Apesar do seu glamour ameaçador, as moreias raramente passam disso: “ameaçadoras”. De resto, de dia permanecem basicamente de guarda aos seus buracos, com a boca aberta, esperando que uma incauta presa passe por perto, ou posando indulgentemente para a máquina fotográfica. À noite, grande parte das espécies de moreias saem dos seus “covis” epredam activamente.
As moreias são peixes, teleósteos, da família Murenidea. A grande diferença entre as moreias e os congros reside na inexistência de barbatanas peitorais no caso das primeiras. O corpo das moreias é anguiliforme, musculado e a pele é espessa. As barbatanas ímpares estão unidas desde o dorso anterior, habitualmente antes das “fendas” branqueais até à faceventral e terminando no ânus. A dimensão da boca é média a grande e a dentição varia de acordo com a espécie. As colorações e padrões cromáticos também são específicos, o que em Portugal muitas vezes facilita a identificação. Têm interesse gastronómico e são muito apreciadas tradicionalmente em regiões como a Madeira, os Açores e o Alentejo.
As espécies
No mundo estão registados cerca de 10 géneros e mais de 100 espécies de moreias. Em Portugal, na faixa acessível à maioria dos mergulhadores, existem 4 espécies, sendo que, destas, apenas a moreia-pintada é habitualmente observada em mergulhos no Continente. As restantes espécies (moreão, moreia-preta e moreia-víbora) existem e são vistas pelosmergulhadores nos Arquipélagos dos Açores e Madeira. Todas as espécies são alvo da pesca artesal e nenhuma delas está citada no livro vermelho das espécies em perigo.
O moreão pode atingir um metro de comprimento. O seu corpo é castanho, particularmente mais escuro na zona da cabeça. Os olhos são escuros, quando comparados com os damoreia-preta. Também facilita o seu reconhecimento o facto de possuir um focinho comparativamente curto. A dentição é composta por pequenos e rijos dentes, capazes de trespassar qualquer carapaça quitinosa ou calcária. Por esta razão, alimenta-se facilmente de caranguejos e bivalves. Visto não serem as suas presas favoritas, é muitas vezes encontrado nacompanhia de espécies de pequenos peixes. Para além das tradicionais fendas e buracos, habitualmente utilizadas pelas moreias, esta espécie em particular também pode ser encontrada em fundos arenosos e de gravilha. Distribui-se desde os 0 aos 80m do Mar Mediterrâneo, desde os Açores até Cabo Verde, passando pela Madeira, Canárias e pelo Golfo da Guiné, havendo ainda registos no Sul de Portugal. Esta espécie é considerada inofensiva para o homem.
A moreia-pintada pode atingir 1,5 metros de comprimento total. Alimenta-se de peixes, lulas e caranguejos. Pode ser encontrada no Atlântico Oriental, desde as ilhas Britânicas até ao Senegal, passando pelas costas de Portugal Continental, Mediterrâneo, Açores, Madeira, Ilhas Canárias (especialmente nas zonas de águas mais frias) e Cabo Verde. Pode causar traumas em caso de ataque.
A moreia-preta pode atingir um metro e trinta centímetros de comprimento. A coloração especialmente esbranquiçada dos olhos é a característica que permite mais facilmente a identificação desta espécie. Os olhos contrastam com a coloração do corpo que pode variar entre o azul escuro e o castanho, de acordo com o fundo onde se encontra (já que esta espécie possui capacidade mimética). Encontra-se apenas pelos arquipélagos Macaronésicos: Açores, Madeira e Canárias desde a zona entre-marés até aos 100 metros de profundidade. Durante muito tempo esta espécie foi considerada apenas uma variante cromática da moreia-pintada até que se analisaram as características morfométricas e se chegou à conclusão que as diferenças na estrutura óssea da cabeça eram suficientes para justificar a descrição de uma nova espécie. Esta análise cuidada revelou que o focinho desta espécie é maior que o das moreias-pintadas.
A moreia-víbora pode medir até um metro e vinte centímetros. A espécie é facilmente reconhecível pelo aspecto amarelado e pela dentição, meia transparente, de aspecto especialmente ameaçador. Este aspecto ameaçador é reforçado pela sua incapacidade de fechar totalmente a boca, devido aos maxilares ligeiramente arqueados. No entanto, a ameaça é amplamente exagerada. Na realidade os seus dentes são demasiado compridos e frágeis, o que impossibilita a sua alimentação ser direccionada para animais de carapaça dura, como os caranguejos. Durante o dia encontra-se escondida em fendas e buracos, aproveitando a noite para atacar peixes, lulas e polvos, embora a sua dieta não seja totalmente conhecida. O seu comportamento, essencialmente noctívago, faz-nos crer que é muito menos abundante do que na realidade é. Distribui-se pelo Mediterrâneo, Açores, Madeira, Canárias, Cabo Verde, Ascensão, Santa Helena e Bermudas (quase todos os arquipélagos Atlânticos). Verticalmente, ocorre desde os 0 até aos 30 metros de profundidade. É considerada inofensiva.
