus vinhos e o seu papel na História da França – nem sempre pelo lado da França – fazem com que a sua dimensão populacional seja dissonante da sua importância real.

Evidentemente, a área em que está implementada a cidade de Bordéus tem certamente um brilhante passado pré-histórico e romano. Mas eu quero começar a minha história de Bordéus um pouco depois, no século XII. Quero escrever sobre Leonor da Aquitânia.

Condensando uma longa e extraordinária história em algumas pequenas frases, Leonor da Aquitânia foi uma mulher que, em plena idade média, se separou do Rei de França, com quem tinha já duas filhas, para se casar com o Rei de Inglaterra. Leonor foi a mãe de cinco monarcas, três deles reis de Inglaterra, incluindo os famosos Ricardo Coração de Leão e João Sem-Terra. Quase todas as casas reais da Europa e mesmo a Casa Imperial do Brasil descendem de alguma forma de Leonor da Aquitânia.

Do casamento de Leonor com Henrique II, Rei de Inglaterra, resultou que a Aquitânia passou a fazer parte do Império Angevino e, depois, da coroa inglesa. Esta relação era protegida pelos bordaleses, que usufruíam de tentadoras isenções de taxas de comércio que catapultaram a importância do enorme porto comercial que se estendia pelo rio Garona ao longo da cidade.

Foi necessário os franceses ganharem a “Guerra dos Cem Anos” e outras altercações internas para que esta situação terminasse e a coroa francesa submetesse o ducado. Vítima da justificada desconfiança dos franceses quanto à lealdade dos cidadãos de Bordéus, as estruturas militares locais então construídas tinham os canhões apontados para a própria cidade, tentando assim desmotivar outras tentações… Mas a relevância do porto manteve-se, tendo sido o mais importante de França e o segundo da Europa (apenas atrás do porto de Londres) durante largos períodos. Além disso, o porto foi fulcral para o passo seguinte: o vinho.

O vinho começou a ser produzido na região no tempo dos romanos. No entanto, como nos foi dito pelos locais, tinha uma qualidade apenas razoável e uma produção limitada. Essencialmente, faltava terreno. Uma associação estratégica com os holandeses iniciada no século XVII teve uma importância fundamental, tendo estes trazido saberes em que eram exímios: o comércio e a drenagem. Hoje, no Médoc, os pântanos então drenados, são produzidos alguns dos vinhos mais prestigiados do mundo.

Durante quatro anos, durante a Segunda Guerra Mundial, Bordéus foi vítima da ocupação nazi de parte da França. No Garona, foi então construído um enorme hangar para submarinos. Hoje, este local é uma enorme sala de exposições multimédia que vale mesmo a pena visitar.

Foi também durante este período negro que se estabeleceu na cidade um dos seus grandes heróis. Aristides Sousa Mendes, o Cônsul de Portugal em Bordéus, “um dos que teve a coragem de dizer não”, salvou 30 mil pessoas, dos quais dez mil judeus. Este facto está gravado nas paredes da cidade como “um justo entre as nações”.

Bordéus à beira d’água, aquela que foi a casa do jogador de futebol açoriano Pauleta durante um dos períodos mais brilhantes da sua gloriosa carreira, é uma cidade que soube olhar para si própria, para as suas oportunidades e debilidades, valorizando as primeiras e estrategicamente modificando as segundas. Parece simples.

Muito mais haveria para escrever sobre Bordéus como, por exemplo, foi o modelo que inspirou a cidade de Paris moderna, mas o espaço de uma crónica é limitado. Termino com as palavras simples, mas profundas de Victor-Hugo, um dos grandes da literatura, “Pegue em Versalhes, junte-lhe Antuérpia e obtém Bordéus”. Quem sou eu para discordar?


Um dos "Pen Duick" no rio Girona, em Bordéus.
Foto: F Cardigos


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 52: Lacuna musical ou empolgante oportunidade de descoberta?

Num destes dias, num convívio com colegas de trabalho, fiquei ainda mais perplexo com a distância cultural existente entre as diferentes pessoas. No contexto laboral das instituições europeias, a distância geográfica do local de origem é uma determinante que condiciona a língua, os valores e as referências culturais. Até aqui, tudo normal e, como já várias vezes o escrevi neste espaço, estas diferenças fascinam-me. O que não estava à espera, eventualmente apenas porque nunca tinha pensado nisso, foi na distância cultural motivada pela diferença geracional.

