sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Equitativo

O paínho-de-Monteiro faz parte do património biológico dos Açores, quem o quiser utilizar terá de repartir os benefícios especialmente com os Graciosenses que, quais guardiões, o souberam preservar.

Foto: PH Silva SIARAM

O pó de mussiró é utilizado tradicionalmente pelas mulheres da ilha de Moçambique de etnia Macua. Graças à sua utilização, os rostos destas mulheres ficam particularmente suaves e com aparência jovem, o que é do especial agrado dos homens daquele território insular. Como o pó tem de ser utilizado durante o dia para que à noite as faces femininas estejam no seu auge, as mulheres da ilha de Moçambique têm uma quase constante máscara branca. Mais do que ser um comportamento social, esta é mais uma característica cultural vincada na pequena ilha que serviu, ao longo dos séculos, como local de encontro de civilizações.
Há uns anos, uma grande empresa multinacional europeia conseguiu isolar as características bioquímicas daquele produto e passou a produzir em massa um creme de beleza com particular sucesso global. Até aqui, parece tudo razoavelmente normal neste nosso mundo capitalista: o empreendedor descobre um potencial, estuda, reproduz em larga escala e explora-o. No entanto, será que a ilha de Moçambique deveria ter sido beneficiada com alguma partilha destes benefícios? Segundo as leis publicadas e a ordem estabelecida, não, porque não havia registo de propriedade comercial ou intelectual. Segundo a mais elementar moralidade, obviamente que sim.
Mais comum do que um roubo cultural, como eu apelidaria o que descrevi atrás, é habitual o roubo biológico. No roubo biológico, é subtraído um qualquer organismo de um determinado local, estudado e o resto segue o mesmo padrão. Alguns dos fármacos em estudo hoje em dia têm origens biológicas desconhecidas.
Para evitar esta delapidação, o Brasil fechou as portas à exportação de amostras científicas descontextualizadas, tornando essa ação equivalente a crime. Outros países e territórios estão a pensar em fazer o mesmo. É um desfecho triste, que inibirá o avanço da humanidade em diversos campos, mas entende-se bem a preocupação conservadora. Mesmo que outro mérito não tenha, a população local é a responsável pela manutenção do bem cultural, geológico ou biológico que é alvo da cobiça externa.
Tentando manter a acessibilidade e, ao mesmo tempo, dando parte do benefício à população local, há diversas iniciativas internacionais que tentam ordenar esta questão. Entre elas, a que mais ênfase tem tido é o chamado Protocolo de Nagoya. Este Protocolo, assinado por 190 países, garante o acesso e a repartição de benefícios e é considerado o maior pacto ambiental desde Kioto. Segundo este, as legislações nacionais e regionais deverão estipular a manutenção da acessibilidade, mas, ao mesmo tempo, criar os mecanismos legais de partilha equitativa dos benefícios por todos os envolvidos não apenas na descoberta, estudo e exploração do bem, mas também pelas populações geograficamente próximas do local onde foi isolado esse mesmo património.
No caso dos Açores, por iniciativa da Secretaria Regional da Ciência, Tecnologia e Equipamentos, já está em fase final de preparação legislação específica sobre a amostragem científica e, com génese na Secretaria Regional do Ambiente e do Mar, preparou-se legislação especialmente orientada para a utilização e proteção do nosso património biológico em geral. Ambas as propostas estão neste preciso momento a ser apreciadas pelos deputados regionais, esperando-se o agendamento da discussão plenária na Assembleia Legislativa Regional para breve. São dois documentos importantíssimos e que, em tempo record, põem um Protocolo Internacional no terreno.
O Sr. Rui Leonardes é um estilista de origem jorgense, com particular sucesso em Londres e Paris, que já desenhou sapatos para a artista Lady Gaga. No último ano, graças à conceção de um novo tipo de sandálias obteve um reconhecimento ainda mais elevado. O interessante neste contexto é que Rui Leonardes reconheceu aos microfones da Antena 1 que se tinha inspirado numas albarcas de um ancião da Ilha do Pico. Este é o primeiro passo para a equitatividade: o reconhecimento. Esperemos que o estilista saiba como fazer o resto do processo, entregando uma parte dos rendimentos, mesmo que vestigiais ou simbólicos, a quem o inspirou ou aos seus descendentes. Essa seria a atitude correta e a atitude responsável num mundo equitativo. Isso é particularmente importante, também para os faialenses porque, como afirmou, pensa “em basear a roupa de homem no capote, mas ainda está no papel” sendo “só uma ideia que tenho de desenvolver”.
Num mundo cada vez mais egoísta é essencial que, a todos os níveis, pensemos em criar regras de justiça que repartam os bens patrimoniais de uma forma equitativa. O mundo é de todos e todos devemos dele beneficiar.

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