Tubarão das Galápagos no Recife Dollabarat.
Poucas coisas me poderiam dar tanto prazer como aceitar o desafio de escrever um artigo sobre os
Ilhéus das Formigas. Estas linhas são escritas entre sonhos, trabalho, estudo, memórias, saudades e esperança que ao longo dos anos este magnífico local me despertou.
O sonho começou quando, ainda numa escola primária do Continente, olhei para o mapa e me perguntei porque é que os Açores não tinham dez ilhas? Porque extraordinária injustiça aqueles pedaços de terra, nítidos no mapa que tínhamos espalhado no chão, não mereciam o estatuto de ilhas e ainda por cima eram apelidados de “Formigas”? Ainda não imaginava que um dia iria ter qualquer afinidade com o mar e já sonhava com as Formigas...
Anos mais tarde, vi-me a braços, por catapulta da
Expo98, com um convite para participar numa expedição de inventariação faunística e recolha fotográfica que, entre outras, deveria enriquecer o
Pavilhão dos Açores naquele evento. Foi um trabalho maravilhoso… Depois, houve que agarrar em toda a informação obtida nesse ano e em todos os anos até 2005 e transformá-la em relatórios, em memorandos, álbuns fotográficos, vídeos e reportagens diversas. Neste momento, tenho particulares saudades de voltar às Formigas e esperança que isso venha a acontecer em breve.
Os ilhéus das Formigas situam-se a 20 milhas náuticas de
Santa Maria e a 34 de
São Miguel. A sua posição justificou a criação de uma chamada
linha de base entre São Miguel e Santa Maria o que aumentou o
mar territorial de Portugal em algumas dezenas de quilómetros quadrados. O complexo topográfico em que se inserem os ilhéus das Formigas, prolonga-se em profundidade, incluindo mais dois outros montes submarinos, o
Recife Dollabarat, com 3 metros de profundidade de altura máxima e o Bando do Entre-Meio, com 25 metros no seu ponto mais alto. Estes dois sítios não são visíveis de fora de água, embora, no caso do Dollabrat, nos dias com alguma ondulação, se forme uma exótica onda circular. Ao contrário, nos dias de muito bom tempo, é possível ver o esbranquiçado de grande parte do Recife por entre a transparência da água.
O complexo dos ilhéus das Formigas, apesar da proximidade com as ilhas de Santa Maria e São Miguel, possui características específicas muito próprias, incluindo alguns fósseis, peixes de elevadas dimensões e corais-negros com tamanho de árvores. É um sítio lindo. Na primeira vez que coloquei a cabeça debaixo de água nas Formigas era o final de tarde. Vi um ratão a passar a meia água e, apesar do fundo estar a uns 40 metros, conseguia ver as pedras sobre a areia. Este é um autêntico paraíso para os mergulhadores.
As rochas em si, as tais Formigas, constituem um local de descanso para as aves marinhas e de deleite para quem, como eu, gosta de ouvir a mistura perfeita entre o vento, o mar e a solidão. Nem o branco do farol consegue apagar esta paradoxal sensação que jaz entre a aflição e a tranquilidade.
Desde muito cedo que se realçou a importância de proteger este local e torná-lo um autêntico santuário para a vida marinha. Como resultado desse e de outros esforços, este local, através de diversos estatutos, está protegido desde 1988 e é hoje Reserva Natural do
Parque Natural de Santa Maria. Para além disso, esta área pertence à
Rede Natura 2000 (2001), é Área Marinha Protegida da
Convenção OSPAR (2005) e está classificada como Área
Ramsar (2008). A Rede Natura 2000 agrega os mais importantes locais da Europa em termos de conservação da natureza, as Áreas Marinhas Protegidas da Convenção OSPAR agregam os locais determinantes para a conservação marinha da Europa e as áreas classificadas ao abrigo da Convenção de Ramsar agrupam os locais cujas águas são importantes para os sistemas naturais. Obviamente, o complexo dos ilhéus das Formigas e do Recife Dollabarat tinha de constar nos três!
O
Departamento de Oceanografia e Pescas e o
Departamento de Biologia da
Universidade dos Açores conduzem missões regulares neste local. Foi numa destas missões em que, utilizando um
ROV da
Universidade de St. Andrews, foram filmados
extensos jardins de enormes algas laminárias, o único com esta exuberância registado nos Açores.
Nos últimos anos, graças ao acompanhamento permanente das chamadas “Missões Bancos” do DOP por parte de jornalistas e fotógrafos de vida selvagem, este local tem sido verdadeiramente conhecido e reconhecida a sua importância para a salvaguarda da vida marinha. Para além disso, o constatar de um deficit de vigilância do local teve como resultado um intensificar da actividade inspectiva o que provocou uma verdadeira protecção do local no ano de 2010. Os efeitos desta nova responsabilidade, em que merece particular destaque a intervenção da
Autoridade Marítima e dos utilizadores não extractores dos ilhéus, tornar-se-ão evidentes nos próximos anos.