Estando encarregue da seleção musical deste convívio em particular, pedi aos colegas que me enviassem sugestões. A maioria, como resultava da minha solicitação, enviaram-me propostas que espelhavam a sua origem, as suas tradições e os seus costumes. Os mais jovens, por outro lado, detiveram-se mais nas músicas da moda que, apesar de não apreciar particularmente, respeitei. Tanto um conjunto como o outro, integrando as músicas do meu próprio gosto ou as que considerava adequadas para motivar a alegria e o convívio, constituíram a seleção final. Passámos uma tarde bem engraçada, entre conversa, gargalhadas e dança. Foi bom.

No final, enquanto se arrumava e limpava o espaço, tropecei num conjunto de músicas que tinha selecionado para um outro fim. Eram melodias rock e pop dos anos 70 e 80, aquelas que fizeram a transição entre a geração dos meus pais e a minha. Cure, Talking Heads e Elvis Costello eram alguns dos protagonistas das músicas que agora, em fim de festa, eram apreciadas pelos mais idosos (como eu…) e ouvidas com curiosidade pelos mais jovens.

Foi então que entendi! Estes jovens não faziam a menor ideia de quem estava a tocar. Não conheciam as músicas, as suas histórias, a sua beleza, o seu contexto e, nalguns casos, nem os nomes dos grupos ou dos artistas. Nada lhes diziam. São pessoas espetaculares em termos de valores e competência, mas, em termos de música “antiga”, sabem muito pouco.

Eu lembro-me que, no meu tempo, conhecíamos os ídolos musicais dos nossos pais e, gostando ou não, tínhamos de ouvir. Jamais alguma das pessoas da minha geração pensou ser possível não reconhecer de imediato e aos primeiros acordes as músicas dos anglófonos Beatles, Janis Joplin ou Buddy Halley, dos francófonos Edith Piaf ou Jacques Brel (que muito apreciava o Faial) ou dos grandes nomes da música erudita. Conhecíamos porque gostávamos, é certo, mas também porque, caso falhássemos na sua identificação, seríamos benevolamente humilhados nos jantares de família e acariciados com mimos do tipo “Estes jovens, não sabem o que é bom…”. E, na realidade, com um percalço ou outro, conhecíamos muito razoavelmente o contexto musical dos nossos pais.

Hoje não é assim. Seja o resultado de um maior distanciamento entre os novos jovens e os seus pais (vítimas dos jogos de vídeo, redes sociais ou outros), o que é certo é que pouco sabem. Coloquei uma das faixas mais conhecidas do álbum Dark Side of the Moon dos Pink Floyd e nada. Não lhes dizia nada! O “Money for Nothing” dos Dire Straits é, para estes jovens, uma sonoridade absolutamente nova. Como é possível?!

Mais do que ter alguma pena ou desgosto, no entanto, o meu sentimento prevalecente é uma certa inveja, admito. Para eles, é tudo novo! Lembro-me de ser miúdo e ouvir nas escadas da entrada do meu ciclo preparatório as músicas de Rock Português que então despontavam. A nossa curiosidade, perplexidade e satisfação coletiva perante cada lançamento enchia-nos de uma alegria sem dimensão e que, ainda hoje, vou procurando em cada música que me chega aos ouvidos. Estes jovens de hoje têm um enorme mundo para descobrir a partir do momento em que se aventurem a ouvir tantas coisas bonitas. Ou será que estes novos jovens serão os primeiros a contrariar a Elis Regina quando cantava “Ainda somos os mesmos e vivemos, Como os nossos pais”?


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 51: Imprevistos da evolução tecnológica colocada ao serviço do cidadão

Há uns anos, alguém me dizia que os carros elétricos eram um perigo porque as pessoas invisuais não os conseguiam detetar. Era necessário o barulho dos motores para que conseguissem identificar o risco. Como tinha um carro híbrido que se limitava ao motor elétrico em parte da circulação citadina, passei a ter atenção redobrada com os peões. Para ser verdadeiro, durante os dez anos que esse carro me acompanhou, não tive qualquer problema com cidadãos invisuais.

No entanto, registei a tentativa de introdução de ruídos artificiais nos carros elétricos que se deslocam em cidade como uma atenção para com um conjunto de pessoas que merece o nosso particular cuidado dadas as suas limitações neste aspeto específico. Ao mesmo tempo, pensei que seria apenas uma questão de tempo até que a maioria dos carros se tornassem silenciosos e aí, com menor ruído em geral, seria possível eliminar o ruído artificialmente introduzido. Não sei o que aconteceu depois, até porque agora me desloco de bicicleta e apenas conduzo carros emprestados ou alugados.