Comportamento reprodutor
Apesar do conhecimento sobre a fase de libertação de ovos ser restrito a um pequeno número de observações, as moreias já foram observadas a contorcerem o corpo, libertando ovos pelágicos.
Algumas espécies agregam-se para reprodução. Enquanto permanecem nestas agregações já houve relatos de ataques activos a mergulhadores.
Sentidos
A maioria das espécies de moreias vê mal. Para se orientarem, confiam essencialmente no sentido do olfacto, o que as obriga a aproximar de objectos para os reconhecerem. Porvezes, atitudes tomadas como agressivas são apenas uma tentativa, por parte da moreia, de identificar o organismo que se encontra na sua frente.
Algumas espécies possuem nostrilhos tubulares (pequenos prolongamentos nasais), os quais permitem facilmente reconhecer a direcção de um determinado odor. Depois de determinada a presença de uma potencial presa, a moreia aproxima-se até confirmar o sabor da presa, através de órgãos sensoriais que possui nos lábios, e ataca com uma mordida rápida. Alguns peixes, como as vejas, enquanto dormem produzem um muco que as torna “invisíveis” aos órgãos sensoriais das moreias. É possível que uma moreia durante o período nocturno passe por cima de uma veja sem notar a presença de uma óptima presa.
Limpeza
As moreias são dos animais que beneficiam com as chamadas “estações de limpeza”. Estes locais são conhecidos por albergarem pequenos animais, como pequenos camarões ou peixes, que limpam outros animais potencialmente seus predadores. Os parasitas limpos desta forma servem de alimento aos limpadores e libertam os de maior porte dos parasitas. Estas relações de comensalismo (relação em que ambas as espécies saem beneficiadas) são intrigantes, especialmente porque alguns dos limpadores, noutros contextos, são presas dos animais de maior porte. Durante a limpeza, os animais de maior porte parecem ficar num estado de latência ou letargia. Nalguns casos este estado é atingido antes do início das operações de limpeza, como que a indicar que o processo deve ser iniciado ou a informar os animais de menor porte que, a partir daquele momento, o predador “sai de funções”.
Ataques a humanos
As moreias mais perigosas são, curiosamente, as que foram condicionadas (vulgo “amestradas”) através do alimento. O facto de estarem à espera de serem alimentadas pelosmergulhadores leva a que estes animais confundam partes do corpo dos mergulhadores com a esperada comida. Os dedos dos mergulhadores são confundidos com comida, porque as moreias vêm mesmo mal...
Apesar de não serem habitualmente agressivas, algumas espécies podem provocar ferimentos sérios e dolorosos. Independentemente da gravidade aparente, um ferimento causado pela mordedura de uma moreia poderá implicar a necessidade de utilização de antibióticos, pelo que deverá consultar um médico com a brevidade possível.
Para saber mais
Bauchot, M.-L., 1986. Muraenidae. p. 537-544. In P.J.P. Whitehead, M.-L. Bauchot, J.-C. Hureau, J. Nielsen and E. Tortonese (eds.) Fishes of the North-eastern Atlantic and theMediterranean. Volume 2. UNESCO, Paris.
Debelius, H. 2000. Mediterranean and Atlantic Fish Guide. IKAN Unterwasserarchiv. 305p. - Para além do Inglês, este guia de identificação para peixes do Mediterrâneo e Atlântico está também editado em Alemão e Castelhano.
Froese, R. e D. Pauly. Editores. 2003. FishBase. World Wide Web electronic publication. www.fishbase.org, versão de 1 de Setembro de 2003.
Nancy’s Portugal Site - http://home.online.no/~nancys/portugal/madeira/sports/diving/fish07.html
Saldanha, L. 1995. Fauna Submarina Atlântica. Publicações Europa-América. 364p. - O facto de estar escrito em Português confere-lhe uma franca vantagem em relação a outros guias.
Wirtz, P. 1995. Unterwasserführer Madeira / Kanaren / Azoren – Fische. Vol. 8. Delius Klasing Edition Naglschmid. 159p.
Agradecimentos
Ao Rogério Ferraz pelas correcções e por ter chamado a atenção para as associações entre as diferentes espécies de moreias e as diferentes espécies acessórias. Ao Filipe Porteiro,Fernando Tempera, Vera Guerreiro e Margarida Abecasis pela revisão do manuscrito.
Biografia
Frederico Cardigos é Licenciado em Biologia Marinha e Pescas pela Universidade do Algarve e é Mestre em Gestão e Conservação da Natureza pela Universidade dos Açores. É bolseiro do Centro do IMAR da Universidade dos Açores através do Projecto, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, MAROV (PDCTM/P/MAR/15249/1999).
Leia o artigo completo em:
http://www.horta.uac.pt/Projectos/MSubmerso/old/200310/Moreias.htm