Formigas
Ao conhecer a história do
naufrágio do “Olympia”, uma embarcação de transporte de pessoas e carga de meados do século XX, dei por mim a pensar quantas embarcações teriam tido o mesmo fim… Uma análise cuidada resulta na escassez de elementos sobre eventos dramáticos nos ilhéus. Será isso o resultado de falta de ocorrências ou, pelo contrário, a impossibilidade de efectuar qualquer salvamento resultaria numa perda silenciosa… Lembro-me do misterioso desaparecimento dos navegadores quinhentistas
Miguel e
Gaspar Corte-Real. Primeiro um e depois o outro, que procurava o primeiro, atravessaram o Atlântico e nada mais se soube deles. Terão tido o azar de encontrar as Formigas numa noite de nevoeiro? Terão tentado passar por cima do Recife Dollabarat?
Por esta razão, ainda no século XIX, foi decidido assinalar as Formigas com um
farol que fosse visível bem para além dos ilhéus e do Recife Dollabarat. O alvo farol é testemunha de uma obra que demorou mais de cinquenta anos na fase de planeamento e apenas 36 dias na fase de construção.
Quando se salta para os ilhéus nas Formigas, depois da emoção de um desembarque sem qualquer porto, parece que o peso destas histórias cai sobre nós. É inevitável olhar inquisitivamente para todos os lados e apenas vislumbrar terra a dezenas de milhas de distância. A pequenez dos ilhéus misturada com o isolamento assalta-nos a alma dando uma estranha sensação de claustrofobia em pleno ar livre.
Na água, as paredes dos ilhéus mergulham a pique até 60 metros no lado poente e 40 no lado nascente, as algas do género
Cystoseira dominam as paredes nos primeiros metros e depois são progressivamente misturadas e, finalmente, substituídas pelas
Zonaria tournefortii. Entre elas, dezenas de espécies de outras algas e pequenos animais farão as delícias de quem conseguir tirar os olhos dos peixes pelágicos, meros, restos de navios e tantas outras coisas fantásticas que aqui encontramos.
Dollabarat
Ao contrário do que muitas vezes é dito, o nome Dollabarat não resulta de qualquer navio afundado no recife irmão das Formigas, mas sim do nome do comandante de navio Basco que identificou e posicionou aquele enorme perigo para a navegação. A cerca de três milhas a es-sudeste das Formigas, há uma ascensão dos fundos marinhos desde os 60 metros até uma plataforma com profundidade média de 12 metros e uma extensão Norte-Sul de cerca de um quilómetro. Esta plataforma, principalmente no extremo Sul está sulcada por agudos e extraordinários vales. Sinceramente, não há palavras suficientes para descrever a maravilha que ali se encerra. As rochas, brancas com um aspecto mesmo lixiviado, estavam até ao final do século XX recobertas por extensos e longos tapetes de
algas. Algo aconteceu e perturbou o equilíbrio do local. Os cientistas ainda procuram respostas, embora, lentamente, o recife esteja a ganhar de volta os seus enormes prados. Alguns defendem, possivelmente com razão, que uma diminuição da população de peixe-cão (um dos poucos predadores de ouriços) possa ter causado este desequilíbrio. Este possível facto realça que os locais muito pequenos são imensamente sensíveis, pelo que o simples retirar de uma componente pode ter consequências dramáticas.
Submergir nos vales, encontrar, grandes meros, moreias, jamantas e tubarões são os pontos altos de um mergulho que nunca, jamais, poderá ser esquecido. Certa vez, cheguei ao fundo da parede Sul do Dollabarat e fiquei imóvel sobre o fundo alguns segundos. Quando voltei a olhar para cima tinha um mero enorme a olhar para mim. Sorri-lhe. Ele olhou para mim, abriu e fechou a boca quatro ou cinco vezes, aproximou-se, deixou-me tocar ao de leve no seu dorso e majestaticamente partiu lentamente com um destino que apenas ele conhecia. Olhei ainda mais para cima. Dois tubarões passavam, oriundos de um cabeço que fica mais a Sul. Para meu espanto, uma bicuda atirou-se sobre a zona ventral do tubarão o que o fez fugir repentinamente. Ao regressar ao topo do Dollabarat, o meu colega de mergulho esticou todos os dedos de uma mão e com a outra fez-me o sinal de tubarão. Olhei na direcção do local de onde tinha regressado e vi os cinco magníficos animais. Pouco depois, uma enorme jamanta, com, pelo menos, quatro metros de envergadura, aproximou-se do meu colega de mergulho fazendo uma rasante à sua câmara de vídeo. Pode parecer extraordinário e é, mas, foi apenas mais um mergulho no Recife Dollabarat.
Banco do Entre-Meio
O Banco do Entre-Meio é mais uma zona de águas pouco profundas, leia-se mergulhável, que se situa exactamente entre o Dollabarat e as Formigas. A razão essencial que pode justificar uma imersão neste local é o facto de ser local verdadeiramente selvagem. Conheço poucas pessoas que lá tenham mergulhado e, portanto, não é de admirar que os peixes não tenham qualquer receio de si. Aliás, como me aconteceu a mim, alguns dos peixes tentarão dar-lhe uma mordidela… Nada de mais, continuo com os dedos todos…
Conclusão
Mergulhar no Recife Dollabarat é uma aventura como poucas haverá no mundo. A sensação de desembarcar nos ilhéus das Formigas também não tem par. De facto, esta Reserva Natural do Parque Natural de Ilha de Santa Maria é um magnífico tesouro que urge recuperar totalmente, preservar, explorar com sustentabilidade. O prazer é tão grande que, digo eu, é um dever humanitário de quem conhece ou pode lá ir, partilhar a sensação ou levar “um amigo também”.