Tudo isto significa que a introdução de uma mais-valia tecnológica, como os automóveis sem emissões, pode acarretar alterações ao quotidiano como o conhecemos e de formas que, pelo menos eu, não antecipei. E isso voltou a repetir-se…

Aqui no Luxemburgo, as pessoas são estimuladas pelo rendimento e pelas regras fiscais estabelecidas a trocar de carro com uma frequência mais elevada do que em qualquer outro sítio onde eu tenha estado. Isso significa que o parque automóvel, em todas as gamas, é muito recente e tem, por isso, todas as novidades tecnológicas que estejam a despontar.

Uma dessas novidades é a deteção automática de peões e bicicletas. Descobri isso da pior forma. Talvez não da pior, visto que ninguém se magoou, mas, pelo menos, de uma forma nada simpática.

Num parque de estacionamento, resolvi passar muito perto da frente de um carro que estava a recuar. Estando com as luzes de recuo acesas, eu sabia que a minha bicicleta poderia passar à frente do carro sem qualquer problema de segurança. Apenas o carro não o sabia e disparou os alarmes internos. A senhora idosa que conduzia a viatura, resultado do enorme susto e consequente irritação, apitou imenso. Desconhecendo o que tinha sucedido dentro do veículo e pensando que estava aflita, voltei atrás e tentei ajudar. Para minha surpresa, fui brindado com um conjunto de insultos que desconhecia dado estarem a ser ditos em luxemburguês. Depois de perceber o que tinha acontecido, pedi desculpa e tentei acalmar a senhora. Penso que ficámos bem…

Esta mesma situação voltou a acontecer, novamente num parque de estacionamento, mas dessa vez eu estava apenas próximo do automóvel. Os carros estão a ficar muito suscetíveis, pensei eu… Mais uma vez, “as minhas desculpas” e ala que andar.

Recentemente, descobri que há uma nova e muito mais perigosa evolução. Os novos modelos de automóveis bloqueiam quando uma bicicleta se aproxima a alta velocidade. Tendo uma bicicleta elétrica com travões de disco, não hesitava em entrar dentro das rotundas como se não houvesse amanhã. Da última vez que o fiz, o carro que ficou à minha frente, e que eu pretendia passar por trás, bloqueou as rodas e ia provocando um acidente, sendo eu um dos potenciais envolvidos e, de certa forma, responsável. Fiquei meio desconcertado de tanto pasmo e, mais uma vez, fui brindado com um conjunto de palavrões que, progressivamente, começo a reconhecer… Depois de acalmar, o condutor explicou-me o que tinha acontecido e acabamos por nos rir um pouco da situação, particularmente por causa da minha cara de total espanto.

Sou o mais possível a favor do desenvolvimento tecnológico, da sua colocação ao serviço do cidadão e, particularmente, daquelas inovações que aumentam a segurança na estrada. No entanto, devia haver um género de curso ou, no mínimo, uma circular para que os ciclistas se preparassem e se precavessem para este mundo em constante mudança. Seria meio estranho que acabasse vítima de um dispositivo desenvolvido para me proteger!


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 50: Castelo de Malbrouck

 

Interior do Castelo de Malbrouck.
Foto: F Cardigos

Os erros continuam a encantar-me. Atenção, eu não estou a afirmar que gosto de me enganar ou que outros se enganem. Nada disso. Simplesmente, depois do erro feito, eu aprecio realmente tentar entender a sua génese, rir-me da sua imprevisibilidade, deleitar-me com as suas inesperadas consequências positivas, se existirem claro está, e, se nada de mais relevante houver, tentar entender como se podem evitar futuras situações equivalentes.

Sou um aficionado do planeamento e profissionalmente totalmente dependente do cumprimento de objetivos. Por isso, na realidade, tenho pavor aos erros antes de eles acontecerem. Algo que, de forma inesperada, se intrometa entre o percurso definido e a conclusão da tarefa pode implicar falhar aquela meta que ajudará a pagar as contas ao final do mês. No entanto, vezes demais, tenho notado que muitos erros são “velhacos”, tal como o “Caracol” do cancioneiro açoriano.

Pausa no artigo e no seu fluxo racional para informar que quem não entender a referência anterior precisa de um refrescante curso de cultura popular açoriana. De qualquer forma, todos podem, devem e têm de escutar a versão do “Caracol” pelo O Experimentar Não M’Incomoda, cantado por Miguel Machete, com arranjos e criação de Pedro Lucas e inspirado n’ “O Cantar Na M'Incomoda” de Carlos Medeiros. Fim da pausa no artigo e reinício do seu fluxo razoavelmente racional.

Para mim, muitos erros são velhacos porque, numa torção inesperada da realidade, perdem a sua componente penalizadora e se transformam em benignas e enganadoras paródias. Quais trapaceiros, ludibriam-nos, mas dão-nos um sorriso ao mesmo tempo.

E com tudo isto ainda não chegamos ao Castelo de Malbrouck. E não chegámos até porque nem era suposto lá termos chegado! A uma última curva de entrar na cidade de Schengen, o condutor não virou à direita, continuou em frente corrompendo o espaço-tempo. Daí para a frente, o inesperado ir-se-ia suceder com uma cadência que desafia a normalidade.

Tentando encontrar no meu cérebro uma alternativa para o erro (sim, admito, eu era o condutor), uma placa brilhou no meio do meu campo visual: “Château de Malbrouck”. Ao meu lado, talvez tentando salvar-me do meu erro, a Sílvia diz-me: “Dizem que o Castelo de Malbrouck tem muito interesse.”

Pensar depressa: Estamos entre três países, Alemanha, Luxemburgo e França. Dois desses países andaram às turras durante séculos. Um castelo construído nesta zona tem certamente mil histórias para contar. “Abandonemos Schengen, Malbrouck é o nosso destino. Sempre foi! Boa?” “Sim, sim.”, responde generosamente a Sílvia.

O Castelo de Malbrouck nem sempre teve esse nome. Construído no século XV com o nome de Meinsberg, tinha por fim dar estatuto ao aristocrata que o mandou construir, dissuadir quaisquer intenções de tomada da área subjacente e resistir a investidas exteriores em caso de necessidade. De tal forma bem-sucedido, o castelo jamais teve uso beligerante até que se deram os eventos que conduziram à mudança de nome.

O nome “Malbrouck”, o castelo herdou-o de um importantíssimo general inglês que jamais se chamou Malbrouck, mas sim Malbrough. Para se ter uma ideia da importância de Malbrough, talvez baste dizer que o famoso Duque de Wellington se referiu a Malbrough como o melhor. Simplesmente, os francófonos não são muito dotados para as línguas (dito pelos próprios) e Malbrough passou a Malbrouck. De certa forma até é bom porque o que ali sucedeu não é muito digno.

À frente de uma coligação internacional em 1705, Malbrough tentava invadir a França. Enquanto aguardava por reforços, fez base no castelo Meinsberg e estacionou o seu exército de 100 mil homens ali à volta.

O exército que deveria resistir à investida era comandado pelo marechal Villars e tinha apenas 50 mil homens. No entanto, entre o respeito pelo marechal Villars e o medo, Malbrough preferiu esperar por reforços. Esperou tempo demais e, em vez de ter reforços, viu o seu próprio exército começar a desertar. Constatando que estava enfraquecido, Malbrough acabou por se retirar durante a escuridão de uma das noites seguintes.

Imaginem a surpresa do marechal Villars quando numa manhã ao levantar-se descobriu que tinha ganho uma batalha contra um exército muito mais forte que o seu e sem sequer ter um único ferido. Deve ter sido um dia bem feliz!

A História é madrasta e Malbrough, esquecido de todas as suas vitórias e glórias, é hoje apenas lembrado pelo castelo de onde fugiu e pela música “Malbrough s'en va-t-en guerre” que celebra a sua morte numa batalha em 1709 onde nem sequer morreu… Talvez para tentar fazer esquecer a letra trocista francesa e a sua versão irmã espanhola, os ingleses adaptaram o texto para o “For He's a Jolly Good Fellow” (“Ele é um bom companheiro”, na versão portuguesa).

E assim, impoluto, continuou o castelo, agora com o nome de Malbrouck, sem qualquer baixa no seu historial. O mesmo aconteceu daí para a frente, de tal forma que o castro foi decaindo por falta de propósito. Quando finalmente, no segundo quartel do século XX, o castelo mereceu atenção por razões puramente culturais e começou a ser recuperado, foi inutilmente bombardeado e totalmente desfeito durante a segunda guerra mundial. Mais uma vez, nem um ferido.

A seguir à II Grande Guerra, o castelo foi recuperado pelas autoridades francesas e hoje é um belíssimo centro de exposições particularmente orientado para a banda desenhada. No dia que visitámos o Castelo de Malbrouck estava em exibição uma exposição sobre as mulheres da Resistência que era simplesmente soberba.

Responsabilizo os deuses pelo encadear de erros que nos deixam de esmagados pelo pasmo e pela surpresa. De uma curva que não se fez, um castelo sem propósito, uma guerra que não aconteceu, um nome mal pronunciado, uma música que celebra a morte de quem não morreu, outra guerra que errou no alvo… Agradeço aos deuses terem-me enganado e me colocado no encalço destes deliciosos erros que pontuam a existência do Castelo de Malbrouck.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sábado, 13 de maio de 2023

Crónicas do Voo do Cagarro - 49: Javalis em Bruxelas: Uma Oportunidade para Explorar a Vida Selvagem

 


Corvos a brincar na neve, Luxemburgo.
Foto: F Cardigos

A notícia chegou-nos através da rede social de proximidade mais utilizada em Bruxelas. Era imperativa e estava acompanhada por uma fotografia de buracos na relva. Podia-se ler: “Encontrei estes buracos feitos por javalis no meu jardim. Já chegaram a Bruxelas!”

Entenda-se que os arredores de Bruxelas são conhecidos por terem uma vida selvagem interessante. Para além das inúmeras espécies de aves, as raposas são visitas habituais. Mais difícil é ver veados, mas, até eu, já por uma vez tive essa sorte.

Ao contrário dos demais vizinhos, que estavam preocupados em como defender a sua relva imaculada ou as tulipas e afins da ameaça dos suínos selvagens, eu preocupei-me em arquitetar uma estratégia para fotografar os ditos animais. Isso é que era!

Penso que, enquanto jovem, fui positivamente contaminado pelos programas televisivos de vida selvagem do Gerald Durrell. Nele, o autor e apresentador defendia que em cada canto do nosso planeta podíamos encontrar vida selvagem, desde que procurássemos. As palavras dele eram qualquer coisa como “o jovem naturalista apenas tem que estar atento aos sinais que o levarão à vida selvagem”. As palavras eram acompanhadas por imagens do deserto, onde o autor inesperadamente encontrava aranhas e escorpiões.

Talvez imbuído por esse espírito, alegram-me detalhes eventualmente secundários para a maioria. Por exemplo, no pico do inverno, “descobri” que os corvos adoram brincar com a neve que cai mesmo em frente do meu gabinete no Luxemburgo. Fiquei deliciado a fotografar e a filmar, distraindo-me irresponsavelmente do trabalho por alguns instantes.

Portanto, os javalis são o máximo e, um dia, hei-de conseguir fotografá-los. “Javalis em Bruxelas!” Tenho de conseguir. Para já, os javalis parecem ter recuado, visto que ninguém mais, incluindo eu, os viu.

Na conversa com colegas que entendem de comportamento animal terrestre, explicaram-me o que fazer e não fazer quando se encontra um javali. Disseram-me que os javalis ficam tão assustados quanto os humanos e, por definição, tentarão evitar o encontro. Exceptuam-se, explicaram-me, as fêmeas acompanhadas por crias. Estas, para protegerem a prole, apenas fugirão depois dos humanos e, portanto, visto serem animais possantes, será melhor ir andando…

Nisto, empolgados com a conversa, começámos a argumentar que o nível individual de adaptação à vida selvagem terrestre pode ser aferida pelo número de ataques que sofremos. Os meus colegas “mostraram” as feridas de guerra e eram imbatíveis em termos terrestres. Já no mar, as mazelas eram minhas, apesar das ameaças serem muito relativas… Começando pelas mordidelas de peixe-porco, passando pelas pequenas castanhetas em defesa dos ninhos e terminando pouco depois pelas picadas de águas-vivas, a verdade é que no mar não encontramos animais que nos queiram verdadeiramente mal. Gostava de ter histórias de lutas pela vida contra moreias, polvos gigantes e tubarões, mas, na realidade, foram muitas mais as que imaginei do que as que vivenciei no mar dos Açores.

Depois de animada conversa, chegamos à conclusão que, cada um no seu meio, tínhamos as cicatrizes suficientes para podermos afirmar que sabíamos viver a vida, mas, felizmente, nenhuma que nos tivesse feito temer por ela.

Por fim, começámos à procura de espécies que tínhamos em comum. Todos tinham sido arranhados por gatos, mas concluímos que os gatos não eram animais selvagens. Quase todos tinham sido picados por abelhas, mas estas não reuniam a unanimidade das vítimas e também geraram discussão quanto ao seu nível de “selvagem”. A única terrível espécie que a todos, sem excepção, tinha incomodado eram os… momento de silêncio em enorme expectativa… os mosquitos!



* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.